domingo, 27 de março de 2022

A CHAVE, A LUZ E O BÊBADO


Minha recensão do livro de Giorgio Parisi no último número da revista «As Artes entre as Letras»:

Metade do Prémio Nobel da Física de 2021 foi atribuído ao físico teórico italiano Giorgio Parisi (nascido em Roma, 1948) «pela descoberta da interacção de desordem e flutuações sistemas físicos de escalas atómicas a planetárias». Ele é especialista em sistemas complexos, que são sistemas com muitos constituintes cujas ligações podem dar lugar a surpreendentes comportamentos colectivos: o todo é maior do que a soma das partes. É desse autor que a Gradiva acaba de publicar, como n.º 238 da sua colecção «Ciência Aberta», o livro A Chave, a Luz e o Bêbado, com o subtítulo Como se desenvolve a investigação científica (boa tradução de Bárbara Villalobos, da qual eu próprio fiz a revisão científica, do original italiano de 2006). Em 105 páginas, divididas por 15 capítulos, o autor conta o seu trabalho e o modo como vê o mundo, a ciência e a sociedade. O livro é resultado de uma conversa fluida entre o autor e o editor, respondendo em cada capítulo o primeiro a uma pergunta do segundo (por exemplo, a última pergunta é «Como foram os seus estudos na Universidade e como avalia a  universidade actual?»).

O título do livro vem de uma velha anedota, que se conta brevemente. Um bêbado que perdeu uma chave procura-a num sítio iluminado por um candeeiro de rua. Um transeunte presta-se a ajudá-lo, mas não tendo nenhum deles encontrado nada, acaba por lhe perguntar: «Tem a certeza de que a perdeu aqui?». O bêbado responde-lhe com a maior das honestidades: «Não, mas no sítio onde a perdi não havia luz». Trata-se de uma metáfora para o trabalho dos físicos. Conforme explica Parisi: «Os cientistas fazem as coisas que conseguem fazer. Quando se dão conta de que dispõem dos meios para estudar alguma coisa que até ao momento tinha sido deixada de lado, então empenham-se nessa via. Pode acontecer que, como o bêbado, tenham necessidade de procurar algo num sítio onde não têm luz. Então procuram o que há nos sítios mais bem iluminados.»

Parisi estudou um conjunto impressionante de problemas em várias escalas do Universo: começou por ganhar fama estudando uma questão dos quarks confinados dentro de um protão para mais tarde estudar a ocorrência de idades do gelo no nosso planeta, passando por questões do comportamento magnético de sistemas desordenados – os chamados «vidros de spin» são ligas metálicas em que os constituintes magnéticas estão dispostos aleatoriamente em posições de uma rede regular e questões sobre os padrões de voo, aparentemente coordenado, de um bando de milhares de estorninhos. Para quem pense que são questões meramente teóricas, esclareça-se que as soluções para os vidros de spin encontraram aplicações em algoritmos de inteligência artificial e que o voo dos estorninhos pode dar-nos indicações sobre os fenómenos da moda. Em todos esses domínios Parisi revelou a sua enorme criatividade, documentada em centenas de artigos científicos (alguns deles muitos citados), que lhe valeram vários prémios científicos antes do Nobel. Ele foi o sexto físico italiano a ganhar este prémio, depois de Cuglielmo Marconi (1909), que desenvolveu a TSF, do famoso Enrico Fermi (1938), que consstrui o primeiro reactor nuclear, de Emilio Segrè (1959), que descobriu o antiprotão (a antipartícula do protão), do mediático Carlo Rubbia (1984), que dirigiu no CERN em Genebra, na Suíça, a numerosa equipa que detectou as partículas intermediárias da força nuclear fraca, e de Riccardo Giannoni (2002), que nos Estados Unidos construiu detectores de raios X para o espaço.

Parisi formou-se na Universidade de Roma La Sapienza em 1970 (uma das mais antigas universidades de Itália – foi fundada em 1303 – e  uma das mais prestigiadas da Europa), orientado por Nicola Cabibbo, um especialista na teoria da força nuclear fraca que merecia ter ganho o Nobel (quem sai aos seus…). Passou a ser investigador nos Laboratórios Nacionais de Frascati, tendo então beneficiado de estadas nos Estados Unidos (na Universidade Columbia em Nova Iorque) e em França (esteve na Escola Normal Superior, em Paris). De volta a Itália em 1981, ganhou um lugar de professor na Universidade de Roma Tor Vergata, para, passados onze anos, se transferir para a Universidade La Sapienza, onde tinha estudado (o bom filho a casa torna!). Assim, ao contrário de outros prémios Nobel italianos, fez a maior parte da sua carreira em Itália, a pátria de Galileu, investigando em domínios tão diversos como a física de partículas, a física estatística, a mecânica dos fluidos, a física da matéria condensada e a física da complexidade. Jubilou-se aos 70 anos, para assumir a presidência da Accademia dei Lincei, a Academia dos Linces, fundada em 1603 em Roma (Galileu foi membro dessa academia).

Em 2016, Parisi criou e dirigiu o movimento Salviamo la Ricerca Italiana, que procurou o aumento do financiamento público para a ciência fundamental. O lado activista de Parisi fez-se também notar quando ele, em 2008, com colegas e alunos, se opôs, em nome da laicidade da instituição universitária, a uma intervenção do papa Bento XVI na La Sapienza, que acabou por não se realizar.

No livro agora saído entre nós faz a apologia da ciência fundamental e realça o papel que os computadores têm dado para a decifração da Natureza, realizando simulações. Ele próprio, como conta, contribuiu para o desenvolvimento de novas arquitecturas de computadores para resolver problemas específicos. Explica como os computadores ajudam na investigação de sistemas complexos, esclarecendo que os sistemas biológicos são complexos: o nosso cérebro por exemplo, é eminentemente complexo. Parisi interessa-se por características universais desses sistemas, isto é, aspectos que não dependem dos constituintes particulares e das suas interacções. Esta visão da holística física distingue-se da tradicional visão reducionista, que quer compreender o todo reduzindo-o às suas partes.

Parisi é um humanista, bom conhecedor da nossa tradição artística. Um dos capítulos discute o papel dos critérios estéticos na investigação científica. Escreve: «O ideal para um cientista – mesmo que nem todos estejam dispostos a admiti-lo- é apresentar uma teoria ‘bela’». Este livro é uma janela aberta para a sua mente.

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