Minha recensão do livro de Giorgio Parisi no último número da revista «As Artes entre as Letras»:
Metade do Prémio Nobel da Física de 2021 foi atribuído ao físico teórico
italiano Giorgio Parisi (nascido em Roma, 1948) «pela descoberta da interacção
de desordem e flutuações sistemas físicos de escalas atómicas a planetárias».
Ele é especialista em sistemas complexos, que são sistemas com muitos
constituintes cujas ligações podem dar lugar a surpreendentes comportamentos
colectivos: o todo é maior do que a soma das partes. É desse autor que a
Gradiva acaba de publicar, como n.º 238 da sua colecção «Ciência Aberta», o
livro A Chave, a Luz e o Bêbado, com o subtítulo Como se desenvolve a
investigação científica (boa tradução de Bárbara Villalobos, da qual eu
próprio fiz a revisão científica, do original italiano de 2006). Em 105
páginas, divididas por 15 capítulos, o autor conta o seu trabalho e o modo como
vê o mundo, a ciência e a sociedade. O livro é resultado de uma conversa fluida
entre o autor e o editor, respondendo em cada capítulo o primeiro a uma
pergunta do segundo (por exemplo, a última pergunta é «Como foram os seus
estudos na Universidade e como avalia a
universidade actual?»).
O título do livro vem de uma velha anedota, que se conta brevemente. Um
bêbado que perdeu uma chave procura-a num sítio iluminado por um candeeiro de
rua. Um transeunte presta-se a ajudá-lo, mas não tendo nenhum deles encontrado
nada, acaba por lhe perguntar: «Tem a certeza de que a perdeu aqui?». O bêbado
responde-lhe com a maior das honestidades: «Não, mas no sítio onde a perdi não
havia luz». Trata-se de uma metáfora para o trabalho dos físicos. Conforme
explica Parisi: «Os cientistas fazem as coisas que conseguem fazer. Quando se
dão conta de que dispõem dos meios para estudar alguma coisa que até ao momento
tinha sido deixada de lado, então empenham-se nessa via. Pode acontecer que,
como o bêbado, tenham necessidade de procurar algo num sítio onde não têm luz.
Então procuram o que há nos sítios mais bem iluminados.»
Parisi estudou um conjunto impressionante de problemas em várias escalas do
Universo: começou por ganhar fama estudando uma questão dos quarks confinados
dentro de um protão para mais tarde estudar a ocorrência de idades do gelo no
nosso planeta, passando por questões do comportamento magnético de sistemas
desordenados – os chamados «vidros de spin» são ligas metálicas em que os
constituintes magnéticas estão dispostos aleatoriamente em posições de uma rede
regular e questões sobre os padrões de voo, aparentemente coordenado, de um
bando de milhares de estorninhos. Para quem pense que são questões meramente
teóricas, esclareça-se que as soluções para os vidros de spin encontraram
aplicações em algoritmos de inteligência artificial e que o voo dos estorninhos
pode dar-nos indicações sobre os fenómenos da moda. Em todos esses domínios
Parisi revelou a sua enorme criatividade, documentada em centenas de artigos
científicos (alguns deles muitos citados), que lhe valeram vários prémios
científicos antes do Nobel. Ele foi o sexto físico italiano a ganhar este
prémio, depois de Cuglielmo Marconi (1909), que desenvolveu a TSF, do famoso
Enrico Fermi (1938), que consstrui o primeiro reactor nuclear, de Emilio Segrè
(1959), que descobriu o antiprotão (a antipartícula do protão), do mediático Carlo
Rubbia (1984), que dirigiu no CERN em Genebra, na Suíça, a numerosa equipa que
detectou as partículas intermediárias da força nuclear fraca, e de Riccardo
Giannoni (2002), que nos Estados Unidos construiu detectores de raios X para o
espaço.
Parisi formou-se na Universidade de Roma La Sapienza em 1970 (uma
das mais antigas universidades de Itália – foi fundada em 1303 – e uma das mais prestigiadas da Europa),
orientado por Nicola Cabibbo, um especialista na teoria da força nuclear fraca
que merecia ter ganho o Nobel (quem sai aos seus…). Passou a ser investigador nos
Laboratórios Nacionais de Frascati, tendo então beneficiado de estadas nos
Estados Unidos (na Universidade Columbia em Nova Iorque) e em França (esteve na
Escola Normal Superior, em Paris). De volta a Itália em 1981, ganhou um lugar
de professor na Universidade de Roma Tor Vergata, para, passados onze
anos, se transferir para a Universidade La Sapienza, onde tinha estudado
(o bom filho a casa torna!). Assim, ao contrário de outros prémios Nobel
italianos, fez a maior parte da sua carreira em Itália, a pátria de Galileu,
investigando em domínios tão diversos como a física de partículas, a física
estatística, a mecânica dos fluidos, a física da matéria condensada e a física
da complexidade. Jubilou-se aos 70 anos, para assumir a presidência da Accademia
dei Lincei, a Academia dos Linces, fundada em 1603 em Roma (Galileu foi
membro dessa academia).
Em 2016, Parisi criou e dirigiu o movimento Salviamo la Ricerca Italiana,
que procurou o aumento do financiamento público para a ciência fundamental. O
lado activista de Parisi fez-se também notar quando ele, em 2008, com colegas e
alunos, se opôs, em nome da laicidade da instituição universitária, a uma
intervenção do papa Bento XVI na La Sapienza, que acabou por não se
realizar.
No livro agora saído entre nós faz a apologia da ciência fundamental e
realça o papel que os computadores têm dado para a decifração da Natureza,
realizando simulações. Ele próprio, como conta, contribuiu para o
desenvolvimento de novas arquitecturas de computadores para resolver problemas
específicos. Explica como os computadores ajudam na investigação de sistemas
complexos, esclarecendo que os sistemas biológicos são complexos: o nosso
cérebro por exemplo, é eminentemente complexo. Parisi interessa-se por
características universais desses sistemas, isto é, aspectos que não dependem
dos constituintes particulares e das suas interacções. Esta visão da holística física
distingue-se da tradicional visão reducionista, que quer compreender o todo
reduzindo-o às suas partes.
Parisi é um humanista, bom conhecedor da nossa tradição artística. Um dos
capítulos discute o papel dos critérios estéticos na investigação científica.
Escreve: «O ideal para um cientista – mesmo que nem todos estejam dispostos a
admiti-lo- é apresentar uma teoria ‘bela’». Este livro é uma janela aberta para
a sua mente.
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