Aproxima-se a estação
vernal e a guerra continua na Ucrânia. Kiev está sob bombardeamento. Na noite,
soam as sirenes e erguem-se clarões de luz. O dia é de crateras, nuvens de
fumo, fissuras, escombros e pó. Os jardins estão enxameados de destroços, as
casas arruinadas. As auroras são de um silêncio aterrador e os crepúsculos o
prenúncio do inferno.
Ao abrir o livro “O Diabo Solto em Moscovo” que contém, para além de uma autobiografia de Mikhail Bulgakov escrita por Homero Freitas de Andrade, a prosa autobiográfica do escritor russo, deparei-me com esta descrição onírica da cidade de Kiev, no império russo:
[Na primavera, os jardins
desabrochavam em flores brancas, o Jardim do Tzar vestia-se de verde, o sol
invadia todas as janelas, ateando incêndios atrás delas. E o Dniéper! E os
crepúsculos! E o mosteiro de Vidubiétski nas encostas! O mar verde corria pelos
degraus rumo ao plácido e multicolorido Dniéper. As densas noites
negro-azuladas por sobre a água, a cruz de luzes da Catedral de Vladímir
pendendo nas alturas…
Em suma, uma cidade
maravilhosa, uma cidade feliz. A mãe das cidades russas. Porém, esses eram
tempos lendários, tempos em que nos jardins da mais bela cidade da nossa terra
vivia uma geração alentada, jovial. Foi quando nos corações dessa mesma geração
nasceu a certeza de que a vida inteira passaria sem grandes atropelos,
silenciosa e tranquila, auroras, crepúsculos, Dniéper, Kreschátik, ruas
ensolaradas no verão, neve cálida, fofa, graúda e suave no inverno…
[…] e sucedeu o contrário
de tudo isso.]
M. Bulgakov, em “A
Cidade de Kiev”
Bulgakov, que considerava
Kiev a mãe de todas as cidades da Rússia, era um monárquico moderado, atento aos
movimentos ultrareaccionários e ultranacionalistas que aí proliferavam, no
expirar do império russo. Os artistas também se envolveram nestes movimentos. Por
exemplo, o escritor ultranacionalista Dmytro Dontsov, nascido em Melitopol, juntou-se
em 1905 ao Partido Trabalhista Social Democrata Ucraniano. Antes, Volodymyr Vynnychenko (considerado por Ryszard
Kapuscinski como o melhor escritor ucraniano a par de Mykola Khvylovy, da região
de Sumy) alistara-se no Partido Revolucionário Ucraniano. Outro escritor
ucraniano, Mykhailo Kotsiubynsky, criticou, ainda que timidamente, o czarismo e
Lesya Ukrainka e Ilya Ehrenburg opuseram-se ao império russo, apoiando as
teorias marxistas. Logo no primeiro romance de M. Bulgakov, “A Guarda
Branca”, Kiev surge-nos desde o império russo, passando pela guerra civil, à
revolução bolchevique. Durante
a Primeira Guerra mundial, Bulgakov mudou-se para Tchernovtsy. Nessa altura a
Ucrânia estava devastada pela guerra e ocupada pela Alemanha. Em 1917, os
Románov caíram e foi criado um governo provisório liderado por Keriénski. No
mesmo ano, em outubro, os bolcheviques chegaram ao poder, com V. Lenin e L. Trostsky,
que nascera em Ianovka, na Ucrânia. Em novembro, o Conselho Central da República
Popular da Ucrânia declarou a independência e, um mês depois, a República
Soviética Ucraniana foi declarada em Kharkiv. Com o fim da Primeira Grande Guerra, o império russo, com a Ucrânia incluída, mergulhou numa guerra civil desde
1918 a 1921. Kiev era disputada pelos bolcheviques e pelos nacionalistas
partidários da Petliúra (movimento independente da Ucrânia iniciado por Symon
Petliura, que, imagine-se, perseguia os judeus). Entretanto, o Exército Vermelho,
onde militava o poeta de Odessa, Eduard
Bagrítzky, acabou por derrotar o Exército Branco, contra-revolucionário.
A Crimeia, que fora
entregue à Ucrânia em 1954, foi anexada pela Rússia, em 2014. Entre 1932-33, Estaline
retirou a fértil estepe aos camponeses da Ucrânia, acabando estes por morrer à
fome. Ainda assim, Estaline expandiu a área arável. Esta crise ficou conhecida
por Holodomor. Os artistas, também aqui, não passaram ao lado da crise. O poeta Mykola Zerov foi condenado à morte, em 1937. Mykola Khvylovy suicidou-se em 1933,
depois de preso, e Isaac Babel foi executado em 1940. Apesar disto, Ivan Kulyk
e, sobretudo, o poeta Pavlo Tychyna, indicado ao Nobel, apoiaram o comunismo.
Outro escritor russo,
Ivan Bunin, apaixonou-se pela Crimeia e por Odessa. Num dos seus contos, “Gália
Ganskaia”, podemos ler: Não sei por que me lembrei da primavera de Odessa –
disse o marinheiro. – Tu, como odessense melhor do que eu, evidentemente,
conheces todas as suas maravilhosas especificidades – uma mistura de sol muito
quente com um frescor marítimo ainda de inverno, um céu muito claro e nuvens
marítimas primaveris.
A primavera está aí e,
mais uma vez, quando não se esperava sucedeu o contrário da paz. É óbvio que a
cultura dos dois países se cruza e que logo após o golpe de Estado de 2014 se cometeram
excessos irreparáveis. Como escreveu Marina Tsvietaieva, ainda que em relação
ao amor, a “solução está saturada” e a Ucrânia não é um “copo sem fundo”.
1 comentário:
Kiev é sem dúvida a grande cidade histórica desde o Rus' dos Varàngios, mas não tem o carácter e acolhimento cultural com que nos recebe Odessa. A grande cidade planeada por Catarina é a maior riqueza urbana da Ucrânia, com uma magia indizível que respira nas ruas-de facto, são todas avenidas.
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