terça-feira, 22 de março de 2022

CARLO ROVELLI E O MISTÉRIO DO TEMPO

 


Meu artigo no JORNAL DE LETRAS:

Carlo Rovelli (n. 1956, Verona), professor de Física Teórica na Universidade de Aix-Marseille, em Marselha, França, tornou-se, merecidamente, um dos cientistas mais populares do mundo. Para isso muito contribuiu o seu livro Sete Breves Lições de Física, saído no original italiano (a língua de Galileu) em 2014, que se revelou um best-seller mundial ao vender mais de um milhão de exemplares em 41 línguas. Na língua portuguesa, saiu na Objectiva no ano seguinte ao do original. Depois dessa surgiram A Ordem do Tempo (Objectiva, 2018) e A Realidade Não É O Que Parece: a natureza alucinante do universo (Contraponto, 2019). A quarta obra publicada entre nós foi Anaximandro de Mileto: ou o nascimento do pensamento científico (Edições 70, 1921), sobre o filósofo pré-socrático grego que foi percursor da ciência. Acaba de sair nesta mesma editora o quinto livro, E Se O Tempo Não Existisse?, em excelente tradução de Miguel Serras Pereira do francês Et si le temp n’éxistait pas?.

O extraordinário êxito de Rovelli deve-se não só à originalidade do seu pensamento científico, que ousa penetrar nas questões mais profundos do Universo, mas também à sua notável capacidade de comunicação, na forma escrita e oral, que está bem patente nos seus livros e nas suas conferências (assisti à que deu em 2019 na Aula Magna da Universidade de Lisboa, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos, onde «contracenou» com o físico norte-americano, também muito popular, Michio Kaku). No seu percurso científico, feito em Itália, Reino Unido, Estados Unidos e, mais recentemente, em França, Rovelli não hesitou em enfrentar os grandes segredos do Cosmos: o que são o espaço e o tempo? Como ligar a teoria quântica de Bohr, Heisenberg, Schroedinger et al. com a teoria da relatividade geral de Einstein, que trata da gravidade, formulando uma teoria da gravidade quântica? O que diz essa teoria sobre o Big Bang, a explosão inicial do Universo, e sobre os buracos negros, esses prodigiosos abismos cósmicos onde o espaço e o tempo se acabam?

O novo livro, que assume a forma de uma autobiografia,  discorre sobre todas essas questões. Rovelli formou-se em Física na Universidade de Bolonha, a mais antiga do mundo, e doutorou-se em 1986, na Universidade de Pádua, também muito antiga. Na sua juventude chegou a ser preso, por ter recusado prestar serviço militar, que era então obrigatório em Itália. Experimentou o LSD, que ele diz que o conduziu a uma suspensão do tempo. Fez depois trabalho pós-doutoral na Universidade Sapienza, em Roma, no Centro Internacional de Física Teórica, em Trieste, e na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Em 1988, com o norte-americano Lee Smolin e o indiano Abhay Ashtekar, formulou a «teoria da gravidade quântica em laços», que se apresenta como uma alternativa à «teoria das cordas», a teoria mais cultivada por aqueles que buscam unificar as forças fundamentais (tal unificação era um sonho de Einstein). A teoria da gravidade quântica em laços logo excitou a comunidade da física teórica. Ao passo que a teoria das cordas, baseada em simetrias, exige um espaço a dez dimensões (na sua versão mais comum), a teoria da gravidade quântica em laços não passa de uma teoria da gravidade quântica no espaço tridimensional, não pretendendo descrever as outras forças nem sequer as partículas elementares que formam a matéria conhecida. Rovelli conta em E Se O Tempo Não Existisse? que a sua teoria parte da «equação de Wheeler-de Witt», onde o tempo pura e simplesmente não aparece. E, nas soluções da equação, o espaço surge discreto, em vez de contínuo como normalmente se supõe, tendo uma estrutura em laços a uma escala muito pequena. As intersecções desses laços são os quanta, ou «grãos de energia», do campo gravítico, o domínio de influência da gravidade. De facto, na nova concepção, o espaço também desaparece, tal como o tempo, sendo substituído pelo campo gravítico granular. O físico italiano é o primeiro a reconhecer que as suas aproximações são, por enquanto, especulativas. Apesar de a teoria ser muito abstracta e exigir matemática avançada, o autor consegue comunicar o essencial dela sem usar uma única equação. Apresenta as suas ideias de um modo muito sugestivo à medida que narra a sua vida científica. Depois de Yale esteve dez anos em Pittsburgh, onde teve a oportunidade de cultivar, em paralelo com a gravidade quântica, o seu interesse pela história e filosofia da ciência, bem patente no livro sobre Anaximandro.

Mas, mesmo que se trate de uma ilusão, o tempo é um conceito bastante útil para descrever os fenómenos naturais à nossa volta. Já Camões dizia que «todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades». Falamos de «seta do tempo» porque distinguimos entre passado e futuro. Rovelli explica de uma maneira engenhosa o fluxo do tempo que vivenciamos: não existindo o tempo à escala fundamental, ele emerge à escala macroscópica. Conta como, regressado à Europa, desenvolveu, em conjunto com o matemático francês Alain Connes (medalha Fields, o equivalente ao Nobel), essa teoria da emergência do tempo. Como mostra esse encontro, a ciência faz-se em troca e confluência de ideias, em conversas criativas.

Rovelli discute, para além da criação científica, questões filosóficas, políticas, sociais e culturais relacionadas com a ciência. Refere, por exemplo, as diferenças culturais entre os Estados Unidos e a Europa. E faz uma defesa intransigente da unidade da cultura, onde evidentemente inclui a ciência. Para ele não há dúvida de que ciência e arte estão ligadas. Veja-se este passo no final: «Há tanta beleza, inteligência, humanidade e mistério numa página de Schubert como numa pagina de Einstein. Ambas são testemunhos de uma maneira de compreender a realidade, com profundidade ao mesmo tempo que com fragilidade e ligeireza. Gostava que os jovens aprendessem a apreciar as duas e em ambas descobrissem igualmente aas chaves paras compreender o mundo e de compreenderem a si mesmos.»

Se o autor conhece outras obras de Rovelli, tenho a certeza de que vai querer ler esta. Se não conhece, pode começar por esta, porque a seguir vai querer ler as outras.

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