terça-feira, 28 de julho de 2020

Pode um aluno não frequentar a disciplina de "Cidadania e Desenvolvimento? - 2


O caso não é linear, há nele desvios que não interessa considerar. Desvios que têm sido notícia na comunicação social, aproveitados por diversos políticos e comentadores. Fico-me por um olhar pedagógico, naquilo que ele tem de essencial. 

Vejamos a questão que o caso suscita: em sistemas de ensino democráticos, pode um aluno deixar de frequentar uma componente do currículo porque o seu encarregado de educação discorda dela? Por princípio não pode, mas devemos considerar a razoabilidade da excepção. Tentarei explicar tanto um como outra.

Por princípio...
... o currículo escolar integra o que de melhor uma geração pode oferecer em termos de educação formal à seguinte, tanto em termos de conhecimentos disciplinares que lhes oferece, como em termos de estimulação das suas capacidades.
... os construtores do currículo não se deixam influenciar por quaisquer interesses que se desviem desse desiderato, move-os apenas e só a finalidade última que se imputa à educação: a maior aproximação possível da perfeição humana e do bem da humanidade.
... o Estado, que tem assumido a responsabilidade da educação formal, reconhecerá e legitimará o currículo, no pressuposto de que ele será benéfico para todos, implicando a aceitação de todos. 
Assim, se no currículo consta Matemática, todos têm de aprender o que se encontra determinado que se aprenda nesta área. O mesmo para a Geologia, a Física, a História, a Geografia, a Língua, etc. e, mesmo, para a Cidadania...
Portanto, um encarregado de educação/associação de encarregados de educação não poderá impedir que o/s seu/s educando/s frequente/m esta ou aquela disciplina, este ou aquele módulo/tema/actividade/projecto... porque o Estado tem, nesta matéria, em nome do direito universal à educação, a última palavra. Palavra que, voltando acima, será a melhor que se pode dar.
Há vários exemplos que corroboram o que acabo de dizer: os "Criacionistas" nos Estados Unidos da América não ganharam a batalha contra os professores de Biologia; a British Historical Association de Inglaterra não conseguiu afastar, em definitivo, o estudo de questões sensíveis da História. 
A razoabilidade da excepção
Acontece que a realidade distancia-se, mais ou menos, do acima descrito: o Estado não deixa a sua orientação política à margem do currículo, sendo isso mais visível numas disciplinas do que noutras. E não é a matriz democrática que invalida esta afirmação, acontecendo que tal matriz deixa, na actualidade, a porta dos sistemas de ensino aberta aos mais variados "agentes da sociedade" que só têm a ganhar com a "ajuda"/"apoio" que dizem querer prestar à educação. Isto para já não falar da forte e devastadora influência do "politicamente correcto", que faz o Estado ceder de múltiplas formas.
Foquemos a atenção na ainda recente disciplina de "Cidadania e Desenvolvimento", deixando de lado todas as outras. Com antecedentes que lhe deram a actual forma, tem sido afirmada com o centro do currículo escolar na produção/construção do "cidadão de sucesso". O seu ideário é escrito na mais fina retórica (pseudo) educativa: reconhecem-se os interesses e necessidades dos alunos, a ligação à família, a importância de se atender ao contexto social, cultural, etc.
Mas quando se passa para a sua concretização curricular percebe-se o carácter prescritivo da maior parte das suas dezassete áreas: empreendedorismo, literacia financeira, bem-estar animal, voluntariado, saúde, mundo do trabalho... são, na forma como estão enunciadas, precisamente o que a educação não pode ser: doutrinamento. 
Uma afirmação destas requer justificação. Tenho tentado fazer isso em vários artigos, explicando que a "educação" implica a formação para o exercício do livre arbítrio enquanto o doutrinamento conduz e condiciona as decisões que cabem a cada um. Acresce que o doutrinamento que confere substância à componente de Cidadania é exercido desde os primeiros anos de escolaridade, sendo, em grande medida preparado pelos "agentes da sociedade" que têm muito a ganhar com a abordagem ideológica junto dos alunos e das suas famílias.
Assim, têm razão os encarregados de Educação que estando atentos à escola exigem que ela se restrinja à sua função educativa formal, não resvalando para o campo do doutrinamento, onde o conhecimento é substituído por ideologias que fecham o pensamento.

O caso de que agora se tem falado, que um secretário de estado da educação classificou como "ilegal" (o que não significa que seja deseducativo, tal como "legal" não significa que seja educativo) não é, de resto inédito: em 2015 uma mãe irritou-se "apenas e só" com a educação para o empreendedorismo (ver aqui).

Defendo, em suma, que cada Estado concreto não está acima de qualquer suspeita em termos de educação formal, as suas decisões curriculares podem e devem ser escrutinadas por todos aqueles que se preocupam, séria e honestamente, com os desígnios da Escola pública, incluindo os encarregados de educação. O que se segue é a discussão da legitimidade dessa decisões. 

2 comentários:

Mário R. Gonçalves disse...

Muito bem. Um Estado de boa vontade, como o nosso devia ser, teria encetado essa discussão em vez de tomar à bruta a decisão administrativa-repressiva.Infelizmente, o currículo da disciplina, doutrinário como diz, já pressupõe imposição sem discussão; com um debate sério nunca teria sido aprovado.

Rui Baptista disse...

Análise perfeita de uma questão controversa.

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Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...