domingo, 31 de maio de 2015

Um "programa altamente estruturado de formatação ideológica"

“Não fomos informados previamente, não nos pediram autorização, o que deveria ter sido feito dado o conteúdo gravíssimo deste programa, onde a sociedade é apresentada como sendo exclusivamente regida por relações económicas e que exclui tudo o que sejam relações de solidariedade e de afecto” [tudo isto] “vai contra o que tenta ensinar ao filho” [e também contra] “os valores da escola pública” (Mariana Santos, mãe).
“Não queremos que a escola pública obrigue os nossos filhos a serem empreendedores competitivos obcecados pelo sucesso” contestam o que consideram ser “um programa altamente estruturado de formatação ideológica” (Carta aberta  de vários pais enviada à comunicação social).
No início deste mês, no jornal Público, Clara Viana, deu a conhecer a surpresa e indignação de uma mãe ao descobrir na mochila do seu filho de seis ou sete anos um folheto que lhe havia sido oferecido na escola por alguém que foi lá "educar para...". Outros pais se lhe juntarem, protestaram em conjunto e a imprensa deu-lhe eco, em artigos como o de José Soeiro, publicado no Expresso.

Mas, que folheto era esse que tanta agitação provocou entre pais e jornalistas?
Era de "educação para o empreendedorismo".

E, sendo sobre "educação para o empreendedorismo", justificava-se tanta agitação?

Dou, desde já, a minha opinião: sim, justificava. Melhor, justifica. Explico as minha razões.

1. A "educação para o empreendedorismo" como componente curricular

1.1. A "educação para o empreendedorismo" constitui, efectivamente, uma orientação (com força de directriz) de instâncias internacionais, como a OCDE e a UE, para todos os níveis da educação escolar, desde o Jardim de Infância até ao final do Ensino Superior), estando estas instâncias muito atentas ao seu cumprimento. Para se perceber melhor o que digo, leiam-se dois relatórios publicados durante este ano: Perspetivas da Política da Educação 2015: Concretização das Reformas, da OCDE e Country Report Portugal 2015, da UE (páginas 42-49).

No primeiro, salienta-se Portugal pela positiva no que respeita à ponte que tem estabelecidos entre escolas e empresas; no segundo recomenda-se que a educação permaneça na agenda política como um dos principais motores do crescimento económico sustentável e da produtividade, e nele se acrescenta que a revisão curricular mais recente "despreza várias competências chave transversais como a capacidade empreendedora".

1.2. Passando para o plano nacional, a "educação para o empreendedorismo" encontra-se consagrada como uma das quinze áreas de Educação para a Cidadania. No sítio online da Direcção-Geral de Educação, constam as linhas gerais que a devem guiar, bem como documentos de referência, recursos educativos e tudo o mais que seja preciso para o seu ensino. Dá-se também destaque a ligações úteis, colaboradores, concursos, etc.

1.3. E, chegamos às escolas, que no Projecto Educativo devem integrar uma ou várias "Educações para...". Não tenho dados em mão, mas estou convenciada de que, a par da "Educação para a saúde" e da "Educação sexual", escolhem a "Educação para o empreendedorismo" e  a "Educação financeira".

Se atendermos a 1.1. e 1.2. concluimos que estão a cumprir orientações internacionais e nacionais. Podem, é certo, optar por outra(s) "Educação(ões) para..." que se afigurarão mais formativas, como a "Educação para os Direitos Humanos" ou a "Educação para a Paz", mas estas não têm, nem de perto nem de longe, o suporte institucional e logístico que aquelas têm.

2A força da "educação para o empreendedorismo"

Efectivamente, esse suporte inclui tudo o que as escolas precisam e nem imaginam que precisam para que os mais e menos jovens se tornem, diz-se, gestores das (suas) finanças e empreendedores de excelência.

Tudo é feito com o máximo de profissionalismo: os documentos parecem mesmo curriculares; as metodologias e os recursos parecem mesmo pedagógicos. Usa-se a linguagem que seduz: "abordagens activas e significativas", "ir ao encontro do interesse dos alunos", "proporcionar a expressão da sua natural criatividade", "trabalho colaborativo e autónomo"... Há concursos, prémios e muita animação.

Neste rol incluem-se as tais pessoas de que fala a mãe a que aludi no início deste texto: representantes “do mundo empresarial” ou, como a evolução da abordagem escolar desta matéria tem ditado, de consórcios. Trata-se de pessoas que não são educadores, não têm credenciais para ensinar mas levam “o empreendedorismo para dentro das salas de aula”.

Pelas razões que apontámos em 1 a que se juntam outras - não parecerem fechadas à sociedade, porque as autarquias assim o preferem ou exigem, pela falta de reflexão sobre o que realmente subjaz a estas "Educações para...", sobre a legitimidade de se aceitarem e sobre a ponderação ética que a aceitação requer -, as escolas escancaram-lhes a porta da frente e entregam-lhe, de bandeja, as crianças para que as doutrinem à vontade.

E, como Clara Viana apurou, são aos milhares em Portugal e aos milhões pelo mundo.

Os pais acima citados, tendo percebido isso mesmo, destacam, no meu entender muitíssimo bem, que estamos perante uma "formatação ideológica" segundo um "programa altamente estruturado".

Não é, na verdade, obra de amadores mas de técnicos altamente qualificados que conseguiu legitimidade curricular nos vários níveis de decisão curricular, desde o mais macro ao mais micro. Assim, entra pela porta da frente das escola para fazer exactamento o contrário daquilo que esta instituição tem por missão fazer: educar.

Sem comentários:

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...