domingo, 12 de julho de 2020

Uma reflexão sobre o afastamento que é feito na Escola dos livros “perigosos, poderosos, desapiedados”.

Pela importância da reflexão que proporciona para a educação escolar, recuperamos um texto de opinião saído ontem no jornal As Beiras com o título Para que servem os livros difíceis, assinado por Rui Bebiano, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Maria Helena Damião e Isaltina Martins).
Nunca se leu tanto como hoje. A afirmação poderá parecer estranha a quem da leitura valorize a qualidade e a profundidade, mas lê-se de facto muito mais em quantidade e em regularidade. 
A prática da leitura sistemática aumenta continuamente, se nela incluirmos as necessidades práticas da vida quotidiana, das organizações e do mundo do trabalho, a intervenção da publicidade ou da imprensa light e desportiva, e sobretudo a articulação com a televisão, a comunicação móvel e a Internet, com os seus largos milhões de sites e a omnipresença do email e das redes sociais. 
Já a leitura mais densa, crítica e reflexiva, apoiada na literatura de ficção e de não-ficção, para além da escrita académica e da produção ensaística, parecem, de facto, enfrentar um bloqueio. 
O império do zapping, associado à estridência do sensacionalismo e ao destaque dado à informação superficial, por vezes nada fidedigna, determinam um desvio que afeta até espaços onde há poucos anos seriam impensáveis, com ecos no próprio sistema de ensino, inclusive no universitário, onde os hábitos de leitura, se excetuarmos os níveis de formação mais elevados, são cada vez mais escassos e simplistas. 
Esta situação tem imposto, no campo da escrita, a perigosa tentação do facilitismo. 
Tornou-se regra produzir livros e artigos curtos e breves, cortar alguns para expurgar partes mais complexas ou julgadas incómodas, usar uma linguagem cada vez mais rasa, fácil e previsível, relegar para a obscuridade tudo o que possa escapar a este padrão sem rasgo ou ousadia, e quem o não faz enfrenta dificuldades para publicar. 
Com o desaparecimento dos suplementos ou das páginas literárias dos jornais de referência, a escassa crítica literária que se pratica em Portugal acaba por deixar espaço, em termos de divulgação e impacto, quase apenas para os livros que obedecem a um padrão de gosto reduzido ao menor denominador comum ou que remetem para as opções dominantes em termos políticos e ideológicos, aos quais se junta o destaque concedido a “autores” conhecidos principalmente pelo seu rosto surgir com regularidade nos ecrãs da televisão, ainda que sem experiência alguma nesse campo. 
Todavia, existe o outro lado da palavra, onde habitam os livros “perigosos, poderosos, desapiedados”, aqueles que perturbam e que jamais nos deixam indiferentes. 
Eles são “difíceis”, na medida em que não nos deixam passivos, em que não se limitam a distrair-nos, antes nos forçando a interagir e requerendo sempre algum esforço. Existem até os que causam medo, por o seu conteúdo levar a que questionemos verdades sobre as quais assentámos a compreensão do mundo. 
“A Paixão do Jovem Werther”, de Goethe, publicado em 1774, foi múltiplas vezes acusado de levar aqueles que o liam ao suicídio, apenas porque integra uma tentativa romântica de compreensão dos processos que conduzem ao desespero. 
Obras fundadoras do pensamento contemporâneo, como “O Bom Selvagem”, de Rousseau, “Cândido”, de Voltaire, ou “A Origem das Espécies”, de Darwin, foram repetidamente apontados como perigosos, por retificarem o modo de o ser humano repensar a sua centralidade no mundo. 
“Ulisses”, de Joyce, ou “O Livro do Desassossego”, de Pessoa, têm sido classificados como muito perturbantes. Já vi mesmo um dos mais embriagadores livros de história que pude ler, “Sussurros”, de Orlando Figes, vigoroso e documentado testemunho sobre a vida quotidiana na União Soviética entre os anos 20 e 50, ser rejeitado por poder levar quem o lê, como escutei a alguém que temia ter de rever algumas convicções, “a perder a fé no comunismo”. 
Lembra o escritor e bibliómano argentino Alberto Manguel, em “A Biblioteca à Noite”, publicado em 2006 e entretanto editado pela Tinta da China, que “os livros podem não alterar o nosso sofrimento, os livros podem não nos proteger do mal, os livros podem não nos dizer o que é bom e o que é belo, e por certo que não nos salvam do destino comum da cova, mas garantem-nos uma miríade de possibilidades: a possibilidade da mudança, a possibilidade da iluminação”. 
E estas são-nos principalmente doadas por aqueles julgados difíceis. Os que não nos deixam adormecer e por isso podem tornar-nos mais capazes, mais atentos e mais fortes.

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