Corria o ano de 1212
quando Fernando de Bulhões, nascido em Lisboa 17 anos antes, fez a primeira
viagem da sua vida. Caminhou, como era uso na época, de Lisboa até Coimbra,
desde o Mosteiro de São Vicente de Fora, para o Mosteiro da Santa Cruz, os dois
da Ordem dos Cónegos Regulares de Santa Cruz. Queria fugir do bulício da
capital, onde a proximidade da família impedia o recolhimento que desejava.
Deixou de ler na boa biblioteca dos crúzios em Lisboa para passar a ler noutra que
não lhe ficava atrás (e que o jovem bibliotecário Alexandre Herculano, quando
foram abolidas as ordens religiosas em 1834, carregou para o Porto). Fernando
tornar-se-ia António faz agora 800 anos, quando se mudou de Santa Cruz, na
Baixa coimbrã, para um eremitério nos arredores da urbe, cujo orago era Santo
Antão, que estava ocupado por estranhos frades vindo de Itália, da nova ordem que
tinha sido fundada em 1209 por Francisco de Assis. No sítio está hoje a Igreja
de Santo António dos Olivais, pois o nome universal do então novo franciscano é
Santo António.
A sua viagem de Lisboa
para Coimbra terá demorado oito dias, cerca de 25 quilómetros por dia. Oito
séculos mais tarde o escritor-caminhante Gonçalo Cadilhe repetiu o trajecto,
adivinhando o seu pormenor, na falta de relato directo. Deve ter ido, em parte
por aquilo que é o Caminho Português de Santiago (Caminho Central), já então
percorrido, que passa por Santarém, Tomar e Alvaiázere. O resultado é o interessantíssimo
livro que acaba de sair no Clube de Autor com o título Por este reino acima
e subtítulo No primeiro trekking da História de Portugal. Li-o em menos
tempo do que demora a ir a pé de Lisboa a Vila Franca de Xira.
O livro de Cadilhe esteve
para se chamar, revela o autor na introdução, O caminho do pequeno António.
Será talvez um exagero chamar “pequeno” ao “jovem” que fez a viagem. Tendo
falecido com 35 anos (acima da média da idade na Idade Média), estava então a
meio da sua vida: teria cerca de 40 anos se quisermos colocá-lo nos tempos de
hoje, em que a longevidade ultrapassa os 80 anos. O título que ficou definitivo
é forte, evoca Fausto, não o de Goethe, mas o Bordalo Dias. De facto, uma parte
da viagem foi feita literalmente por esse rio acima, numa barcaça a subir o
Tejo até Valada do Ribatejo.
Eu já conhecia a prosa
escorreita do escritor da Figueira da Foz, autor de 13 outros livros de viagens.
Em particular, tinha lido Nos Passos de Santo António. Uma viagem medieval,
saído em 2016 também no Clube de Autor, no qual Cadilhe conta a revisitação que
empreendeu do percurso de vida de Santo António. O frade, muito impressionado
com o caso de seis franciscanos mortos em África (os “mártires de Marrocos”), decidiu
percorrer o caminho inverso ao da sua vinda de Lisboa (o caminho de Fernando
tornou-se o caminho de António) e prosseguir para Sul, com a ânsia de converter
o Magreb. Uma doença grave fê-lo, porém, voltar para trás. Não voltou, porque
uma tempestade violenta no Mediterrâneo levou-o até à Sicília e daí, por essa Itália
acima, caminhou até Assis, onde conheceu o fundador da ordem que tinha feito
sua. Mais tarde faria uma longa viagem ao Sul de França, onde a heresia cátara
se tinha espalhado no século anterior, num percurso que Cadilhe refez (um ponto
alto do seu livro, em sentidos real e figurado, é a sua passagem dos Alpes). Os
últimos anos da vida de António são bem conhecidos, pois a sua fama de pregador
e milagreiro não parava de crescer (quem não conheça a biografia leia Santo
António, de Agustina Bessa-Luís, que acaba de sair na Relógio d’Água). Morreu
nas imediações de Pádua, a 13 de Junho de 1231. É por isso que o poeta Pessoa, nascido
em Lisboa nesse mesmo dia do ano, foi baptizado com o nome de Fernando António.
Santo António tornou-se, rapidamente, no português mais global de todos os
tempos (rivalizará, nesse título, apenas com Fernão de Magalhães, cuja rota à
volta do mundo Cadilhe também seguiu, relatando-a num outro livro, Nos
Passos de Magalhães).
O século XIII, em plena
Idade Média Cristã, foi um período extraordinário. Nele viveu um outro
português global, Pedro Julião ou Hispano, também de Lisboa, que foi em 1276-77
o único papa português, sob o nome de João XXI. Pedro Hispano terá tido como
condiscípulos na Universidade de Paris grandes nomes da Igreja: São Tomás de
Aquino, dominicano, e São Boaventura, franciscano. António, tendo-se alimentado
das bibliotecas monásticas portuguesas, também foi um académico nas universidades
de Bolonha, Toulouse e Montpellier. Os sermões que chegaram até nós são bastante
eruditos. A universidade é, de resto, um dos maiores legados medievais: a
primeira, entre nós, foi criada em Lisboa em 1290, a pedido dos priores de São Vicente
de Fora e de Santa Cruz, entre outros, e está hoje em Coimbra. Andou, durante a
Idade Média, entre Lisboa e Coimbra. Sempre me interroguei como é que a
Universidade veio de Lisboa para Coimbra. Agora já sei: os poucos mestres e discípulos
vieram a pé pelo caminho que Cadilhe descreve. Não se pode dizer que a
Universidade estava parada.
Numa longa viagem há
tempo para observar, conversar, reflectir. E há surpresas. Destaco dois episódios
pícaros: o encontro matinal do caminhante com dois bêbedos em Azinhaga do Ribatejo
(eu diria que na Idade Média os antepassados daqueles ébrios já bebiam) e o
encontro de um sofá à porta de um cemitério em Casais, Tomar (aí a morte bem pode
esperar sentada). Qual foi para o autor a melhor etapa da sua viagem? Encontrou,
quase no fim, de Fonte Coberta para Conímbriga, “o troço mais arrebatador,
emblemático e gratificante de toda a caminhada.” Eu, que conheço essa parte
do trajecto, não o posso desmentir.
A marcha do tempo é um caminho de avanço da velocidade. Em 1798 a
primeira mala-posta demorou 40 horas de Lisboa a Coimbra. Quando, em 1884, o primeiro
comboio chegou, vindo de Santa Apolónia, a Coimbra B, levava mais de três horas
de viagem. Hoje regresso de Lisboa a Coimbra pela A1 em menos de duas horas e
acho que nunca mais chego a casa. Vivemos com a fúria da velocidade.
Em 1909, o italiano Marinetti glorificou no seu Manifesto Futurista a “beleza da velocidade”: “Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que corre sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia.” Escreveu Álvaro de Campos, o engenheiro seduzido por Marinetti: “Numa velocidade crescente, insistente, violenta, Hup-la hup-la hup-la hup-la.” Alberto Caeiro, em contraste, criticou a pressa: “Não tenho pressa. Pressa de quê?/ Não têm pressa o sol e a lua: estão certos./ Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,/ Ou que, dando um pulo, passa por cima da sombra. Não; não sei ter pressa.” Gonçalo Cadilhe, ao propor-nos este trekking que nos permite recuar à Idade Média, não faz mais do que exaltar a beleza da lentidão, uma beleza de que necessitamos.
Carlos Fiolhais
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