quarta-feira, 29 de julho de 2020

O CAMINHO DE FERNANDO


Meu artigo no último JL:

Corria o ano de 1212 quando Fernando de Bulhões, nascido em Lisboa 17 anos antes, fez a primeira viagem da sua vida. Caminhou, como era uso na época, de Lisboa até Coimbra, desde o Mosteiro de São Vicente de Fora, para o Mosteiro da Santa Cruz, os dois da Ordem dos Cónegos Regulares de Santa Cruz. Queria fugir do bulício da capital, onde a proximidade da família impedia o recolhimento que desejava. Deixou de ler na boa biblioteca dos crúzios em Lisboa para passar a ler noutra que não lhe ficava atrás (e que o jovem bibliotecário Alexandre Herculano, quando foram abolidas as ordens religiosas em 1834, carregou para o Porto). Fernando tornar-se-ia António faz agora 800 anos, quando se mudou de Santa Cruz, na Baixa coimbrã, para um eremitério nos arredores da urbe, cujo orago era Santo Antão, que estava ocupado por estranhos frades vindo de Itália, da nova ordem que tinha sido fundada em 1209 por Francisco de Assis. No sítio está hoje a Igreja de Santo António dos Olivais, pois o nome universal do então novo franciscano é Santo António.

A sua viagem de Lisboa para Coimbra terá demorado oito dias, cerca de 25 quilómetros por dia. Oito séculos mais tarde o escritor-caminhante Gonçalo Cadilhe repetiu o trajecto, adivinhando o seu pormenor, na falta de relato directo. Deve ter ido, em parte por aquilo que é o Caminho Português de Santiago (Caminho Central), já então percorrido, que passa por Santarém, Tomar e Alvaiázere. O resultado é o interessantíssimo livro que acaba de sair no Clube de Autor com o título Por este reino acima e subtítulo No primeiro trekking da História de Portugal. Li-o em menos tempo do que demora a ir a pé de Lisboa a Vila Franca de Xira.

O livro de Cadilhe esteve para se chamar, revela o autor na introdução, O caminho do pequeno António. Será talvez um exagero chamar “pequeno” ao “jovem” que fez a viagem. Tendo falecido com 35 anos (acima da média da idade na Idade Média), estava então a meio da sua vida: teria cerca de 40 anos se quisermos colocá-lo nos tempos de hoje, em que a longevidade ultrapassa os 80 anos. O título que ficou definitivo é forte, evoca Fausto, não o de Goethe, mas o Bordalo Dias. De facto, uma parte da viagem foi feita literalmente por esse rio acima, numa barcaça a subir o Tejo até Valada do Ribatejo.  

Eu já conhecia a prosa escorreita do escritor da Figueira da Foz, autor de 13 outros livros de viagens. Em particular, tinha lido Nos Passos de Santo António. Uma viagem medieval, saído em 2016 também no Clube de Autor, no qual Cadilhe conta a revisitação que empreendeu do percurso de vida de Santo António. O frade, muito impressionado com o caso de seis franciscanos mortos em África (os “mártires de Marrocos”), decidiu percorrer o caminho inverso ao da sua vinda de Lisboa (o caminho de Fernando tornou-se o caminho de António) e prosseguir para Sul, com a ânsia de converter o Magreb. Uma doença grave fê-lo, porém, voltar para trás. Não voltou, porque uma tempestade violenta no Mediterrâneo levou-o até à Sicília e daí, por essa Itália acima, caminhou até Assis, onde conheceu o fundador da ordem que tinha feito sua. Mais tarde faria uma longa viagem ao Sul de França, onde a heresia cátara se tinha espalhado no século anterior, num percurso que Cadilhe refez (um ponto alto do seu livro, em sentidos real e figurado, é a sua passagem dos Alpes). Os últimos anos da vida de António são bem conhecidos, pois a sua fama de pregador e milagreiro não parava de crescer (quem não conheça a biografia leia Santo António, de Agustina Bessa-Luís, que acaba de sair na Relógio d’Água). Morreu nas imediações de Pádua, a 13 de Junho de 1231. É por isso que o poeta Pessoa, nascido em Lisboa nesse mesmo dia do ano, foi baptizado com o nome de Fernando António. Santo António tornou-se, rapidamente, no português mais global de todos os tempos (rivalizará, nesse título, apenas com Fernão de Magalhães, cuja rota à volta do mundo Cadilhe também seguiu, relatando-a num outro livro, Nos Passos de Magalhães).

O século XIII, em plena Idade Média Cristã, foi um período extraordinário. Nele viveu um outro português global, Pedro Julião ou Hispano, também de Lisboa, que foi em 1276-77 o único papa português, sob o nome de João XXI. Pedro Hispano terá tido como condiscípulos na Universidade de Paris grandes nomes da Igreja: São Tomás de Aquino, dominicano, e São Boaventura, franciscano. António, tendo-se alimentado das bibliotecas monásticas portuguesas, também foi um académico nas universidades de Bolonha, Toulouse e Montpellier. Os sermões que chegaram até nós são bastante eruditos. A universidade é, de resto, um dos maiores legados medievais: a primeira, entre nós, foi criada em Lisboa em 1290, a pedido dos priores de São Vicente de Fora e de Santa Cruz, entre outros, e está hoje em Coimbra. Andou, durante a Idade Média, entre Lisboa e Coimbra. Sempre me interroguei como é que a Universidade veio de Lisboa para Coimbra. Agora já sei: os poucos mestres e discípulos vieram a pé pelo caminho que Cadilhe descreve. Não se pode dizer que a Universidade estava parada.

Numa longa viagem há tempo para observar, conversar, reflectir. E há surpresas. Destaco dois episódios pícaros: o encontro matinal do caminhante com dois bêbedos em Azinhaga do Ribatejo (eu diria que na Idade Média os antepassados daqueles ébrios já bebiam) e o encontro de um sofá à porta de um cemitério em Casais, Tomar (aí a morte bem pode esperar sentada). Qual foi para o autor a melhor etapa da sua viagem? Encontrou, quase no fim, de Fonte Coberta para Conímbriga, “o troço mais arrebatador, emblemático e gratificante de toda a caminhada.” Eu, que conheço essa parte do trajecto, não o posso desmentir.

A marcha do tempo é um caminho de avanço da velocidade. Em 1798 a primeira mala-posta demorou 40 horas de Lisboa a Coimbra. Quando, em 1884, o primeiro comboio chegou, vindo de Santa Apolónia, a Coimbra B, levava mais de três horas de viagem. Hoje regresso de Lisboa a Coimbra pela A1 em menos de duas horas e acho que nunca mais chego a casa. Vivemos com a fúria da velocidade.

Em 1909, o italiano Marinetti glorificou no seu Manifesto Futurista a “beleza da velocidade”: “Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que corre sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia.” Escreveu Álvaro de Campos, o engenheiro seduzido por Marinetti: “Numa velocidade crescente, insistente, violenta, Hup-la hup-la hup-la hup-la.” Alberto Caeiro, em contraste, criticou a pressa:Não tenho pressa. Pressa de quê?/ Não têm pressa o sol e a lua: estão certos./ Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,/ Ou que, dando um pulo, passa por cima da sombra. Não; não sei ter pressa.” Gonçalo Cadilhe, ao propor-nos este trekking que nos permite recuar à Idade Média, não faz mais do que exaltar a beleza da lentidão, uma beleza de que necessitamos.

Carlos Fiolhais


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