terça-feira, 7 de julho de 2020

O PORTUGAL QUE AINDA SOMOS

A propósito do momento político que estamos a viver pergunto: como é que a democracia consente o crescimento de um poder que a irá destruir?

O protagonismo que, em especial, as televisões estão a prestar ao partido neonazi (a cumprir muito bem o seu papel) está a dar-lhe, precisamente, o que ele pretende: crescer. A resposta só pode ser uma: elevar o nível cultural e civilizacional dos cidadãos.
“Fomentar o pensamento crítico, criativo e independente, contribuindo assim para a promoção da tolerância e da paz”, 
está contemplado no teórico e ilusório propósito oficial da nossa escolaridade obrigatória, agora de 12 anos. Basta ler os textos de alguns dos responsáveis pelo nosso ensino para verificar que assim é. 

A verdade é que continuamos a ser um povo em que ainda são muitos os desinteressados pelos valores da ciência e da cultura, alienados pelo “jogo da bola” e outro venenos, e em que muitos militantes e a maioria dos simpatizantes dos partidos políticos desconhecem os fundamentos das respectivas ideologias. Basta, aquando dos congressos partidários, estar à entrada e entrevistar os participantes que vão chegando.

A Revolução de Abril, escancarou as portas, os portões e as janelas ao conhecimento dos mais variados temas das culturas científica, humanística e artística. Mas a grande maioria do povo (a maioria que dá vitórias em eleições) continua a viver de costas voltadas para estes valores, entretida com futebol e três televisões que nos entram portas adentro, duas delas, privadas, essencialmente vocacionadas no lucro (o que não choca, como empresas que são e garantem trabalho a muita gente) e uma, pública, paga por todos nós, que “dá ao povo aquilo de que o povo gosta” e que, assim, não sai da incultura em que cresceu, vive e vai despedir-se deste mundo.

É de justiça dizer que não é o que se passa com a RTP2, com propostas muito louváveis, mas que, infelizmente, não conseguem captar audiências. Não obstante os belos propósitos, que eu diria falhos de convicção, de responsáveis pelo ensino como, por exemplo o que diz que “a escolaridade obrigatória estabelece que um aluno, no final dos respectivos 12 anos, esteja 
“munido de múltiplas literacias que lhe permitam analisar e questionar criticamente a realidade, avaliar e selecionar a informação, formular hipóteses e tomar decisões fundamentadas no seu dia a dia”, 
a verdade é que, com as sempre existentes, mas raras excepções, são muitos os rapazes e as raparigas, que pouco ou nada leram, que chegam à universidade, tendo faltas notórias de todas as culturas, sem saberem escrever português. 

Entre os objectivos da referida escolaridade pretende-se que o jovem, cumprida a escolaridade obrigatória, 
“seja livre, autónomo, responsável e consciente de si próprio e do mundo que o rodeia”, 
mas basta ver a elevada percentagem de abstenções nos actos eleitorais, para constatar a falência deste nobre propósito. 

Os programas oficiais estabelecem que, nas diferentes áreas de competências, os alunos aprendam a
“colaborar em diferentes contextos comunicativos, de forma adequada e segura, utilizando diferentes tipos de ferramentas (analógicas e digitais), com base nas regras de conduta próprias de cada ambiente”. 
Um belo e elevado propósito que não teve e continua a não ter realidade visível na média dos nossos cidadãos e cidadãs. O que salta à vista nos dias que correm e nesta geração de adolescentes, que teve e tem o privilégio de fruir da condição de estudante, é o uso obsessivo dos telemóveis, onde quer que estejam e seja a que horas forem.

Ninguém da geração dos homens e mulheres com mais de 60 anos duvida que a revolução iniciada com o 25 de Abril nos trouxe grandes progressos materiais e sociais, por demais apontados pelos profissionais do comentário e das análise políticas, aos quais não pretendo acrescentar nada que eles não saibam. Mas há um sector para o qual basta estar atento para se ter opinião. Pouco ou nada mudámos nas mentalidades.

Vimos um vislumbre de um real propósito de elevação do nível cultural dos portugueses no fugaz e efémero programa da 5ª Divisão de Estado-Maior-General das Forças Armadas, logo após a Revolução dos Cravos, chefiada pelo saudoso primeiro-tenente médico Ramiro Correia, mas não vimos nada que se lhe comparasse em nenhum dos governos constitucionais destes quarenta e quatro anos de democracia.

À semelhança do sempre esquecido mundo rural, as nossas cidades têm, ainda, uma lamentável percentagem de analfabetos funcionais, a par de uma classe média a que a escola deu diplomas mas não deu cultura nem o gosto pelo saber, marcada pela iliteracia de quase tudo, alienada, como disse atrás, pelo futebol e pelos programas televisivos de entretenimento que nos impõem e nos entram pela casa dentro a toda a hora.

Com um povo assim, não admira assistir ao crescimento, ou melhor, ao reaparecimento da extrema direita, a mesma que matou a democracia e nos privou da liberdade e nos manteve em pobreza nos quarenta anos do Estado Novo. Basta pensar em Trump e Bolsonaro para ver como é que um povo inculto se deixa arrastar por populismos e tudo o que eles escondem. 

A classe política, particularmente interessada nas lutas pelo poder, esqueceu de facultar, aos cidadãos, cultura civilizacional e humanística.

Assim, continuamos a ser o mesmo povo que, embora materialmente mais avançado, permanece maioritariamente alheado dos valores da democracia e do conhecimento científico e cultural, o mesmo povo que a minha geração viu encher Praças, como a do Comércio, em Lisboa, ou a da Liberdade, no Porto, com vivas a Salazar. 

Termino com outra pergunta: como é que, em democracia. um partido antidemocrático, que, todos sabemos, nega a liberdade, pode crescer e, até, conquistar o poder? 

Foi o que aconteceu na Alemanha, em 1933.
A. Galopim de Carvalho

3 comentários:

Ildefonso Dias disse...

Senhor Professor Galopim de Carvalho, ao ler este seu post fica-se a saber que o senhor nunca leu a conferencia "A Cultura Integral do Individuo" do Professor Bento de Jesus Caraça.

Ora, eu tinha para mim que isso seria algo improvável que pudesse ter acontecido. Mas não é assim.

O Professor Galopim de Carvalho não “subiu aos ombros” para ver longe, daquele gigante, alentejano, que foi Bento Caraça.

Nota1: As respostas às perguntas que formula e reflexões estão lá na conferência e respetivas notas. Está também porque é importante saber a distinção entre cultura e civilização.

Nota2: Existe ainda uma carta de Bento Caraça, que em nada acrescenta o que está na Conferência, mas que explica ainda o significado do que é o “despertar a alma coletiva das massas”.

Nota3: O “despertar a alma coletiva das massas” está muitas vezes longe das ideias do Professor Galopim de Carvalho quando escreve textos de reflexões e cariz político.


Cordialmente,

Socorro, a minha mulher tem um blog disse...

Belo texto! A Escola falhou um pouco, sim. A nossa democracia é ainda, digamos, pouco desenvolvida e isso tem repercussão na Escola, na educação portanto e em muitas outras áreas da sociedade.

Francisco J. A. de Aquino disse...

"Basta pensar em Trump e Bolsonaro para ver como é que um povo inculto se deixa arrastar por populismos e tudo o que eles escondem."
Doeu ler essa verdade. No Brasil temos o pior presidente eleito dos últimos 70 anos, cercado de ministros que são nulidades. Triste viver esses tempos por aqui.

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