quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Terapias alternativas: quando as portarias substituem as provas


Artigo de David Marçal e Carlos Fiolhais saído hoje no Pùblico: 

Foi publicada no dia 9 de Fevereiro no Diário da República uma portaria (45/2018) que regula os requisitos das licenciaturas em medicina tradicional chinesa. É mais uma peça de uma avalanche legislativa que começou em 2003 e que ganhou particular dinamismo a partir de 2013, no governo de Passos Coelho. O que esta legislação faz é colmatar a falta de provas científicas de eficácia e segurança de várias terapias alternativas, da homeopatia à medicina tradicional chinesa, substituindo-a por portarias e decretos-leis. Permite aos terapeutas alternativos pendurarem nas paredes dos seus consultórios cédulas profissionais passadas pela Administração Central de Saúde, o que induz o público no erro de pensar que estas têm fundamentação científica. Mas estão longe de a ter. Tem inteira razão a Ordem dos Médicos, que publicou um vigoroso protesto.

A medicina tradicional chinesa assenta numa filosofia pré-científica. Também existe uma medicina ocidental antiga, que não é científica. Cinco séculos antes de Cristo o grego Hipócrates defendeu a teoria dos quatro humores corporais: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. Para o romano Galeno, no século II, que acreditava na teoria de Hipócrates, havia dois tipos de doentes: os curáveis e os incuráveis. Os curáveis, dizia ele, curava-os a todos, enquanto os incuráveis morriam todos. Nos séculos XVI e XVII, Hipócrates e Galeno começaram a ser postos em xeque. Com o surgimento da ciência moderna, baseada na observação, na experiência e no raciocínio, derrubou-se a ideia de que a validade do conhecimento assenta na sua antiguidade. No domínio da geografia, apurou-se, logo no século XV, que muito do conhecimento clássico estava pura e simplesmente errado. Para Aristóteles as regiões equatoriais eram demasiado quentes para serem habitáveis, mas as viagens dos portugueses, que passaram o equador em 1475, mostraram que Aristóteles estava equivocado (já agora, Aristóteles também não acertou no número de dentes da mulher, decerto porque nunca pediu à sua para abrir a boca!). Galileu escreveu, em 1615, que tinha descoberto, com o seu telescópio, factos inteiramente contrários às convicções dos filósofos e que, por isso, eles deviam mudar de opinião.

Já no século XX foi ultrapassado o paradigma do médico guru, cujo conhecimento emanava da sua personalidade e da sua experiência, que não podia ser questionado. A moderna medicina, baseada nas provas, assenta numa ideia muito simples: deve ser avaliada a eficácia e a segurança de todos os tratamentos usando métodos estatísticos seguros. Uma afirmação não é verdadeira porque pessoas muito importantes a defendem ou porque está escrita em livros muito antigos, mas sim porque é provada. Existe uma hierarquia de provas, em que no nível mais baixo está a publicação de um caso clínico (que nada prova) e no mais alto as revisões sistemáticas da literatura médica, que retiram conclusões de todos os ensaios clínicos bem feitos acerca de um determinado tratamento. É por causa da medicina baseada na ciência que hoje vivemos mais e melhor.

Os terapeutas alternativos, quando se vêem confrontados com os maus resultados das suas práticas, invocam, tal como Galeno, uma aplicabilidade retrospectiva, restringindo-a aos casos em que aparentemente resultaram. Alguns deles, pretendendo ser mais sofisticados, alegam que também têm provas, socorrendo-se de uns poucos ensaios clínicos, escolhidos a dedo, por vezes mal feitos, e ignorando todos os outros. Mas, se estão mesmo convencidos de que é verdade aquilo que afirmam, aqui fica o desafio: abdiquem de todos os regimes de excepção e aceitem aprovar os tratamentos alternativos com a mesma exigência que é necessária para introduzir medicamentos ou tratamentos normais no mercado. Podem não gostar, mas isso é a medicina científica. O problema é que, se o aceitassem, seria obviamente o fim das suas terapias alternativas. Pois como se chama uma medicina alternativa que provou ser segura e eficaz? Simplesmente medicina.


A recente portaria das licenciaturas em medicina tradicional chinesa usa uma linguagem pré-científica que não corresponde ao entendimento actual dos seres vivos. Fala de coisas misteriosas como yin e yang, qi, ramificações jing lu, síndromes dos zang fu, nas quatro camadas e nos três aquecedores. Por redução ao absurdo poderíamos dizer que essas coisas existem porque constam da portaria 45/2018. Ora isto não faz qualquer sentido: é a ciência que deve informar o poder político e não o contrário.

David Marçal e Carlos Fiolhais

5 comentários:

Marcelo Melo disse...

1) Cuidado com a ideia de que algo que não encaixa nos métodos científicos existentes seja falso.
2) Se o passado não tem de pesar "cientificamente" mais do que o presente, o presente não poderá também pesar mais do que o futuro, e portanto não se pode matar no presente o que pode vir a ser verdade científica no futuro.
3) Talvez seja avisado dizer que não detemos métodos científicos capazes de avaliar tão fielmente a complexidade química/biológica implícita nas formulações naturais das medicinas tradicionais. Neste contexto, a abordagem científica existente deve ser vista como a "possível" (à luz do que se sabe), e não como a "derradeira". Essa certeza de fraude anula a chance do que pode vir ainda a saber sobre o assunto, o que dificilmente constituir um comportamento digno da boa ciência.
4) Sou contra fraudes, e esquema fraudulentos associados à saúde.

Deixo alguns trechos de literature científica que acredito poderem contribuir para uma mais equilibrada apreciação da complexidade desta questão:

"Brusotti et al. [57] published a pertinent review discussing the ethnopharmacological approach of occidental pharmaceutical research, from the vegetal raw materials to the final phytocomplex/single molecules of interest, with a special emphasis on characterization of the extracts biological activity.
SFE plays a significant role in this strategy, from the early but decisive step of selecting an extraction methodology to isolate the target ingredients
with intact bioactivity, i.e., avoiding degradation and decomposition reactions. Globally, the authors stress three key ideas: (1) The conventional
“one-disease-one-drug” paradigm is indefensible because of the growth of multigenic diseases; (2) traditional medicines represent a source of multitarget
therapeutics; and (3) the metabolites contained in complex plant extracts work synergistically and the extract biological activity is rarely associated to
a single molecule/metabolite. This clearly supports the rationale for issued patents and explains the interest in SFE as a sustainable and green separation
technology to protect, produce, and market theurapeutical extracts."

[57] G. Brusotti, I. Cesari, A. Dentamaro, G. Caccialanza, G. Massolini, Isolation and characterization
of bioactive compounds from plant resources: the role of analysis in the ethnopharmacological
approach, J. Pharm. Biomed. Anal. 87 (2014) 218 228.

* * *
"The effects of complex natural extracts are not caused by the activity of single compounds on specific targets, but they could be related to the synergic action of multiple constituents or to the multitargeting activity of several compounds [18]. Furthermore, a reductionist approach such as bioassay-guided fractionation could not account for possible prodrugs and synergistic effects, and it may lead to a loss of activity during the separation of complex extracts."

"Prodrugs are substances that are inactive in their native form that are converted to bioactive forms by metabolism. Because these reactions only occur in vivo, the activity of these compounds is not detectable in vitro unless the respective reactions are also considered [103]. For example, the reported inhibitory effect of ginseng on the human cytochrome P450 enzyme was not caused by natural ginsenosides, but rather by their metabolites [113]."

"In the literature, there are several examples to show that a whole or partially purified extract from a plant offers advantages over a single isolated ingredient. The primary examples are Ginkgo biloba, Piper methysticum (Kava-Kava), Glycyrrhiza glabra, Valeriana officinalis, Cannabis sativa, and Salix alba [134]."

Retirado de: Sut S Baldan V Faggian M Peron G Dall Acqua S, Nutraceuticals, A New Challenge for Medicinal Chemistry, Current Medicinal Chemistry, 2016 vol: 23 (28) pp: 3198-3223

Anónimo disse...

Que pseudo-defensores da ciência!
"(...) quando as portarias substituem as provas" é uma afirmação que revela apenas o modo como actualmente a ignorância substitui a ortodoxia. A realidade é que há um fosso crescente entre os médicos e a Ordem que afirma representá-los. E a prova, essa está por todo lado. A medicina era dos médicos, entretanto, foi tomada de assalto pelo "progresso", e naturalmente há um grande mal-estar nesse facto, e nas distorções manipulativas que essa distorção tem vindo a introduzir.

A ciência deveria informar o poder político e não o contrário, é certo, mas na realidade, o que se passa é a ciência estar a ser usada para controlar o poder político, e é de saudar que este não tenha sido rasteirado, desta vez.

Carlos Ricardo Soares disse...

«Com o surgimento da ciência moderna, baseada na observação, na experiência e no raciocínio, derrubou-se a ideia de que a validade do conhecimento assenta na sua antiguidade.»

Não é só uma questão de antiguidade. Embora tenham sido os "médicos" a lançar, na antiguidade grega, o método científico, e podem ler um livro interessante "Principium Sapientiae", de F.M. Cornford, em que estou a basear o meu comentário, o atomismo de Epicuro, por exemplo, apresentava uma explicação puramente "racional" para coisas que lhe pareciam obscurecidas pela mitologia e pela superstição. Para Epicuro, "são os sentidos que revelam o mundo material das coisas tangíveis e estas são, quanto a ele, as únicas realidades". Não obstante, Epicuro, faz uma afirmação categórica, de dogmatismo extremo, do atomismo como a única teoria compatível com os fenómenos. Ora, a teoria atomista não é uma hipótese que possa ser verificada pela sensação, nem se põe a questão de ela ser rejeitada como falsa.
A teoria empírica, materialista, do conhecimento dos "médicos" antigos e do próprio Epicuro, parece ceder à crença na capacidade que temos de projetar o espírito para fora do corpo e de apreender conhecimentos que jamais podem ser revelados através dos sentidos.
Aliás, mais de um século antes de Epicuro, o âmbito da filosofia natural era definido como limitado aos problemas insolúveis que estão para além do alcance da observação dos sentidos.
A teoria empírica do conhecimento foi uma teoria médica, formulada pela primeira vez por Alcméon.
O platonismo, por sua vez, desenvolvia aquela crença de que o conhecimento é algo mais do que observação, experimentação e raciocínio.
Epicuro não chegou à confirmação da sua teoria.
Aliás, uma boa parte dos iluministas morreu sem assistir à revolução francesa.

Cisfranco disse...

O poder político, com toda essa legislação em favor das medicinas alternativas, só demonstra grande ignorância e, com essas leis coloca tudo dentro do mesmo saco enganando o cidadão comum. Afinal se esta ou aquela treta está reconhecida pelo Estado e há até cursos nas Universidades é porque tem valor. Coisa diferente é um qualquer cidadão, por sua conta e risco, poder experimentar a treta que quiser. Agora gastar-se dinheiro público para promover tretas sem suporte científico só de ignorantes. Enfim o Prumpt também acha que o aquecimento global é treta dos chineses...

Anónimo disse...

O Trump sabe que o o aquecimento global é a realidade uma Pequena Idade do Gelo, uma das muitas que já surgiram no Passado.

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