domingo, 18 de fevereiro de 2018

"ESPAÇO PARA ALGUNS"


Encontrei o livro numa feira de velharias a um euro. Comprei-o não apenas pelo preço mas também e sobretudo pelo título, bem achado. Aberto o livro logo percebi que era uma peça de teatro de ficção científica de uma autora nacional, Maria da Graça de Athayde (1906-2001), dada à estampa, nas Edições Panorama, do SNI (a agência de propaganda do regime anterior), em 1962. Foi o primeiro livro da autora, publicado por ter ganho o prémio "Originais manuscritos de teatro" do SNI de 1961, mas ela haveria de publicar outros. Não conhecia o nome da autora, mas, pesquisando na internet, encontrei no mercado normal uma única obra, "Três mistérios" (Sopa de Letras), embora também estivesse noticiada a republicação em Ponta Delgada (a autora é açoriana) das duas memórias em três volumes, intituladas "Uma vida qualquer", com prefácio de Guilherme de Oliveira Martins, que parece ser um documento precioso para se conhecer a vida lusitana nos tempos do Estado Novo. A mãe da autora, Maria Emília Brum do Canto Hintze Ribeiro, era bisneta de José do Canto (estudado por Maria Filomena Mónica) e sobrinha neta do Conselheiro Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro, que foi ministro nos últimos anos da monarquia. Um filho foi membro do governo de Marcello Caetano. Um seu neto preside hoje à Ordem de Malta.

 Passado algures no século XXI, o enredo de "Espaço para Alguns" conta os preparativos de uma viagem à Lua, o primeiro voo comercial ao nosso satélite, depois de alguns voos pioneiros. Lembro que terá sido escrita no início da era espacial pouco antes do presidente John Kennedy ter anunciado que os americanos haveriam de ir à Lua ainda na década de 60 (12 de Setembro de 1962 num estádio do Texas). O 1.º acto passa-se numa "noite do futuro, no último andar de uma casa do futuro". A circunstância é a festa dos cem anos de um senhor, António Vasconcelos de seu nome, já com bisnetos, que vai viajar para a Lua. O jantar de anos é português à moda antiga, sem "as "facilidades enlatadas, comprimidas, enriquecidas de vitaminas e coisas sintéticas" que nesse futuro imaginado se usavam: Era um "jantar honesto", com canja tradicional, arroz de pato, peru recheado, porco assado e, à sobremesa, o "imprescindível leite creme".  O neto Salvador, de 37 anos, comenta que nunca na sua vida tinha visto nada disso, habituado que está a refeições de comprimidos.   A reunião familiar é uma festa de despedida do velho, que é um visionário, e quer ir para a Lua. Pede, em discurso, para ser recordado como um avô "cheio de sonhos irrealizáveis, transbordante de utopias! Era aquele velhinho centenário que antes de partir para a Lua já lá estava". Claro que a acção, recheada de peripécias sentimentais, é um bastante "naif", mas serve para ver como na altura se imaginava o futuro. Havia um regime capitalista semelhante ao do tempo da autora que lançava "impostos de emergência" mas era maior o papel da mulher: os diplomatas eram equipas de um homem e uma mulher. O 2.º acto passa-se numa repatição do Ministério do Espaço.  Denotando um certo feminismo da autora, surge uma senhora engenheira, Stella Margarida d'Alte, que ajudou a construir a nave espacial e que foi sorteada para, em nome da equipa construtora, viajar. Stella tem 30 anos, é "bonita e desempenada", mas veste com severidade".  Stella reencontra aí Salvador, que  conhecia da infância. É um reencontro romântico, e ("spoiler alert") no final a engenheira acaba por ficar na Terra, acompanhada pelo seu "salvador" (a engenheira é substituída pelo primeiro suplente, o "José Ninguém"). O 4.º acto passa-se numa "aerogare do futuro",  um aeroporto espacial que imita um aeroporto dos anos 60. A bordo, além do velho, acabam por partir um industrial, Samuel Dourado, que subsidiou o projecto, uma corista. Luna Violante,  que lhe fazia companhia que, trocando as voltas ao seu par, se apaixona por um outro passageiro bem-falante, o Tristão Félix (vagabundo, com formação em filosofia) e o Padre Mateus Homem. Há aqui alguma crítica social, ou melhor de costumes. Aparece também um representante do governo que vem apresentar cumprimentos de despedida.  A nave parte. A última fala é a de Stella, que se sente salva na Terra: "Leva-me para os teus dias, Salvador..."

Trata-se, portanto, um enredo romântico com um fundo futurista. Não foi uma obra literária durável. Trago-o aqui porque, estando esquecido nos alfarrabistas, e não sendo muito rica a ficção científica portuguesa, este será um dos textos pioneiros de ficção científica teatral em português, pelo menos, sobre temas do espaço.  Ingénua, mas é uma peça engraçada.             

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