domingo, 18 de fevereiro de 2018
Dos Castelos em Espanha do meu Pai ao meu País dos Sonhos Azuis
"Des Chateaux en Espagne de mon Père à mon Pays des Rêves Bleuscooperativa aldoa5r
é o título do último livro de Manuel Paiva (na imagem), professor de Física emérito da Universidade Livre de Bruxelas, que passa parte do seu tempo nos Estorninhos, uma aldeia da Serra Algarvia, com uma vista para o mar que está retratada na capa. O livro, pequeno (83 páginas) e em edição de autor (Tipografia Tavirense, Outubro de 2017), não tem ISBN. Julgo que o autor só o fez para o distribuir a família e amigos, embora saiba que está em preparação uma edição em português.
Trata-se de um livro de memórias, largamente auto-biográfico, mas que cruza os temas da vida familiar do autor com informações muito interessantes sobre o espaço e a descoberta espacial (designadamente sobre as novidades na exploração de Marte, de cometas, de Saturno e suas luas, e de planetas extraterrestres), assuntos em que Manuel Paiva se tornou especialista e nos quais é excelente divulgador. "Construir castelos em Espanha" é uma expressão francesa que significa "fazer projectos irrealizáveis", "ter esperanças quiméricas". A expressão resume os vários negócios e ideias de negócio do pai do autor, comerciante do Porto em vários ramos, que aparece num retrato antigo na contracapa ao lado da mãe. Por outro lado, o país dos sonhos azuis é Portugal (o céu azul do Algarve enche a capa), mas remete também para o imaginário infantil, pois nas histórias de Winnie the Pooh (o Ursinho Pooh) que os netos de Manuel Paiva tanto apreciam existe uma floresta dos sonhos azuis. O livro cobre, portanto, o arco familiar, que vai da recordação mais antiga do pai, a montar a cavalo na Cooperativa da Freguesia de Aldoar, Porto, até à família internacional contemporânea, pois Manuel emigrou nos anos 60 para a Bélgica onde casou com uma professora de Física de origem russa e criou a sua família.
A referida cooperativa tem raízes familiares pois foi fundada por um tio-avô do autor (do ramo da mãe, um político do tempo republicano, anticlerical e maçon como se usava na época), numa casa dos seus antepassados, em frente da sua casa de infância, na Rua da Vilarinha. O pai vem de uma família de comerciantes conservadores, tendo casado em 1930. Manuel Paiva nasceu em 1943, quando o pai era chefe de contabilidade da Casa Ferreirinha do Porto. É um pouco da história de Portugal no tempo do Estado Novo que o livro trata, vista por um prisma familiar, incidindo particularmente sobre a pequena burguesia do Porto. Durante a Segunda Guerra Mundial o pai deixou a casa de vinho do Porto onde trabalhava, onde podia ter ficado até uma tranquila reforma, para criar uma empresa que produzia embalagens para o vinho do Porto. Mas o negócio faliu, como haveriam de falir vários outros negócios em que se meteu, praticamente todos. Haveria de ser sócio num negócio de tinturaria, que lhe correu mal por ter sido enganado por outro sócio. Haveria de ser proprietário do Aviário da Vilarinha nos anos 50, que seria aproveitado mais tarde, falhada a criação de frangos, para criar coelhos e chinchilas, o que também falhou. Entrou na pequena política ao tornar-se presidente da Junta de Freguesia de Aldoar, lugar do qual de demitiu. Tentou, sem sucesso, contsruir uma máquina de palitos de dentes. Criou uma firma de "import-export", que importou a cerveja Carlsberg mas que não conseguiu exportar botões de uma fábrica local. As ideias do pai Paiva eram, por vezes, mirabolantes: quis, por exemplo, que o filho seguisse Engenharia Química para fazer comprimidos de vinho do Porto destinados à exportação para Japão. Mas o filho inscreveu-se antes em Engenharia Electrotécnica na Universidade do Porto, curso que não completaria por entretanto ter ido para a Bélgica estudar Física (o que não o impediu de mais tarde ser membro convidado do Conselho Geral da Universidade do Porto). Pegando numa ideia lida num jornal belga por ocasião do casamento do filho, o pai tentou criar uma agência matrimonial em Portugal, o que foi mais um empreendimento mal sucedido.... Manuel Paiva esteve largos anos sem vir a Portugal nos últimos anos do Estado Novo, mas voltou com a esposa em 1973 quando já era cidadão belga e portanto não podia ter problemas com o serviço militar português. O pai ensaiou na época criar uma instalação de energia solar, mas o filho, de posse de conhecimentos de física, fê-lo descer a terra. O pai não desistiu do seu espírito inventivo: lembrou-se de construir uma turbina eólica de eixo vertical... Confidenciou ao filho a certa altura que gostaria que ele dissesse que o pai tinha imaginação, frase com a qual o filho não teve qualquer relutância em concordar. O pai tinha uma imaginação transbordante. Mais tarde, inventaria um jogo parecido com o "scrabble", que chegou a propor, mais uma vez sem sucesso, à televisão portuguesa. Nos últimos dias da sua vida escreveu artigos anti-religiosos e propôs-se mesmo fazer uma associação de ateus, para a qual chegoua redigir um manifesto. Ainda escreveu um livro sobre Fátima, que nunca chegou a sair. Em 1999, morreu no sono, como desejava, depois de ter escrito as suas últimas vontades. Paiva fala neste seu livro com carinho da sua família: fala mais do pai do que da mãe, mas deixou linhas muito calorosas sobre a mãe, que o aconselhou sempre a deixar o pai ocupado com as suas lucubrações.
Este livro, muito curioso e muito agradável de ler, junta-se a outros do mesmo autor, que têm circulação bem menos restrita e que, nalguns casos também têm aspectos auto-biográficos: "Diálogos sobre Portugal", com Mariana Pereira, Livros & Leituras, 1998, com tradução saída em Bruxelas prefaciada por Hubert Reeves; "Como respiram os astronautas", que é o volume 136 da colecção Ciência Aberta da Gradiva, 2004, reeditado mais tarde com algumas mudanças na mesma colecção; "Descobre o Céu", um livro de ciência infantil, com Constança Providência, Nuno Crato e eu próprio, Bizâncio, 2005; "À espera de Godinho", com Amadeu Sabino, Jorge de Oliveira e Sousa e José Morais, Bizâncio, 2008; e, "Portugal e o Espaço", volume 59 dos ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2016. O autor escreve com fluência, num estilo bastante vivo e atraente, por vezes com fina ironia. Vê o país à distância muito melhor do que muitos vêem ao perto. Este é um depoimento muito humano que aproveita para divulgar a ciência (em capítulos que aqui não resumi) ao mesmo tempo que apresenta a extraordinária vida da sua família, centrada na figura do seu pai.
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