Reproduzo abaixo a recente entrevista de Mariana Nocodemuns a Gilles Lipovetsky, publicada em 17 de Setembro do corrente ano no jornal «O Globo» online e intitulada Precisamos formar pessoas que pensem.
Este filósofo francês tem sido um dos intelectuais europeus que mais atenção tem dado às reformas educativas em curso e, no meu entender, vale a pena ler o que ele tem a dizer sobre o assunto. As palavras que constituem o título deste post são da sua autoria.
Este filósofo francês tem sido um dos intelectuais europeus que mais atenção tem dado às reformas educativas em curso e, no meu entender, vale a pena ler o que ele tem a dizer sobre o assunto. As palavras que constituem o título deste post são da sua autoria.
O senhor tem falado sobre o “desinvestimento” público e a perda de sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas. Como isso afeta os sistemas de ensino?
Já há alguns anos as instituições públicas estão em crise, e as pessoas não confiam na sua legitimidade. Mas o sistema educativo está relativamente protegido. Mesmo os jovens com menos acesso à educação compreendem que a escola é necessária e a veem como sinônimo de progresso. O problema é que os sistemas educativos funcionam bem para as elites, mas não para os que nascem em situação desfavorável, não só no Brasil, mas mesmo na França e até na Inglaterra.
Há jovens que passam dez anos na escola sem aprender a ler, que são incapazes de compreender uma linha de texto. Como esperar que essa pessoa encontre um lugar na sociedade? Por isso a ideia atual de que a escola fracassa enquanto forma de ascensão social.
A educação precisa ser capaz de permitir que os mais fracos socialmente participem de verdade do movimento democrático. E isso só se resolve investindo nas primeiras séries, nas crianças bem pequenas, pois é algo que não se consegue corrigir depois que crescem. Também é preciso dar atenção maior às escolas em áreas mais pobres, investindo em classes menores e educação mais individualizada para que essas crianças possam ter sucesso.
Seu livro mais recente fala sobre a “civilização da leveza”, na qual tudo é virtual, lúdico e sem profundidade. Como a educação se insere nesse contexto?
Fala-se de uma escola divertida, onde os alunos não se entediem, mas aprender é difícil, exige esforço, treinamento, repetição. Precisamos aceitar que educação não é algo passível de prazer ininterrupto. Mesmo na civilização da leveza, nem tudo pode ser leve o tempo todo. Precisamos formar pessoas que pensem, que criem, que façam o mundo progredir. E não se faz o mundo progredir com leveza. É necessário uma escola respeitosa, humanista e compreensiva - não leve. Provavelmente teremos que rever todo o método pedagógico, corrigir aqueles que não falam mais à repetição e à memorização, e criar estruturas rígidas para ajudar não só os alunos da elite, mas todos a prosperarem. Temos necessidade de uma educação que recomponha uma cultura geral, com currículo mais rico, que permita interpretar, argumentar, expressar um pensamento racional e coerente. O vício da leveza faz com que alunos trabalhem copiando e colando o que encontram na internet. O resultado é o caos. Cabe à escola lutar contra o caos da facilidade.
Qual o papel da educação nesse mundo onde o acesso à informação parece ilimitado?
Penso que a boa educação é aquela que permite à pessoa distinguir e hierarquizar a informação. A escola deve oferecer ferramentas que permitam fazer a distinção entre o valor do conteúdo de um blog e um texto de Platão, entre a notícia de um jornal sério e a daquele no qual não se pode confiar. O conteúdo está disponível facilmente, mas e depois? O conhecimento do fato é importante, mas não tanto quanto o do quadro conceitual, que permite entender o que pesquisar e estudar. Quando se tem repertório intelectual, a desorientação frente à oferta de informações é menor. Deve-se ensinar a ser inteligente, pois a memória hoje está no computador, mas o pensamento, não. E, sem o pensamento, estamos perdidos.
Onde fica a educação na era do consumo de experiências?
O ensino precisa fugir do modelo de consumo experiencial, cada vez mais comum. Aprender não é experiência, é cognição. É muito grave que a educação se transforme em consumo, embora muitas pessoas a entendam assim. A escola é onde se forma o espírito, é o que permite aos jovens acessar o mundo que eles não conhecem. Você consome aquilo que conhece, que deseja, mas a educação existe para fazer sair do seu próprio mundo, para abrir outros universos.
O senhor fala que a exigência absoluta da sociedade do século XXI é a educação. Qual a responsabilidade do Estado nesse cenário, principalmente em países de grandes desigualdades sociais, como o Brasil?
Educação não é um luxo, mas uma exigência em uma cultura democrática e humanista. A escola deve oferecer as ferramentas elementares, como ler, escrever e contar, mas também permitir o desenvolvimento global do indivíduo. Em uma sociedade muito desigual, com pessoas sem acesso à educação e escolas de níveis muito diferentes, não vamos atingir esse dever com pequenas medidas pedagógicas e, sim, com grandes escolhas políticas. É responsabilidade do Estado desenvolver o sistema educativo de forma a corrigir as desigualdades sociais. Não para suprimi-las, mas para garantir que elas não impeçam a mobilidade social. Uma política inteligente precisa fazer um esforço considerável para impedir que a educação se transforme em bem de consumo ou luxo. O orçamento que os governos dedicam aos sistemas de ensino precisa ser entendido não como gasto, mas como exigência, e é necessário investir na qualificação dos professores. Sem dinheiro e sem educadores competentes, não há escola de qualidade. A educação deve ser para todos, e é um perigo para o bem democrático que seja absorvida pela força do dinheiro.
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