domingo, 30 de abril de 2017

"Mentimos aos alunos sobre o seu verdadeiro nível"

Augustin d'Humières é um professeur francês de latim e grego com uma reflexão continuada sobre a escola. Em recente entrevista (aqui), a que a jornalista deu o título Mentimos aos alunos sobre o seu verdadeiro nível, explica o sentido do seu novo livro Um pequeno funcionário.

"Augustin d’ Humières é um militante da igualdade republicana. Este professor de 40 anos bate-se todos os dias por essa igualdade. Desde 1995 ensina grego e latim no liceu Jean-Vilar em Meaux (Seine-et-Marne) num bairro difícil. 

À custa de exigência, ele consegue a adesão dos seus alunos, que, por sua vez, vão aos colégios dos arredores defender a causa das línguas clássicas. Contou esta aventura no seu livro anterior (Homero e Shakespeare nos subúrbios ed. Grasset, Paris, 2009). 

Nesta nova obra ao mesmo tempo enraivecida e cheia de humor (Um pequeno funcionário, ed. Grasset, Paris, 2017), descreve a indigência cultural da maior parte dos estudantes liceais, a quem a escola faz, contudo, acreditar que estão aptos a ter êxito nos seus estudos superiores e a encontrar um emprego. 

Neste naufrágio, ele aponta a irresponsabilidade dos sindicatos e da hierarquia da educação nacional, e toda a negação institucional que envolve o colapso dos resultados escolares. Para ele, existe uma ligação entre esta falha e a eclosão do djihadismo. Tal análise feita ao bisturi, viva e divertida, devia servir de meditação a todos os candidatos à eleição presidencial. 
Julga de modo severo o nível de muitos dos alunos que saem do liceu... Os alunos aprendem aquilo que nós lhes dizemos que aprendam, e muitos seguem muito docilmente as recomendações que nós lhes damos. Hoje uma grande maioria dos alunos com o ensino liceal completo é capaz de redigir duas páginas num francês correcto? Tem um domínio adequado, pelo menos de uma só língua viva? Tem uma cultura histórica e científica mínima? Muitos estudos sérios demonstram que não é o caso. E isto não é ser “derrotista”, isto não significa necessariamente que se pensa que “antigamente era melhor”. É apenas uma constatação. Discute-se muitas vezes sobre os “150 000 abandonos”, os que deixam a escola sem formação nem diploma, mas que é feito daqueles que se empenham, daqueles que acreditam na escola, daqueles que obtêm o bac? Sou examinador no bac de francês há 20 anos e estou, portanto, muito bem colocado para ver o que os alunos retêm de 10 anos de estudo da língua francesa, dos seus autores, dos seus textos. Para uma boa parte deles, a resposta é: nada. E não são os alunos os principais responsáveis. Muitos aprendem conscienciosamente aquelas famosas “fichas”, que eles “vomitam” no dia do exame para as esquecer logo de seguida. Cada um pode fazer a experiência: peça a um jovem que acabou o liceu que cite um texto, um verso, uma palavra que o sensibilizou particularmente na sua escolaridade. Há uma diferença enorme entre aqueles que beneficiam de um ambiente familiar favorável, que lhes permite escolher, completar, aprofundar o que vêem na escola e aqueles que, por seu lado, nada têm. 
Fala de um taylorismo escolar: os liceus de elite, e os outros, com uma repartição bem definida de tarefas à saída... Este taylorismo escolar, experimentei-o bem de perto, passando de uma escolaridade no liceu Henri-IV para a minha profissão de professor num liceu da grande periferia. No liceu Henri-IV, no ano terminal de estudos literários, os alunos não se interrogavam se iam para as classes preparatórias, mas que preparatórias deviam escolher. Quando cheguei ao liceu Jean-Vilar de Meaux, para onde fui nomeado em 1995, tinha dois alunos numa classe inteira do ano terminal de estudos literários, que sabiam da existência das classes preparatórias. Há hoje liceus para quadros dirigentes e liceus para assalariados. Compreende-se melhor o pânico dos pais perante a escolha de um estabelecimento para os seus filhos. Esta repartição de tarefas está tacitamente interiorizada pelos alunos. Quando um dos meus alunos quer fazer estudos comerciais, diz-me timidamente que vai experimentar um diploma de técnico superior; a alguns quilómetros dali, um outro terá perfeitamente em mente preparatórios comerciais. Há aqueles a quem a família mostra o caminho a seguir, os que não têm nenhuma dificuldade em descodificar o sistema, e os outros, os que escolhem a sua orientação completamente sozinhos, no meio de esquemas de um Centro de Informação e de Orientação. E ai daqueles que querem ir para lá do objectivo profissional que lhes está reservado. Esses, os que se atrevem a querer ser médicos ou advogados, por exemplo, desde que não estejam num liceu previsto para isso, vão pagar um pesado tributo. Como lhes mentiram sobre o seu nível real, não é no liceu, mas nos bancos da universidade, quando já é muito tarde para colmatar as falhas, que descobrem a extensão daquilo que não aprenderam. Para esses, ou antes para essas, pois são muitas vezes as raparigas que acreditam de todo o coração na função emancipadora da escola, haverá uma longa lista de reorientações que acaba muitas vezes numa sucessão de pequenos trabalhos. São milhares estes alunos meritórios, cujas famílias depositaram uma confiança absoluta em nós. Deixámo-los cerrar os dentes sobre os seus sonhos e ambições. Não subestimemos a extensão desta imensa confusão e da raiva que gerou em numerosas famílias. 
Mas critica também a discriminação positiva, dada por algumas instituições, com um concurso menos difícil proposto aos alunos saídos dos liceus populares... Tenho muitas reservas sobre o próprio princípio de discriminação positiva. Os meus alunos merecem mais do que uma porta entreaberta. Comecemos antes por ser honestos com eles dizendo-lhes bastante cedo o nível de exigência a atingir, e o que há para aprender. Proponhamos regras de jogo equivalentes, e veremos que muitos não terão necessidade de uma porta entreaberta. Não me parece que se tenha recebido Lilian Thuram ou Hatem Ben Arfa nos seus centros de formação dizendo: “Sabes, é o pequeno que vem de Bondy, ele tem muito mérito, é preciso que treine à parte para atingir o nível!” O que nós fomos capazes de fazer no domínio do desporto, seremos então incapazes de o fazer no nosso sistema educativo? 
Como explicar as falhas na transmissão do saber no liceu? Penso que em larga medida o nosso sistema educativo está hoje pensado e organizado para não transmitir nada aos alunos, a não ser um saber volátil, de ostentação, absurdo. Com os programas, com a repartição dos horários de curso, com as orientações dadas aos alunos, com a parte destinada ao projecto e à experimentação, o sistema não pode transmitir grande coisa, a não ser para os professores que se afastam daquilo que se lhes pede que façam, o que é ainda o caso de muitos de nós. 
Estabelece uma relação entre o colapso do ensino e a eclosão do djihadismo? Não sou o único a estabelecer essa aproximação. A ideia do livro decorre de um forum de professores de uma escola de Aubervilliers que escreveram alguns dias após o ataque ao Charlie Hebdo: "Somos os pais de três assassinos” (…) acho pertinente perguntar porque é que tantos jovens franceses, educados na escola republicana são tão receptivos a discursos tão violentos, tão rudimentares, tão desesperados. O que foi que a escola lhes transmitiu para se defenderem face às redes terroristas de que se tornam presas? Uma língua? Uma igualdade de oportunidades? Textos? Palavras? Deixamo-los completamente desamparados, sobretudo aqueles que pertencem a famílias que não têm os meios para impedir a deriva dos seus filhos. Abandonámos o terreno que outros acabaram por ocupar. Repetimos, de uma forma ilusória, que somos um país laico. Mas o que há nesta laicidade que interdita, que relega para a esfera privada tudo o que é da ordem da crença filosófica, religiosa ou espiritual? Em torno de que conteúdo vamos construir um ideal comum, se tudo o que é essencial é relegado para a esfera privada? O que vão encontrar as novas gerações nesta laicidade? Uma concha vazia, longe do ideal que, não há assim tanto tempo, animava aqueles que lutaram para tornar o nosso país numa república laica. 
Considera que os professores caucionam este estado de coisas? Responsabilizar o professor que batalha sozinho na sua sala de aula, procurando, além disso, responder às exigências da nova reforma, não será a melhor coisa a fazer. Sou menos indulgente para com os sindicatos. Eles constituem um elo indispensável na cadeia, para produzir as mudanças, informar sobre as carreiras e promoções, defender as pessoas… Não é possível ter um lugar central na acção colectiva, na gestão de recursos humanos e demitir-se de toda a responsabilidade no equilíbrio do sistema. Contudo, as organizações sindicais nunca se questionam. Com alguma má-fé, criticam a acção do ministério, quando toda a gente sabe que os ministros têm grande cuidado para não os aborrecer. Os professores assistem a este jogo sem poder fazer grande coisa. 
O que propõe, então? Uma escola mais presente na vida do aluno, sobretudo nos meios onde não há outros serviços públicos nem ofertas culturais. Uma escola aberta de segunda a sábado das 8 horas às 19 horas. Não assegurada, bem entendido, somente por professores. Frequentemente, o tempo passado fora da escola é um tempo perdido, dedicado aos écrans e à desconcentração, é um tempo em que se aprofundam as desigualdades. É preciso que a escola se torne numa cidadela onde o aluno possa fazer o seu trabalho, encontrar adultos que o ajudem, ter uma oferta cultural de relevo. É o que nós fazemos em Meaux para os alunos do ensino básico, que são apoiados por professores aposentados e por futuros professores. É preciso uma articulação mais clara entre este projecto e a componente lectiva, destinada à transmissão de conhecimento, determinando as prioridades: dedicar mais tempo ao francês, à história, às ciências. Não é necessário aprender três línguas vivas, o mais importante é falar uma correctamente.Penso também ser necessário dar mais espaço à cultura e às artes. Qualquer subsídio público destinado à cultura deve ser acompanhado de uma contrapartida para a escola porque a urgência está lá. A escola não precisa de muito mais dinheiro, precisa de competências e de talentos. O desafio a este nível é enorme." 
Entrevista realizada por Caroline Brizard e publicada em 17 de abril de 2017. Tradução de Isaltina Martins e de Maria Helena Damião.

5.ª Aniversário do Museu do Quartzo em Viseu





RESUMO DA MINHA INTERVENÇÃO

A luz no Universo e na Terra

Carlos Fiolhais

Praticamente só conhecemos o Universo graças à luz que dele nos chega. No início era a luz – o Big Bang  foi, no início, uma intensa “explosão” de energia, podendo nós chamar  luz ao campo unificado primitivo, sobre o qual pouco sabemos. O Universo, aos 150.000 anos, passou a estar todo ele envolto em luz – a radiação térmica de fundo, hoje luz de microndas – quando por todo o lado se  formaram os átomos. Logo que, mais tarde, os átomos se juntaram para formar as primeiras estrelas, tinha o Universo cem milhões de anos, a luz das estrelas, de todos os comprimentos de onda, passou a ser possível. A Terra não poderia ser o planeta que é sem a luz que vem da sua estrela, o Sol, que hoje tem cinco mil milhões de anos. A vida em geral e o homo sapiens, em particular, só existem graças à luz do Sol.  A emissão de luz solar tem o pico na zona do visível, isto é, emite mais a luz que vai do vermelho ao violeta, à qual os nossos olhos se adaptaram no longo percurso de evolução biológica. Hoje sabemos, na Terra, criar todos os tipos de luz, visível ou invisível,  só porque aprendemos a sua natureza e diversidade observando o vasto Universo de que somos parte.  

sábado, 29 de abril de 2017

Nas escolas do futuro não se vêem professores.

"A educação dos nossos filhos deve ser uma componente importante
do seu desenvolvimento (...). Há escolas que romperam com o
ensino tradicional e exploraram também a alteração do design dos
espaços educativos (...) mostramos alguns exemplos de como podem 
vir a ser as escolas do século XXI; amplas, arejadas e luminosas… 
com muito espaço para que os jovens estudantes 
expressem as suas emoções e estimulem o seu desejo de aprender."
Frase retirada daqui.

A história e a sociologia da educação, evidenciam uma tensão que, pelo menos desde a Antiguidade, se tem feito sentir, ininterruptamente, sobre a escola. Essa tensão pode ser traduzida do seguinte modo:

ela é, por um lado, afirmada como uma via - ou, mesmo como a via - de acesso ao conhecimento erudito, esse que permite o pensamento esclarecido, livre e responsável 
e,
por outro lado, como um instrumento doutrinal, ao serviço de forças de poder, especialmente de ordem religiosa e política.

Com a progressiva expansão da escolaridade obrigatória (ainda bem que assim é), assumida pelos Estados (também ainda bem que assim é), criou-se uma nova realidade que, sendo inequivocamente positiva (pelo que não podemos voltar atrás), tem tido um reverso pouco destacado e ainda menos discutido. Vejamos.

Uma boa parte da população mundial (alunos, suas famílias e também comunidades de pertença) passou a estar ligada à escola, tornando-se esta particularmente apetecível a quem interesse, para proveito próprio, mudar mentalidades. Por isso, o poder para decidir os seus desígnios tem sido reivindicado por diversas forças de pressão alheias ao intento educativo, forças que, actuando de forma dissimulada mas eficaz, têm colhido aceitação social e sido legitimadas pelo poder político.

Os grande ideólogos da educação são agora economistas, arquitectos, designers, tecnólogos... directa ou indirectamente ligados a empresas. Fazem previsões do retorno financeiro deste ou daquele currículo e corrigem os que daí se desviam, concebem os espaços e o mobiliário, determinam os equipamentos necessários e os conteúdos que neles serão integrados... Tudo isto em função de critérios "centrados nos alunos", como a agradabilidade, o conforto, a colaboração, o interesse, a possibilidade de descobrir e de criar... A auto e hetero-aprendizagem é, obviamente, lúdica e divertida.

Estes especialistas emergentes, com ou sem conhecimentos de educação, impõem, por delicadas palavras, uma ideia de escola que, se seguida "à risca", salvará todas as crianças e, com elas, a humanidade! 

Mas há uma condição: que o professor esteja afastado! A boa escola é aquela em que o professor não esteja! Veja-se a imagem acima, retirada de um artigo muito sintomaticamente intitulado "Assim têm de ser as escolas do século XXI". 

Neste e noutros artigos que tenho lido, bem como em prospectos online que tenho visto a anunciar "escolas maravilhosas" que emergem por esse mundo fora, a sua ausência é recorrente e, certamente, intencional.

Aceitamos confiar as crianças e os jovens uns aos outros, esperando que os espaços e equipamentos sofisticados operem o milagre da aprendizagem. 
Esperamos demais, penso eu, esperamos o impossível. Até porque no "postal ilustrado", que remete para um campo aberto, amplo, asséptico, luminoso, vislumbram-se poderes que serão mais eficazes sem a presença do professor, sobretudo se ele for um intelectual crítico, como deve. O leitor perceberá o que digo se olhar com atenção para esta segunda imagem.

Audição parlamentar sobre o Acordo Ortográfico


Audição parlamentar de Helena Carvalhão Buescu, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no âmbito do Grupo de Trabalho para a Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (18/04/2017) aqui.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

UM CLÁSSICO SOBRE SIMETRIA



Meu artigo mo último "As Artes entre as Letras":

A Gradiva vai publicar em Maio um pequeno livro que é uma obra clássica sobre o tema da simetria, Simetria, da autoria do matemático alemão Hermann Weyl (1895-1955). Tratando a matemática da simetria – o ramo da matemática que descreve a simetria chama-se teoria de grupos, um ramo que toca noutros como a geometria, o cálculo e a álgebra  -  o tema aparece por todo o lado nas ciências: na física, na química, na biologia, nas geociências, na medicina. É precisamente um tour panorâmico da simetria que Weyl nos oferece naquele seu livro, não dispensando alguma matemática,  mas percorrendo as outras ciências e prestando particular atenção à arte, à filosofia e à cultura. Weyl é um sábio que conhece os clássicos. De resto, só quem conhece bem os clássicos pode escrever um clássico, qualquer que este seja.

O livro foi escrito em 1951 para difundir um conjunto de  palestras feitas pelo autor no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, onde ele investigou e ensinou até se reformar precisamente nesse ano. Na introdução Weyl chama a esta obra o seu “canto do cisne”. O livro foi publicado em 1952 pela Princeton University Press e, facto espantoso, continua ainda hoje nas livrarias, não apenas na língua inglesa original como também noutras. A edição em português vem apenas ampliar a recepção internacional de um pequeno livro de um grande autor, um dos maiores matemáticos do século XX.  A longevidade do livro deve-se não apenas ao facto de a matemática ser eterna,  mas também ao interesse geral que o tema da simetria suscita, para já não falar na apurada inteligência do autor, bem manifesta na sua capacidade de colocar em poucas linhas o que a outras exigiria muitas.

A atracção do ser humano pela simetria manifesta-se de forma muito visível, como Weyl bem 
percebeu, no seu repetido aparecimento nas artes: principalmente nas artes visuais mas também na música. Simetria significa, de um modo geral, semelhança, regularidade, harmonia.  Em matemática, o significado é mais preciso:  uma certa operação  deixa algo invariante, por exemplo, rodar uma circunferência de qualquer ângulo não muda nada, assim como não muda nada rodar um quadrado de ângulos de 90, 180, 270 ou 360 graus. Na física, na química e na biologia, a simetria tem o significado matemático: por exemplo, uma molécula de água tem simetria de reflexão, é um exemplo de simetria esquerda-direita ou simetria bilateral, que também existe no corpo humano (pelo menos aproximadamente). A simetria é importantíssima na arte, embora também o é a quebra de simetria: basta olhar com atenção para o “homem de Vitrúvio” de Leonardo da Vinci, um desenho de  1490 que mostra um homem dentro de uma circunferência e de um quadrado, para concluir que a simetria não é perfeita. O filósofo Francis Bacon escreveu no alvorecer do século XVI que “não há beleza perfeita que não contenha algo estranho nas suas proporções” (Ensaios, 1625).
Weyl parte, no seu livro, do significado indo ao significado geral :

“A palavra simetria é utilizada na linguagem quotidiana com dois sentidos. Num sentido, simétrico significa algo bem proporcionado, equilibrado, indicando  a simetria um tipo de concordância em que várias partes integram um todo. A beleza está ligada à simetria. Assim, Policleto [escultor grego do séc. V. a.C.], que escreveu um livro sobre a proporção e a quem os antigos elogiavam a perfeição harmoniosa das esculturas, usa a palavra, e Dűrer segue-o, estabelecendo um cânone das proporções da figura humana. Nesta acepção, a ideia não se restringe de todo a objectos espaciais; o sinónimo “harmonia” aponta mais na direcção das suas aplicações acústicas e musicais do que geométricas. Ebenmass  [bem proporcionado, elegante]  é um bom equivalente em alemão para a simetria grega, já que comporta igualmente a conotação de «medida média»,  a média  que os virtuosos deviam almejar nas suas acções segundo a Ética a Nicómaco de Aristóteles, e que Galeno em De temperamentis descreve como aquele estado de espírito que está igualmente removido dos dois extremos.”

Como se vê o matemático Weyl domina a arte, a linguagem e também a filosofia (ele seguiu cursos de  filosofia de Edmund Husserl em Goetingen, onde conheceu a sua mulher, a judia Helene Weyl, nascida Helene Joseph,  que traduziu Ortega y Gasset para alemão). A carreira matemática de Weyl foi toda ela  feita nos melhores sítios: foi aluno de David Hilbert em Goettingen, foi professor de Matemática na Escola Politécnica Federal Zurique onde se tornou amigo de Albert Einstein, voltou em 1930 a Goettingen para suceder a Hilbert na cátedra para, passados três anos, ser obrigado a fugir da Alemanha, indo, por influência de Einstein, para Princeton, o sítio onde estava o seu amigo. Reformado em 1951, regressaria a Zurique, onde morreria aos 70 anos por um súbito ataque cardíaco (passados  poucos meses de Einstein morrer em Princeton da rotura de um aneurisma). Tendo sido contemporâneo de duas revoluções da física - a teoria quântica e a teoria da relatividade - Weyl deu contribuições às duas, ajudando até à sua conjugação. Mas o seu domínio da matemática era vastíssimo: trabalhou em equações diferenciais (publicou Raum, Zeit, Materie [Espaço, tempo, matéria], em 1918,  um dos primeiros livros a apresentar a teoria da relatividade geral de Einstein), teoria de grupos (foi um dos primeiros a perceber a  extrema relevância da simetria na teoria quântica), álgebra, geometria,  teoria de números, e fundamentos da matemática. Pode também ser considerado um filósofo pois contribuiu em 1927 para o Handbuch der Philosophie [Manual de Filosofia], da editora Oldenbourg, com o artigo “Filosofia da Matemática e das Ciências Naturais”, mais tarde publicado em livro separado.


Vale a pena ler o “canto do cisne “ de Weyl. Mesmo o leitor menos versado em matemática não deixará de admirar a escolha e a descrição das ricas imagens que enchem o livro. Como foi possível que povos antigos como os sumérios ou os árabes, para não repetir o exemplo dos gregos, tenham revelado um conhecimento tão pormenorizado da simetria  nas suas manifestações  artísticas, em particular a arte ornamental? 

Carlos Fiolhais

A NECESSIDADE DE INTERVIR


Texto recebido de Maria do Carmo Vieira:

O diálogo fraterno com os animais e com toda a Natureza, nela incluindo obviamente o homem, iniciou-o Francisco de Assis (1184-1226), no desejo de uma harmonia universal, postura que lhe valeu a chacota habitual dos mesmos de sempre: os indiferentes ao bem-estar de quem quer que seja, os hipócritas, que não fazem e impedem de fazer, mas estão sempre cheios de moral, os sem compaixão, capazes de olhar o sofrimento sem intervir. Cremos que não há quem desconheça a afectividade fraterna das expressões de Francisco de Assis, «irmã lua», «irmã pedra, «irmão lobo», «irmão cordeiro», ou «irmão sol» como no belíssimo cântico que compôs ao astro luminoso e vital.

O Renascimento (entre os séculos XIV e XVI), ao relevar «o homem como a medida de todas as coisas», recuperando a frase de Heráclito (540-480 a. C.), e reagindo assim ao teocentrismo medieval, propiciou a ideia do homem e do seu domínio sobre a Natureza, numa divisão algo conflituosa. O próprio Da Vinci, na ânsia de ultrapassar a sua beleza, traduzindo simultaneamente a dificuldade do artista em imitá-la, referiu que «o pintor luta e rivaliza com a Natureza».

Aberto o caminho à supremacia do homem, fácil foi ignorar que ele próprio era parte da Natureza e não desligado dela. Essa falsa dualidade acentuou-se ao longo dos séculos, com uma intensa indiferença pelo ambiente, na sua diversidade, e por todos os seres. Por isso se tornaram proféticas as palavras do grande Chefe Índio, Seattle, constituindo um hino apologético à Natureza enquanto um todo que não pode ser dizimado, em nome de interesses imediatos, da ambição, da ganância, e até, no que se refere a animais, do divertimento imbuído de crueldade quando espectáculo em que se mata pelo prazer de matar e se contempla, em sádica euforia, o sofrimento. Neste último caso, basta lembrarmo-nos de tradições bárbaras que se mantêm (touradas, festejos em que os animais entram em cena para sofrer, sob as gargalhadas do público assistente, lutas de cães, de galos, e outras situações afins).

Foi em 1854, perante o Presidente Franklin Pierce, que lhe propusera a compra das terras, que hoje constituem o Estado de Washington, que o Chefe Seatlle discursou. Pelo seu carácter poético, pela sabedoria da Vida e da Terra que testemunha, pela fraternidade em relação à Natureza, como um imenso corpo que engloba tudo e todos, relembramos um extracto, forçosamente longo, desse mesmo discurso: «Somos parte da terra e do mesmo modo ela é parte de nós próprios. As flores perfumadas são nossas irmãs, o veado, o cavalo, a grande águia são nossos irmãos; as rochas escarpadas, os húmidos prados, o calor do corpo do cavalo e do homem, todos pertencemos à mesma família. […]. Os rios são nossos irmãos e saciam a nossa sede; […] e alimentam os nossos filhos. Se lhes vendermos a terra, deverão recordar-se e ensinar aos vossos filhos que os rios são nossos irmãos e também o são deles, e, que, portanto, devem tratá-los com a mesma doçura com que se trata um irmão. […] [Mas o Homem Branco] trata a sua Mãe, a Terra, e o seu Irmão, o Firmamento, como objectos que se compram, se exploram […]. O seu apetite devorará a terra deixando atrás de si só o deserto. […] Se decidirmos aceitá-la [ a compra das terras], eu porei uma condição: o Homem Branco deverá tratar os animais desta terra como seus irmãos. […] a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra. […] Contaminem os vossos leitos e uma noite morrerão afogados nos vossos próprios detritos.»

Seattle mostrou ao «Homem Branco» quão diferente era a sua maneira de pensar a Natureza, e a sua mensagem, repleta de ternura pelo mundo divinamente criado, não se afasta, na sua essência fraterna e universal, da de Francisco de Assis, desapegado de luxo e convictamente cristão. Estes exemplos, distanciados entre si no tempo, e tão presentes, acompanham e fortalecem a vontade de agir, no respeito pela nossa própria consciência e pela nossa própria sensibilidade, imunes aos sarcasmos dos arrogantes e vivaços de sempre. Vem a este propósito referir uma causa que me é cara, e desde muito cedo: a defesa dos animais de rua, nomeadamente, cães e gatos.

Fez parte dos meus pesadelos de infância a captura, pelos serviços camarários, de cães abandonados. Quem assistiu a esses dolorosos momentos, nunca poderá esquecer o olhar de medo e de sofrimento das vítimas que se escondiam em buracos, onde dificilmente entravam, tentando assim fugir à rede que os aprisionaria, para depois serem atirados com violência para dentro de uma camioneta e receberem a morte, passados poucos dias. Era assim, na minha infância, e continuou não muito diferente ao longo dos anos. Sabem-no os que persistentemente lutaram contra as condições indignas do funcionamento do então Canil de Lisboa, perfeita câmara de tortura para os animais capturados ou aí depositados, situação que, aliás, ainda se mantém em inúmeros canis municipais do país.

Felizmente, e fruto, não duvido, da intervenção convicta e persistente de cidadãos voluntários, organizados em Campanha de esterilização, Movimentos e Associações em prol desta causa, o dito «Canil de Lisboa» deu lugar à «Casa dos Animais de Lisboa» (CAL, 2014), designação que significa uma profunda mudança,  amplamente visível na actuação da sua nova direcção, e consequentemente da própria CML e da vereação que detém o pelouro. Apostada, e transcrevemos, em « acolher e tratar com dignidade todos os animais, combater o abandono e promover a adopção segura e responsável, porque o destino final de cada animal não pode ser outro que não o da adopção», a CAL não prescinde, e inteligentemente, do apoio dos voluntários, reconhecendo que estes são imprescindíveis para a concretização dos objectivos delineados, com especial destaque para o maior problema de qualquer canil municipal: a sobrelotação.

No seguimento da actuação conjunta, a que anteriormente nos referimos, e a  que se deve juntar o partido PAN, surgiu a Lei 27/2016 de 23 de Agosto que, instituindo a esterilização como método, contraria o habitual abate de cães e gatos praticado pelas canis. Essa lei deverá entrar em vigor, em Setembro de 2018. Infelizmente, há já Câmaras a querer adiar a data. Na verdade, o que há a fazer, e de forma urgente, é iniciar, ou dar continuidade, a um programa de esterilização, com apoio de voluntários, o que será garantido, de forma a melhorar gradualmente o funcionamento e a manutenção dos canis, e, sobretudo, apostar, o que já foi sugerido também, na esterilização de animais de munícipes carenciados, sem possibilidade de custear uma esterilização, o que evitaria o surgimento incessante de ninhadas indesejadas e a consequente acumulação de animais nos canis. De sublinhar que são já algumas as Câmaras que decidiram pôr em prática esta medida (Évora, Oeiras, Sintra, entre outras).

Se os munícipes, sensíveis a esta causa, insistirem junto das suas Câmaras para que estas, no cumprimento da Lei 27/2016, adiram responsavelmente ao urgente programa de esterilização,[1] o problema da sobrelotação dos canis poderá ser substancialmente atenuado. Todos ficaríamos a ganhar: Câmaras, Munícipes e Animais.

Maria do Carmo Vieira
Lisboa, 27 de Abril de 2017

quinta-feira, 27 de abril de 2017

"A educação do cidadão no século XXI" ou a reafirmação de que só "uma pessoa pode educar outra pessoa"


Transcrevo abaixo uma parte substancial da uma conferência proferida pelo filósofo espanhol Fernando Savater a meio do passado ano. As ideias que defende são, na linha do que defende para a educação, substancialmente diferentes do discurso vigente um pouco por todo o mundo. Por isso mesmo, vale a pena dar-lhe atenção.
"Queria falar-vos de educação para a cidadania. Educar não é simplesmente formar para o mercado de trabalho, formar trabalhadores de tal ou tal área. Obviamente, adquirir habilidades profissionais é algo importante e parte dos temas dos quais a educação trata. Mas a educação tem um projecto muito mais ambicioso. 
A educação quer formar pessoas completas. Na democracia é preciso educar pessoas de maneira aberta. Não se pode educar apenas para a guerra ou apenas para a agricultura ou apenas para o artesanato. Deve-se educa-las para a vida numa sociedade democrática. E, a partir daí, cada qual escolherá o seu caminho, a sua possibilidade. 
O destino da democracia está intimamente ligado ao destino da educação. A educação é o que permite a cada um ocupar um lugar não preestabelecido e sim aberto a todas as possibilidades dentro da democracia. Sabemos que pesam muito os condicionamentos sociais, as diferenças de estatutos e de riqueza, de economia, etc. (...). 
Mas se queremos fazer uma transformação não sangrenta (...) que não passe pelas execuções e pelas mortes, o mais parecido com uma revolução não sangrenta é, precisamente, a educação. Porque a educação é o que permite lutar contra a fatalidade social, o que se opõe à fatalidade social. É o que faz com que o filho do pobre nem sempre tenha de ser pobre, que o filho do ignorante não tenha necessariamente de ser ignorante, que os filhos do excluídos, dos que de alguma forma não têm colocação social, possam alcançar a sua colocação e o seu lugar social. A educação luta contra essa fatalidade que faz com que os filhos não tenham de repetir os erros, as deficiências, as carências dos seus pais (…). 
Há dois inimigos fundamentais da democracia, são a ignorância e a miséria. Esses são os dois inimigos que em todos os lugares corrompem e destroem a democracia. Todos os que lutam contra a ignorância e contra a miséria estão a defender a democracia. A democracia não é defendida bombardeando países ou exibições de força bélica. É evidente que hoje também existem outros males nas democracias. A corrupção, por exemplo, é um dos males que afectam a liberdade, onde existe liberdade, há quem a use bem e quem a use mal. Mas tudo isso tem de ser combatido, em grande parte, por meio da educação. Porque o mal da corrupção não é a violação em si da confiança que os cidadãos depositam num político, o mal da corrupção é a impunidade (…). 
Então, para isso deveríamos formar uma sociedade consciente. A educação tem de tentar reforçar os elementos de consciência democrática dos cidadãos. Os cidadãos têm de saber que o que ocorre na sociedade é algo que lhes diz respeito (…), que a vida social não é espectáculo que está a ser representado e nós estamos na plateia (…). Nós, cidadãos, estamos todos na plateia e estamos todos no palco (…). Por isso, a educação existe para formar cidadãos capazes de intervir na representação. 
Até que ponto é importante a educação na democracia? Pensemos que a educação é tão importante quanto a confiança que depositamos nos demais (…). A ignorância que é perigosa na democracia é a ignorância de quem é incapaz de entender o argumento alheio (…), é incapaz de entender um texto simples que apresente uma série de pontos importantes (…). 
Ora bem, só uma pessoa pode educar outra pessoa. Só podemos aprender a viver com outra pessoa, não com uma máquina, por mais perfeita ou extraordinária que seja. A internet e outros instrumentos, o que faz é dar-nos cada vez mais informação, essa informação é muito importante. É verdade que antes educar era, em certa medida, informar. As crianças chegavam à escola sem conhecer muitas coisas essenciais: as verdades do sexo, da morte, da ambição, etc. E aos poucos ia-se-lhe revelando essas verdades, digamos, conflituosas (...); hoje uma criança pequena viu tudo o que tem a ver na televisão até antes de a ver na escola (...). 
Então, a educação é ajudá-la a navegar por essa informação que ela recebeu (...) de modo avassalador, de modo surpreendente e que nela tem de distinguir o verdadeiro do falso, o útil do supérfluo, o positivo e socialmente interessante do atroz e criminoso (…). Ou seja, hoje a informação é simplesmente um mar no qual se deve aprender a navegar (…). 
Portanto, nunca se pode substituir o professor por um instrumento mecânico. Penso que uma das questões pendentes é reconhecer a importância e a dignidade social do professor."

terça-feira, 25 de abril de 2017

Um texto fundamental para compreender a democracia moderna e como a educação pode contribuir para ela

Resposta à pergunta: que é o iluminismo? o opúsculo de Immanuel Kant datado de 1784, é um dos textos mais importantes para quem queira pensar sobre a complexa relação entre a democracia e a educação.

De facto, Artur Morão, o tradutor que li, mesmo apontando algumas críticas que a passagem do tempo autoriza, reconhece que se trata de
"um dos mais contundentes apelos ao exercício autónomo da razão, à liberdade de pensamento (...) constitui ainda uma expressão sintomática de um momento fundamental na estruturação da consciência moderna (...) Propõe, de certo modo, um ideal imperativo e inatingível – precisamente a consecução da genuína e plena ilustração intelectual."
Se alguma finalidade a educação deve perseguir, com destaque para a educação escolar, é a formação do "entendimento", da "razão", que permite a escolha autónoma e responsável, o exercício do livre-arbítrio e cria as condições para o exercício da liberdade e da dignidade.

Logo ao princípio diz Kant nesse texto:
"A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo. 
A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes) continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que em vez de mim tem consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (...) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles. Depois de terem, primeiro, embrutecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois acabariam por aprender muito bem a andar. Só que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante todas as tentativas ulteriores. 
É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer semelhante tentativa.
Este texto, que tem tudo a ver com a data que hoje se comemora, continua aqui.

RENASCER ABRIL


Renascer é uma constante na história dos homens. Vem de longe a ideia de renascer.

Bennu, a ave da mitologia egípcia, ateava o fogo ao seu ninho e deixava-se consumir pelas chamas, renascendo depois, dos seus restos calcinados. Na Grécia antiga era Fénix que renascia das próprias cinzas. Há um paralelo entre esta ave mitológica e o Sol, que todos os dias morre no longínquo Poente, para renascer na manhã seguinte, do outro lado do mundo, numa alusão da morte e do renascimento da natureza. Na expressão figurativa do cristianismo, o renascer da Fénix tornou-se um símbolo popular da ressurreição de Cristo.

Renasceram cidades depois de destruídas por catástrofes naturais ou pelas guerras. Renascem para a vida as mulheres e os homens que se libertam dos agentes opressores. Renascem os cravos vermelhos, todos os anos, em Abril e, logo a seguir, nos campos, as espigas do trigo e as papoilas, ao mesmo tempo que, nas cidades, avenidas, praças e jardins das nossas cidades renasce um tapete de pétalas lilases de jacarandás.

Como nos aviões que, ao ganharem altitude, atravessam a espessa cobertura de nuvens e atingem o esplendor do céu e da luz, temos vindo a tenascer de uma escuridão em que, com excepção de uns tantos privilegiados, fomos levados a mergulhar.

É este renascer de Abril que hoje festejamos, expresso num recuperar da esperança que nos fora roubada por um molho de rapazes espertos, a quem, ingenuamente, levados pela mentira, entregámos o nosso destino, num tempo de pesadelo que durou quatro longos anos, durante o qual
assistimos à asfixia e destruição de muitas das nossas valências económicas, ao empobrecimento de um número cada vez maior de famílias, ao desumano abandono dos idosos, a par de escândalos de corrupção descarada e impune (e aqui, infelizmente, nada mudou) e do aumento do número e da riqueza dos ricos. Assistimos ao afundamento da classe média, ao drama do desemprego, particularmente doloroso para os que já não conseguem encontrar um posto de trabalho, e à triste emigração de uma juventude que a democratização do ensino qualificou a níveis nunca antes conseguidos. Tudo isto numa caminhada de submissão a uma União Europeia (cada vez mais afastada dos princípios que a fundaram) conduzida sem qualquer sensibilidade social, e sob a conivência do então e tristemente célebre, mais alto magistrado da Nação.

Durante a campanha eleitoral para as legislativas de 2015, defendi, nesta minha página, com sincera e lúcida convicção, a necessidade de entendimento entre o PS e os partidos à sua esquerda, como única via para afastar do poder uma coligação que, fortemente apoiada pelos grandes interesses do mundo das finanças cá de dentro e lá de fora das nossas fronteiras e por uma poderosa comunicação social ao seu serviço, nos estava deliberadamente a empobrecer, não só materialmente, como no que nos restava de esperança e de dignidade.

Para satisfação da maioria dos portugueses, aconteceu que a 26 de Novembro de 2015, os seus legítimos representantes no Parlamento puseram fim ao dito pesadelo. Nasceu então chamada “geringonça”, termo criado com propósito pejorativo, mas que o tempo, mercê de uma governação ponderada e sensata, inteligentemente amparada pelo actual Presidente da República (em quem não votei, mas que se me tornou uma revelação que hoje apoio e muito admiro), tem vindo a transformar-se num símbolo de esperança a renascer na maioria dos portugueses. António Costa e os partidos à sua esquerda sabem bem que a direita não perdoa e que, ajudada pela forças que bem conhecem cá dentro e lá fora, vão continuar a fazer o possível e o impossível para minar os entendimentos entre eles conseguidos.

Usada pelas forças apeadas do poder, no propósito declarado de achincalhar a solução de um PS a governar com o apoio parlamentar do BE, do PCP e do PEV, a palavra geringonça vingou e desmentiu os maus presságios que uns, hábil e interesseiramente, e outros, convicta e alienadamente, anunciaram. “Geringonça” é hoje um nome popular e, até, carinhoso.

É este renascer de Abril, a par do que nasceu há 43 anos, que hoje celebramos.

A. Galopim de Carvalho
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NOTA: A palavra “geringonça” aparece no Diccionário da Lingua Portugueza, do grande lexicólogo, António de Morais (1755-1824) definida, entre outras, como: “coisa mal engendrada que ameaça ruina; obra mal feita e armada no ar”. Copiando-o de certa maneira, como é regra neste tipo de obras, o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, disponível na net, considera-a sinónima de “caranguejola” e, também entre outras, define-a como: “coisa mal feita, obra armada no ar”. Embora por forma ligeiramente diferente, o Dicionário Online de Português diz: “coisa malfeita, que ameaça ruína; obra maljeitosa e mal armada que ameaça desconjuntar-se” As novas edições destes dicionários vão ter, necessariamente, de acrescentar o actual significado desta palavra.

Semear a dúvida e pôr tudo no mesmo saco

O meu artigo no Público de hoje:

No mesmo dia em que foi publicado um artigo meu no Público em que associo as terapias alternativas à moda da não vacinação, a Associação Portuguesa dos Profissionais de Acupunctura publicou um comunicado no Facebook dizendo que “não só apoiamos como aplaudimos a Vacinação e o Plano Nacional de Vacinas!”. Também eu aplaudo esta posição e ficaria encantado se as várias associações de naturopatas, homepatas, fitorapeutas e afins viessem a público afirmar sem hesitações que recomendam a vacinação. Infelizmente a esperança não é muita. 

A generalidade dos terapeutas alternativos é, na melhor das hipóteses, ambígua. Um exemplo são as declarações do naturopata João Beles ao Jornal de Notícias, segundo o qual “a vacinação não é desnecessária, assegura uma protecção contra várias doenças”, para logo acrescentar que “existem efeitos adversos que podem levar os pais a terem receio”. Isto é semear a dúvida, espalhar o “não-se-sabe-bem”, colocando a questão no mesmo ponto inconclusivo de uma mãe ou pai “de mente aberta” com ligação à Internet. É a posição ambígua dos terapeutas alternativos que serve o mercado que procura “médicos” que apoiem a decisão de não vacinar. No entanto, os riscos e benefícios das vacinas estão bem avaliados, face aos riscos das doenças que elas evitam. A vantagem da vacinação é clara e avassaladora.

Um relatório do Centro Europeu para a Prevenção e Controlo de Doenças de 2012 discute a origem de vários surtos de sarampo, papeira e rubéola na Europa e associa-os a grupos com baixa cobertura vacinal. Entre estes grupos estão emigrantes e comunidades nómadas, que têm uma relação difícil com as autoridades. Também refere grupos que não vacinam por questões religiosas. Outro caso é o das comunidades antroposóficas, inspiradas na filosofia Waldorf, criada pelo místico Rudolf Steiner. Estas comunidades têm creches, escolas e centros de saúde próprios, assim como médicos e tratamentos Waldorf, e encaram as doenças da infância como parte do desenvolvimento espiritual das crianças. Também os utilizadores de medicinas alternativas têm taxas de vacinação mais baixas do que o resto da população. É mencionado no relatório o caso particular da homeopatia, que oferece “vacinas homeopáticas”, que nenhuma protecção conferem. A taxa de vacinação dos profissionais de saúde também é discutida, uma vez que estes estão particularmente expostos e podem tornar-se focos de infecção. Ou seja: as terapias alternativas estão de facto associadas a baixas taxas de vacinação.

Mais à frente no comunicado dos profissionais da acupuntura é reconhecida a existência de “alguns, poucos, profissionais das Terapias Não Convencionais que são contra certas vacinas”, acrescentando terem “igualmente conhecimento de médicos e outros profissionais de saúde convencional, que assumem publicamente ser contra as vacinas”. Esta é uma outra estratégia das terapias alternativas: meter tudo no mesmo saco. Reclamam igual estatuto ao da medicina convencional, ainda que para isso necessitem de regimes de excepção. Os remédios homeopáticos são um bom exemplo, uma vez que, para serem introduzidos no mercado, não precisam de apresentar as extensas provas da sua eficácia e segurança exigidos aos restantes medicamentos, sendo aprovados através de um regime especial, que apenas pede que sejam inócuos. A legislação especial das terapias alternativas serve para suprir o problema da falta de provas da sua eficácia e segurança.

Também Paulo Sargento, director da Escola Superior de Saúde Ribeiro Sanches (uma das instituições que apresentou pedidos de acreditação de licenciaturas em terapias alternativas e que oferece uma pós graduação em “Mindfulness para profissionais de saúde”) me dirige uma resposta na qual afirma que “conselhos anti vacinação têm sido dados, quer pela medicina convencional, quer pela medicina não convencional”, insistindo em meter tudo no mesmo saco. Numa outra resposta, Rui Devesa Ramos vai ainda mais longe no relativismo obscurantista, ao considerar que “a ciência nunca será mais do que uma crença civilizacional”, a par com muitas outras, tal como a religião. Para Ramos todo o conhecimento é igual, desde que haja pessoas que nele acreditem. Diz que “o que faz com que a ciência ‘funcione’ deriva determinantemente (sic) da crença que temos nela”. Conclui-se que, se amanhã rodar a chave de ignição e o motor do carro não trabalhar, é apenas porque ele não acredita que a bateria esteja carregada... Não, nem tudo é igual. A medicina baseada na ciência, com todas as suas limitações, tem desenvolvido processos rigorosos que permitem saber se um tratamento funciona ou não. E isso faz toda a diferença.

Numa época Trump, pós-verdade, a ciência está ameaçada de muitas maneiras e esta é mais uma. Não podemos dar-nos ao luxo de ser contemplativos com os factos alternativos das terapias homónimas. 

domingo, 23 de abril de 2017

"É preciso abandonar modismos educativos"

"É preciso abandonar modismos educativos" é o título de uma entrevista feita por Ângela Pinho ao ex-ministro da Educação, Nuno Crato, e publicada na Folha de São Paulo, no passado dia 20 (aqui). Eis alguns passos dessa entrevista:
Por mais controvérsias que existam sobre métodos de ensino, um conjunto de ideias virou praticamente consenso entre educadores nas últimas décadas. Algumas delas: o aluno deve gostar do que aprende; decorar informações é negativo; e desenvolver competências como pensamento crítico, mais do que ensinar o conteúdo curricular, é o verdadeiro papel da escola do século 21.
Nuno Crato (...) comandou uma reforma (...) que priorizou português e matemática, eliminou disciplinas não tradicionais, como estudo acompanhado e projetos, e aumentou o rigor na seleção de professores. Tudo isso em meio a uma crise econômica que reduziu salários do funcionalismo e a críticas de sindicatos e pedagogos. Após sua saída do ministério, os resultados do Pisa (...) fizeram o mundo voltar os olhos para Portugal. Na prova de 2015, o país superou a média da OCDE, organização que reúne o mundo desenvolvido, ultrapassando Estados Unidos e Espanha, por exemplo. Junto a Dinamarca, Suécia e à minúscula Malta, foi a única nação europeia a melhorar em todas as áreas avaliadas. 
O que explica o avanço dos alunos portugueses? Fizemos coisas simples. Demos prioridade, com mais tempo de aula, às disciplinas fundamentais – primeiro português e matemática e, depois, história, geografia e ciências. Elas são as estruturantes, permitem ao aluno progredir nas outras. Se ele tiver dificuldade de leitura, vai ser muito difícil estudar história. Se tiver conhecimento muito fraco de história, será difícil estudar política, sociologia, história da arte etc. Portanto, no conhecimento dos alunos há um conjunto de prioridades (...) português e matemática vêm em primeiro, os alunos dos primeiros anos devem se concentrar em ler bem, escrever bem, falar bem e conhecer as regras fundamentais da matemática, para poder progredir nas ciências, literatura, artes, geografia etc. E muitas vezes isso, que parece o óbvio, que os estudos e a experiência mostram, não é feito (...) Também criamos programas estruturados com metas que indicavam o que o aluno deveria dominar a cada ano de escolaridade. Isso ajudou professores, pais e autores de manuais escolares a ter um objetivo comum. A avaliação, junto com a divulgação dos resultados, foi fundamental. Investimos ainda no apoio aos alunos com mais dificuldades, com mais créditos (horários de professores) e assim melhoramos tanto os do topo como os de baixo da tabela. 
Por que a ênfase em português e matemática? A verdadeira pedagogia moderna, baseada nas ciências cognitivas do século 21, mostra que não basta saber ler. Os jovens devem ter fluência na leitura e nas operações matemáticas. Isso lhes permite depois libertar a mente para atividades de ordem cognitiva superior. Se o jovem estiver a soletrar enquanto lê, terá dificuldade de entender o conteúdo do texto (...) A ideia é que as tarefas cognitivas de ordem superior –reflexão, crítica, criatividade – são baseadas em processos da ordem inferior. E o grande erro da pedagogia romântica é pensar que se pode chegar aos processos cognitivos superiores esquecendo-se dos inferiores. 
Como foi enfrentar a resistência a essas medidas? Os professores portugueses reagiram muito bem tanto a essas políticas como a outros dois fatos. Em 2011, Portugal teve que pedir ajuda externa. E, entre uma série de cortes, os salários de todos os funcionários públicos foram temporariamente reduzidos. Para diminuir o impacto, reduzimos o número de professores em funções de apoio [fora da sala de aula] (...).
O sr. é um crítico do chamado "eduquês". Quais são os maiores mitos da educação? Há muitos. Um é que os alunos só devem aprender o que gostam. O problema é que eles só podem saber o que gostam depois de aprender. Portanto, além de motivar os alunos, é preciso ter uma pressão sobre eles para lhes transmitir conhecimentos e habilidades fundamentais. Outro mito é que avaliação faz mal, cria estresse, e os jovens ficam traumatizados. Mas avaliação não é um obstáculo, é um incentivo (...) são ideias muito velhas, de mais de um século, muitas sem fundamento. Exemplo é a noção de que a exigência prejudica os pobres. Não, ela é amiga deles, porque os mais favorecidos podem ir a escolas privadas, podem ter apoio especial. Os mais desfavorecidos, não. Ou a escola pública lhes dá o conhecimento e as capacidades de que precisam, ou terão mais dificuldade no futuro. 
E as críticas aos métodos de ensino que fazem o aluno memorizar o conteúdo? Outro mito é que memorizar faz mal (...). Mas a memorização também é necessária, pois, se não se sabe nada, não se pode aplicar. A ideia de que o aluno pode ser crítico sem saber também é outra totalmente falsa. Como se pode fazer formação crítica sem se dominar o conteúdo? Como o aluno pode ter formação crítica sobre economia de mercado se ele não souber o que é a economia de mercado? 
Recentemente, Andreas Schleicher, o responsável pela educação na OCDE, disse que os alunos portugueses vão bem em tarefas que exigem uma reprodução do que é ensinado na escola, mas não são tão bons na aplicação criativa dos conteúdos. Nesse sentido, diz, as escolas do país "ainda não fizeram a transição do século 20 para o 21." Concorda?Concordo, mas com reticências. Sim, é importante que os alunos consigam reproduzir os conteúdos ensinados na escola e ir além da sua aplicação mecânica. Mas, neste último Pisa, os portugueses melhoraram nos dois aspectos, nos conhecimentos e na aplicação. E não se pode cair no erro de querer uma aplicação criativa de conhecimentos se os conhecimentos não existirem. Mais uma vez: as capacidades cognitivas de ordem superior, tais como a resolução criativa de problemas, desenvolvem-se com base nas capacidades cognitivas básicas, tais como o domínio da leitura e das operações matemáticas. Não se pode trocar a ordem das coisas e saltar etapas. É impossível aplicar criativamente conceitos se não se conhecem esses conceitos. 
Algumas escolas brasileiras vêm adotando um ensino por projetos que reúnem várias disciplinas. O que acha? Projetos podem e devem ser feitos. Podem e devem ser multidisciplinares. Mas isso é muito negativo se destrói as disciplinas, porque elas têm uma estrutura que os jovens precisam conhecer, e não só por meio de projetos dispersos. A história, por exemplo, tem uma ideia de continuidade que deve ser apresentada de maneira sistemática. Se o jovem faz uma vez um projeto sobre a Grécia Antiga, outro sobre os índios brasileiros, nunca terá um conhecimento conjunto da história. Projetos são auxiliares do ensino, não podem ser sobrevalorizados (...). 
Há uma ideia corrente de que se investir muito no conteúdo não vai formar um cidadão. É um erro completo. Não tem sentido formar cidadãos ignorantes. Quanto mais conhecedor ele for, mais crítico, ativo, criativo e solidário será. Claro que estamos no século 21 e, portanto, temos uma sociedade em que os jovens emigram, aprendem línguas estrangeiras, gostam de viajar, de mudar de emprego. É um mundo diferente. Mas não significa que o conteúdo deixa de ser importante.

O conhecimento que tem valor, esse sim, é a resposta.

Imagem recolhida aqui.

Realizaram-se ontem, em mais de meio milhar de cidades espalhadas pelo mundo, as primeiras "marchas pela ciência". Percebendo os motivos em favor dessas marchas, há qualquer coisa nelas que me desagrada profundamente e temo que o efeito seja contrário ao que se propõe: valorizar a ciência.

Voltamos a ver, na verdade, neste início de século, o conhecimento científico - aquele que é devidamente validado - igualado a ideias e práticas pseudo-científicas e, mesmo, anti-científicas. Isto acontece não numa mas em várias áreas disciplinares e tem lugar privilegiado no mundo académico, onde se torna difícil distinguir - nos sistemas de produção, divulgação, publicação e ensino - o que é ciência e o que só usa o seu nome.

Esta confusão, até pela rapidez com que a informação e a desinformação circula, depressa se infiltra no modo de pensar social: sem confiança na "verdade possível", que é a que a ciência pode buscar e oferecer, sem pontos de apoio que mereçam alguma confiança, depressa chegamos à dificuldade ou impossibilidade de comunicar e daqui à irracionalidade é um passinho de pardal.

Acresce que os sistemas de financiamento da ciência - de produção, divulgação, publicação e ensino - que, num determinado momento se entendeu deverem ser públicos, precisamente para evitar pressões sobre o pensamento livre de que a ciência se alimenta, têm sido deslocado para entidades privadas da mais diversa natureza.

E, mesmo quando financiados pelo dinheiro de todos nós, esses sistemas têm sido postos ao serviço da competição tecnológica, traduzida em ganhos económico-financeiros, entre países e entre regiões do mundo, pelo que os cientistas ou as equipas são instadas a mostrar produção que tem de ser de aplicação certeira, imediata e, claro, rentável.

Vence, como se tem visto, a tecnologia, muita dela sem ter sido submetida a qualquer critério ético. Nesta linha de ideias, entendendo-se que "só a ciência" - melhor, "a ciência que produz tecnologia usável" - vale, outras formas de conhecimento, a menos que se submetam a essa lógica, têm sido desconsideradas, acantonadas ou afastadas do cenário académico: a filosofia, a história, a ética, as línguas clássicas, a estética e a arte... são, talvez as mais prejudicadas. Tudo isto tem escavado os alicerces da própria ciência. 

As reacções contra a ciência têm crescido em comunidades que nem sequer são desinformadas, a fraude infiltra-se, as empresas ligadas à ciência florescem... E tudo isto é aproveitado por quem precisa, como de "pão para a boca" da desorientação social para impor os seus propósitos políticos, comerciais ou outros.

O que acima descrevi já aconteceu antes e volta a acontecer. E isto por reacção ao cientismo/tecnicismo, a que os cientistas não têm dado a devida atenção, até pelo afã da produção em que se vêem envolvidos e que, se não for refreado, lhes consome todo o tempo e atenção.

Terão agora acordado para uma realidade que desaba, quando a "pós-verdade" e os "factos alternativos" já se encontram infiltrados no pensamento social, sendo que devemos questionar se será gritando, como afirmou um responsável político, em manifestações de rua, em favor da ciência que alguma coisa mudará nesse pensamento. 

Duvido muito. E duvido porque entendo que, antes de mais, há pelos menos dois exercícios de reflexão muito profunda a fazer, sobretudo por parte de quem tem responsabilidades nesse campo de conhecimento tão maravilhoso quanto fundamental que é a ciência. 

Um é interrogar-se sobre os desígnios a que ela tem sido conduzida e sobre a imagem que dela se dá para o exterior; outro é interrogar-se sobre as relações que mantém com outros campos de conhecimento.

Neste particular, em nada ajuda os cientistas dizerem que a "ciência é a resposta", que a “ciência e a tecnologia são os pilares do desenvolvimento de qualquer sociedade", que a "ciência é a principal ferramenta ao serviço da humanidade, que "o investimento em ciência é um investimento no futuro, para que todos possam viver num mundo melhor”, ou que “sem ciência não há paz, não há democracia e não há futuro”. 

Estas frases desmobilizam quem, não sendo cientista e, mesmo, amando a ciência como forma de conhecimento, se vê desvalorizado e vê desvalorizado o seu também amado campo de estudo e de trabalho: os filósofos, os literatos, os artistas... 

Na verdade, são os diversos campos de conhecimento, e não só a ciência, em conjunto e em diálogo próximo, que "são a resposta", “os pilares do desenvolvimento de qualquer sociedade", "a ferramenta ao serviço da humanidade, que "investindo neles é um investimento no futuro, para que todos possam viver num mundo melhor”, e que “sem eles não há paz, não há democracia e não há futuro”. 

Mudar meia dúzia de palavras no discurso de cientistas e políticos ligados à mencionada marcha, não custa muito e faz toda a diferença. Mas é também mudar todo um sistema e isso não se faz com a facilidade com que escrevi o parágrafo acima. 

Ver notícias aqui e aqui.

sábado, 22 de abril de 2017

Saúde e educação em tempos de pós-verdades

O projecto da modernidade fez acreditar que, naquilo que toca à ciência, toda a crença seria progressivamente afastada em favor da razão. 

A razão, nunca no sentido da infalibilidade do pensamento, que declara certezas definitivas, as quais conduzem à imposição de dogmas, mas no sentido do uso metódico do pensamento na procura de verdades, sabendo-se que aquelas que se conseguirem alcançar serão, com grande probabilidade, mais dia menos dia, revistas. 

Verdades que, mesmo assim - no campo da ciência, repito - têm um poder de explicação e de intervenção que a crença não tem.

Acreditou-se que isso pudesse ser assim nos campos da medicina e da educação, onde, ainda que de modo diferente, está implicado o valor da vida humana.

Foi, efectivamente, uma questão de crença: vemo-lo, com grande clareza, pelo menos desde meados do século passado mas, arrisco afirmá-lo, só neste século damos conta das suas reais dimensões, primeiro na educação escolar, depois na medicina.


Uma sala de aula das Escolas Vittra (aqui)
No que respeita à escola sabemos que as crianças e os jovens não se educam sozinhos nem uns aos outros: para serem autónomos e inteligentes têm de ser ensinados. De outro modo: a aprendizagem formal não acontece sem ensino; para aprenderem o que a escola tem obrigação de oferecer, os alunos precisam de ter bons professores. 

Faço esta afirmações com base em dados científicos de que dispomos e que, até serem desmentidos, devem ser tidos por credíveis. 

Porém, a "inovação curricular" que está ser legitimada e implementada por vários países dispersos pelo mundo é de sentido contrário, assenta em muito na crença que é contrária ao que acima referi. O espaço - interior ou exterior - sem professor, no qual os alunos, podem descobrir o seu próprio conhecimento e criar livremente é, pelo seu elogio e sofisticação que lhe está agregado, difícil de consciencializar e superar.

O mesmo acontece na medicina: procedimentos que se têm por seguros na melhoria da vida de cada pessoa e das populações, poupando-as a doenças e à morte antecipada, e que, por isso, se reconhecem como fazendo parte do progresso civilizacional, passaram a ser equiparados a outros que não encontram mais sustentação do que declarações por parte de quem nunca seguiu, ou abandonou, o modo de pensar científico.

Numa era em que a ciência deixou de se distinguir da pseudo-ciência, esgrimem-se argumentos da mesma ordem, que se encontram plasmados em artigos científicos - com e sem aspas - que foram revistos por peritos - com e sem aspas - e publicados em revistas científicas - com e sem aspas.

Tudo está ao mesmo nível, tudo se equivale: o que se declara num sentido e no sentido contrário; o que tem um efeito e o efeito contrário.

Finalmente, tudo se vai reconhecendo em letra de lei. E quando isto acontece devemos ficar muito incomodados pois, afinal, estamos a normatizar o que concorre para pôr em causa o conhecimento e, com ele, o valor da vida.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...