Sofro, com frequência, semanalmente, diariamente, horariamente, quando me ponho a ler colunas, livros, ensaios, ficções, testemunhos dos jovens e aclamados turcos do nosso mercado literário. Sinto-me, ai de mim, posto de lado, excluído, arrumado numa prateleira, de cada vez que mergulho naquela algaraviada debitada numa prosa “inovadora”, que ofende o bom senso, a gramática essencial e a mais elementar lógica do discurso. As palavras combinam-se, ali, naquela prosa intemerata e louca, de modo anárquico e perturbante – e deixam-me os olhos e o espírito enviesados. Palavra puxa palavra, na razão directa da falta de senso e na inversa da mais desejável higiene mental. Escreve-se uma prosa “fresquinha” e “novinha”, em que nada faz muito sentido, mas em que tudo soa muito a uma “revolução de linguagem” (sic). Aquela prosa não dá para pensar, para reflectir, para exprimir, dá apenas para parecer que está ali para prospectar territórios “novos”, mesmo à custa de uma total falta de senso e de uma pungente ausência de sentido de ridículo.
O grande escritor americano James Baldwin observou que “a função radical da linguagem é a de controlar o universo, na medida em que o descreve.” Descrever com acuidade o universo exige rigor, honestidade mental e um cuidado particular com a manipulação das palavras. Não é com combinações arbitrárias de palavras, com aproximações “novinhas” entre aquelas que mutuamente se não desejam, que se poderá descrever adequadamente o universo, quanto mais controlá-lo.
Leio, diariamente – e disso sofro – afirmações tontas, debitadas em ar de grande regozijo e descoberta. Observava Cervantes que uma observação tonta pode ser feita tanto em latim como em espanhol. Eu acrescentaria que o português também se presta maravilhosamente a acolher o dislate. Fazer isto à linguagem, agredi-la, levianamente, desta maneira, é coisa mui piadosa de ver. “Talvez que, de todas as criações do homem, a linguagem seja a mais assombrosa”, disse esse grande biógrafo que se chamou Lytton Strachey. Talvez, por isso mesmo, essa assombrosa criação devesse estar cuidadosamente preservada de tanta irresponsável e quotidiana agressão. Tal como Churchill sentia, até aos ossos, a estrutura essencial da frase inglesa mais comum, eu sinto, também, até aos meus ossos lusitanos, a estrutura essencial da frase lusa. Por isso me confrange este mergulho diário nesta prosa contentinha e magnificamente festejada – e galardoada! – com que os nossos jovens turcos inundam a praça literária. Confrange-me até porque seria de supor que um mínimo de bom senso lexical e gramatical presidisse, geneticamente, à empresa dos perpetradores de prosa. Dizia o grande linguista Noam Chomsky que “cada pessoa tem, programada nos seus genes, a faculdade chamada gramática universal.” Seria como se os nossos próprios genes nos impedissem de derraparmos em relação a um discurso claro e límpido. “Fazer sentido” estaria por assim dizer inscrito no nosso código genético. Como se enganava o grande linguista! Derrapar, vagabundear, juntar, à toa, elementos lexicais que mutuamente se não toleram – parece ser a grande vocação dos geniais inovadores que atordoam a nossa praça literária.
Meditando sobre tudo isto, Anatole France, que, no seu tempo fora atingido por um sofrimento não muito diferente do meu, observava melancolicamente: “Era naqueles tempos bárbaros e góticos, em que as palavras tinham um significado; naqueles dias, os escritores exprimiam pensamentos.” Tempos remotos, bárbaros e góticos, em que o pensamento era claro e as palavras se não manipulavam de modo leviano ou mesmo arbitrário…
Ponho-me a ler estes textinhos “inovadores” e sinto a maior
dificuldade em navegar no meio daquela frondosa “floresta de enganos”. Tudo me
perturba, me intriga, me coloca fora de qualquer realidade palpável. A sintaxe,
a morfologia, o bom senso – retraem-se, afrouxam, fazem caretas, dissolvem-se.
Sinto-me, não no meio de um discurso clarificador e enriquecedor, mas, sim, no
centro de um ruído ensurdecedor e altamente criador de vertigem e de confusão.
“As palavras, como é sabido”, observava Joseph Conrad, “são grandes inimigos da
realidade.” Estas palavras, manuseadas à balda, pelos jovens turcos bafejados
pela glória, bloqueiam qualquer minguado acesso à realidade. Fazem um ruído
novo, inesperado, intrigante, mas é um ruído que veda, obstrui a entrada do
mais pequeno raio de luz. Uma análise combinatória focada nestes textos
enviesados lega-nos um tecido estranho, feito de arranjos de palavras
contra-natura, de acasalamentos improváveis e de um guião sintáctico
arrevesado. Busca-se, não a finura e a luz, mas, antes, a obscuridade sonora e
espessa. Tropeça-se, a cada passo, no contra-senso, na metáfora mal amanhada, na
adjectivação forçada ou absurda, na dedução claudicante… Em vez da pureza
gramatical, o pântano linguístico, que nos enlameia a alma e conspurca o
espírito.
Esta prosa imatura feita de palavras que não apanharam sol –
estou a lembrar-me do saudoso João de Araújo Correia – perturba-me de um modo
quase físico: lê-se mal, ouve-se mal, respira-se mal. Causa dor física porque
entope os pulmões e ofende a respiração. Feita de palavras míopes que mal
enxergam outras cuja companhia melhor lhes convenha, vive de associações
enviesadas e trôpegas que entulham o texto de neoplasias incómodas e dolorosas.
Alheia ao discurso límpido concebido para gente chã, a prosa dos jovens turcos
desconhece a claridade do amanhecer, saltando directamente de uma noite para
outra noite.
O velho Samuel Johnson, que Boswell laboriosamente biografou,
para a posteridade, observou um dia que tinha trabalhado “para refinar a
linguagem até uma pureza gramatical e para a clarear de barbarismos coloquiais,
de idiomas licenciosos e de combinações irregulares.” É este trabalho de
refinaria da linguagem, para a libertar de “combinações irregulares”, que
proponho aos jovens perpetradores de atropelos gramaticais que visam inculcar
como inovações aurorais, mas que não passam de tumores incómodos e opacos. As
palavras dão para tudo: para fazer luz ou para fazer noite. Tudo depende de
quem as usa e de como as usa. Ou nos elevam acima dos brutos ou nos põem ao
nível deles: escolha quem pode.
Eugénio Lisboa