É manifesto que não há
tradição científica em Portugal. Uma vez
que essa tradição quase não
existe quase nos resignamos a aceitar que também não haja discussão
sobre a ciência.
O "Manifesto para a
Ciência em Portugal" de José Mariano Gago, professor universitário,
presidente da direcção do Laboratório de Instrumentação e Partículas
e ex-presidente da Junta Nacional para a Investigação Científica,
vem desempenhar, e bem!, dois papéis:
- fazer um retrato fiel
da situação de quase calamidade social e cultural que a
inexistência de prática científica representa num país como o nosso;
- propor pistas de
reflexão que a prática poderá trilhar para ultrapassar a situação a
que se chegou.
O primeiro é um
instantâneo fotográfico que nem por ser curto deixa de ser rigoroso. O segundo é
uma pintura que tem naturalmente a marca do autor e as cores de
alguma esperança no futuro.
Até porque os sintomas
abundam, não é difícil concordar com Mariano Gago sobre o peso
excessivo que entre nos ainda tem uma herança não só de indiferença como de
menosprezo pela ciência e pela criatividade científica.
Essa situação
reflecte-se, por exemplo, no modo como alguns responsáveis, sentados no
governo, encaram a empresa cientifica, as pessoas que a praticam e
os resultados que estas vão obtendo.
Mariano Gago achou por bem não
citar os autores das opiniões contrárias às suas. Dá até a entender
que não vê, num único autor, um antagonista com craveira intelectual
suficiente para valer a pena refutar as respectivas ideias. No entanto, as
afirmações de responsáveis recentes pela ciência, a falta de
melhor explicação, só podem ser vistas como resultado de uma tradição
de ignorância e têm, necessariamente, de ser contraditas.
Tomemos um exemplo
fresco, já posterior ao "Manifesto": a tutela sobre a investigação científica
em Portugal esta atribuída ao Ministro do Plano e Administração do
Território (infere-se logo dessa designação que a administração de
território é algo especialmente associado à investigação científica
não se compreendendo porquê), tendo o ministro Valente de Oliveira
declarado, em entrevista ao "Público" de 6 de Dezembro de 1990, que
"os investigadores têm de fazer pela vida". O que significa essa peregrina declaração? Será que resulta apenas de uma leitura apressada de
Darwin e que essa "espécie" recente da "fauna" portuguesa que é o
"investigador científico" está em vias de extinção, só não perecendo aqueles
que triunfarem na "struggle for life"? Ou será antes uma maneira
delicada de dizer - "vão trabalhar, malandros"- como se faz a um mendicante
que apareça a porta com aspecto de quem não exercita nem a cabeça nem
os músculos, apesar de os possuir? Ou será que queria dizer outra coisa
qualquer e não encontrou a expressão adequada?
O mesmo ministro, mais à
frente, interroga assim os leitores: "queriam que nos tornássemos num
produtor de de conhecimentos novos, que não tivessem sequência, e
cujos resultados práticos fossem explorados pelos Estados Unidos e pelo
Japão?" Quererá o ministro dizer
que em Portugal não se devem produzir conhecimentos novos? Ou que não se devem produzir aqueles
conhecimentos novos que não tenham sequência (se eles são novos, como é que se
vai adivinhar a sequência?)? Ou que não se devem produzir aqueles
conhecimentos novos que não tenham sequência mas que possam ser
aproveitados pelos Estados Unidos e pelo Japão (para que é que os Estados Unidos e
o Japão querem esses conhecimentos se estes não têm sequência?)? O
perigo da investigação fundamental é, para o governo, bem claro: se a praticássemos, vinham, malvados, os japoneses e, desonestos, os
americanos sacar-nos as ideias todas e aproveitá-las para viver à boa vida na
terra deles. Em Tsukuba estão os investigadores orientais dependentes de uma desatenção do Ministro do Plano e Território
português para caírem sobre nós e roubar as últimas da álgebra abstracta ou
da física do estado solido... No MIT
estão os engenheiros ocidentais só
à espera de uma mudança de política em Portugal para conseguirem
os segredos da investigação no LNETI sem pagar os
"royalties"...
Parafraseando Mariano
Gago (num contexto um pouco diferente mas, por isso, um pouco parecido):
há coisas que são ditas e "ninguém ri"!
As soluções para inverter
a actual situação estão apontadas no "Manifesto":
promoção da excelência onde quer que ela esteja localizada (se os portugueses
porventura fossem os melhores do mundo em múmias egípcias porque é que não
haveria de ser também prioritário o estudo das múmias?), internacionalização cada vez maior da ciência feita por portugueses, disseminação
de escolas, institutos e laboratórios bem apetrechados (com
bibliotecas onde apeteça entrar e ficar), generalização da
divulgação científica para romper o isolamento social da ciência, formação
acrescida de pessoas nos vários domínios do saber humano e coordenação de
esforcos interdisciplinares em novas áreas, consciencialização dos
empresários sobre as vantagens da inovação, etc.
Mariano Gago denuncia os
perigos da armadilha chamada "ciência para o desenvolvimento".
Esta consiste no privilégio dado às aplicações só porque se pensa que
estas, se encontradas, são aplicadas rapidamente e em força, e que os
resultados disso são sempre estupendos para o país.
A ligação entre ciência e
suas aplicações, apesar de complexa, pode ser exemplificada pela relação entre a queda das pedras e o
aquecimento da água. Não há, à primeira
vista, associação entre calhaus a cair e água quente a correr. Mas à
segunda vista já há. Talvez não seja suficiente mente conhecido que a termodinâmica nasceu a meio do século passado quando se verificou que a
água num recipiente podia ser aquecida deixando cair uma pedra,
isto é, que o trabalho mecânico podia ser transformado em energia interna de um sistema. Essa descoberta
foi realizada por um senhor
inglês chamado Joule que sabia a mecânica de Newton e queria
simplesmente saber o que era o calor. A busca de conhecimento sobre o que é o "quente" e o "frio" ligou-se com o que se sabia antes sobre a
energia (as pedras, ao descer, ficam com mais energia cinética!) e fez
desenvolver, lenta mas seguramente, aquecimentos, isoladores
térmicos e máquinas. O atraso com que a ciência fundamental chega
(lembra-se que a que é feita no local chega imediatamente) pode ser
desastroso do ponto de vista cultural mas é ainda mais desastroso do
ponto de vista social e económico. Os
factos são conhecidos: não houve
praticamente cientistas em Portugal no século XIX que viu surgir a
"ciência do calor"; por outro lado, ainda hoje nas casas portuguesas, porque
faltam em regra isolamentos térmicos decentes, se tirita de
frio no inverno.
Dizer que não houve no
passado ciência em Portugal pode ser contraprudecente nas
escolas (as pobres crianças ficavam logo encolhidas com a notícia).
Mas o atraso da ciência tem naturalmente a ver com o atraso na
educação, incluindo a educação básica de que todos os cidadãos devem
beneficiar. Aqui a comunidade cientifica
(que é ainda pequena) tem
algumas culpas no cartório pois acha, salvaguardadas as respeitáveis
excepções, que está muito acima desses mesquinhos problemas do ensino
básico e secundário e dessas questões menores da divulgação científica
(alguns estão tão acima, anos-luz acima, que não se vêem nem com os
melhores telescópios...) Mas não é a única
culpada. Vejamos como "a vitrina tecnológica", agora
tanto em voga e parente próxima da "ciência
para o desenvolvimento", pode constituir uma simples miragem,
destinada ao exercício de sedução pelos mercadores de imagens. Aproveita-se, para isso, um dos exemplos
referidos por Mariano Gago.
Reza a propaganda oficial
do Ministério da Educação que existem computadores nas
escolas. É legitima, contudo, a
interrogação sobre o que se faz com essa
mão-cheia de computadores (além de os ligar e desligar). Será que se usam sofisticados processadores
de texto para dar erros primários de
ortografia ou que se fazem contas de tabuada em Pascal que dantes se
faziam, e com melhor despacho, pela cabeça ou pelos dedos? É que ano basta haver computadores numa
escola para que esta, como que por mágica,
se torne moderna. É necessário, primeiro que tudo, que existam
objectivos educativos substanciais e bem definidos e, depois, que esses
objectivos sejam realizados melhor com computadores do que so com canetas e cabeças. Para que os computadores sejam veículos de experiências
inovadoras, é mister a formação de professores, o
"trabalho artesanal" destes com os alunos, o exercício de imaginação de uns e outros. Não aparece ligando a
ficha... As chamadas "Novas Tecnologias
da Informação" (NTI, outra sigla horripilante das muitas
que agora proliferam) correm, portanto, o risco de ser mais um
"penso rápido" (PR, sigla que aqui se propõe) que encobre a ferida sem
a curar ou a aliviar. Gago diz mesmo que, não havendo laboratórios, bibliotecas
e professores habilitados, as NTI são "uma risível caricatura e uma perversa inversão de
prioridades".
A melhor recomendação que
se pode fazer a um livro é que seja lido.
Sobre o "Manifesto
pela Ciência em Portugal", pode-se fazer recomendação melhor: que
seja posto em pratica.
- José Mariano Gago,
"Manifesto para a Ciência em Portugal", Gradiva, 1990
1 comentário:
"Mariano Gago denuncia os perigos da armadilha chamada "ciência para o desenvolvimento". Esta consiste no privilégio dado às aplicações só porque se pensa que estas, se encontradas, são aplicadas rapidamente e em força, e que os resultados disso são sempre estupendos para o país."
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