quarta-feira, 25 de março de 2015

Re(Acção)! Química e Cinema! O Canto do Estireno e O Último Homem na Terra


Na Sala do Carvão hoje pelas 21:30, O Canto do Estireno (1958), real. Alain Resnais | O Último Homem na Terra (1964), real. Ubaldo Ragona e Sidney Salkow. ENTRADA LIVRE.


Apontamentos para um comentário aos filmes:
 
“O Canto do Estireno” de Alain Resnais é um documentário com cerca de 13 minutos, datado de 1958, cujo título e personagem principal é o poliestireno, um plástico ainda actualmente muito usado. Resultante de uma encomenda de uma empresa química, o filme é um objecto estético de uma perfeição desconcertante e paradoxal no qual os seres humanos, afinal os destinatários dos plásticos, aparecem como personagens secundárias. Aproximavam-se os anos 1960, a partir dos quais os produtos da química começaram a ser diabolizados, muitas vezes de forma injusta, e estava ainda longe a preocupação com o destino dos plásticos na natureza. Em 1958, este material, aparentemente sem alma, criado pelos homens ganha neste documentário vida nas imagens de Resnais e nos versos alexandrinos de Raymond Queneau,

Ô temps, suspends ton bol, ô matière plastique
D'où viens-tu ? Qui es-tu ? Et qu'est-ce qui explique
Tes rares qualités ? De quoi donc es-tu fait ?
Quelle est ton origine ? En partant d'un objet
Retrouvons ses aïeux! Qu'à l'envers se déroule
Son histoire exemplaire. Voici d'abord, le moule.
[...]

Os famosos versos de Lamartine “Ô temps ! Suspends ton vol (...)” são refundidos aqui de forma irónica e intraduzível: ao tempo, matéria plástica, pede-se que suspenda a sua tigela! No ano seguinte, 1959, Queneau publicou o seu mais famoso livro “Zazie no Metro” e Resnais apresentou o sua primeira longa metragem, “Hiroxima meu amor”, filme em que Pierre Barbaud, o inventor da música algorítmica e autor da banda sonora de “O Canto do Estireno”, tem um papel como actor.

Vemos assim como “O Canto do Estireno” se revela um objecto estético onde se cruzam a técnica e as artes de forma profunda.

“O Último Homem na Terra”, filme de Ubaldo Ragona e Sidney Salkow, datado de 1964 e baseado livremente no livro de 1954 de Richard Matheson “Eu Sou a Lenda” poderá parecer a alguém menos atento apenas mais um filme de ficção científica e de terror. O argumento é aparentemente simples: uma doença misteriosa transforma os habitantes da terra numa espécie de vampiros só sobrando um ser humano não infectado que procura desesperadamente encontrar outros.
Em comum com “O Canto do Estireno”, o “Último Homem na Terra” apresenta um paradoxal desaparecimento dos seres humanos, mas faz com o filme anterior um contraponto radical: o desaparecimento é, no segundo caso, apocalíptico e definitivo. No entanto, ao contrário que poderíamos ser levados a pensar, com base na retórica que se desenvolveu a partir dos anos 1960, não é sugerido no livro e filme que a doença misteriosa tenha causa humana e muito menos química!

No livro são datalhadas as tentativas para perceber a doença e para encontrar, se não um antídoto, uma defesa eficaz. O sobrevivente (Neville) encontra um modo de sintetizar sulfureto de alilo, um dos compostos activos do alho, mas verifica que este composto não é ineficaz como repelente de vampiros ou como tóxico para as células do microorganismo (é de notar que no filme continua a usar alhos até ao final!). Finalmente, descobre (tarde de mais) que o medo do alho e cruzes era devido a atavismo e recordações do comportamento esperado de um vampiro (e não ao sulfureto de alilo) e que a humanidade tinha começado a reorganizar-se e começava a adaptar as suas vidas e tomar fármacos que lhe permitiam viver com a doença. Neville era o último humano não contaminado e tornou-se assim a nova lenda: um ser diferente (agora o humano) que os normais (agora os vampiros) querem eliminar. Trata-se assim também de um filme sobre a diferença e sobre o medo que temos desta.

O filósofo Slavoj Žižek chama a atenção para um aspecto que considera político nas versões cinematográficas de “Eu Sou a Lenda”. As versões posteriores, já não terminam com uma mudança radical na normalidade, que tem horror aos seres diferentes, procurando eliminá-los, mas sim com um herói que se sacrifica para que se consiga reverter a situação para a anterior normalidade.

Este filme inspirou directa ou indirectamente um sem número de filmes-tragédia com tramas fantásticas ou realistas, envolvendo causas naturais, artificais ou imaginárias, desde agentes biológicos e químicos a zombies e outros produtos da imaginação humana. A nossa percepção dos riscos e da história das tragédias é quase sempre destorcida. Uma bactéria pode, em geral, ser muito mais perigosa do que um produto químico natural ou artificial. Mas como pensamos que os poderíamos ter controlado, somos muito mais sensíveis a estes últimos. E também já houve tempo em que a doença era vista como uma fatalidade normal. Por exemplo, a gripe pneumónica de 1918 matou mais pessoas do que as duas guerras mundiais, tendo sido a maior causa de morte no século XX, mas quase não é lembrada em comparação com outras tragédias.
Um bom filme de ficção científica ou de terror não é aquele que nos causa o maior medo mas o que nos suscita as reflexões e interrogações mais profundas.


[adaptado parcialmente de Jardinsde Cristais: Química e Literatura, SérgioRodrigues, Gradiva, 2014]

Organização: Departamento de Química da FCTUC e Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes da FLUC   

Ciclo integrado na 17.ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra e nas comemorações dos 725 anos desta instituição.

4 comentários:

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Belíssima apresentação Sérgio Rodrigues deixo vos (algumas) palavras:

Caçar, infinitivo sem pressa donde a presa o tempo.

Angelo Miguel Pessoa Alves disse...

É Raymond Queneau.

Sérgio Rodrigues disse...

Obrigado pelos comentários e correcção.

Sérgio Rodrigues disse...

Esqueci-me de dizer que já corrigi essa gralhas e que estão convidados para assistir aos filmes, as sessões são gratuitas.

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