terça-feira, 12 de agosto de 2014

O Grande Podador: Os erros de António Coutinho

Só se conhecia uma voz favorável à "avaliação" das unidades de investigação da responsabilidade da FCT. Era de alguém que de uma forma muito redutora via o mundo a preto e branco - os medíocres e os excelentes. Agora, após a publicação de um artigo de opinião de António Coutinho no último Expresso só se continua a conhecer uma e a mesma voz:  a dele. A sua opinião não é surpreendente, pois ele declarou a paternidade da "teoria da poda", segundo a qual havia que abater uma  enorme parte do sistema científico e tecnológico nacional. Acontece porém que Coutinho, eminente especialista em biomedicina, nada sabe de poda. Quer fazer uma grande poda sem saber podar. Se soubesse alguma coisa, reconheceria que não se poda o pomar da ciência cortando pela base do caule "à machadada" (a expressão é do presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática) um grande número de unidades de investigação, escolhidas de um modo quase aleatório. Coutinho só quer saber da sua árvore, que deixa intacta com os raminhos todos, mesmo os secos, mas quer cortar pela raiz muitas outras, mesmo que dêem bons frutos. Quer cortar, entre outras, unidades de investigação em ciências agrárias que lhe podiam ensinar como se faz uma poda bem feita: tem de ir a todas as árvores e só cortar as partes mortas, com muito cuidado para não ferir o resto.

Eis alguns erros factuais graves no artigo de António Coutinho no  Expresso:

1. Coutinho começa por dizer que os resultados desta avaliação das unidades de investigação são idênticos aos da avaliação de 2007. Não são. Em primeiro lugar a escala de classificações é diferente. Em 2007 esta tinha 5 níveis e em 2014 tem 6. Um Bom, terceiro nível numa escala de 6, é agora uma nota negativa. Afirmar que é a mesma a percentagem de unidades abaixo de Muito Bom que em 2007 não faz nenhum sentido porque a escala mudou. Em segundo lugar, como nota Coutinho no parágrafo seguinte, a avaliação de 2007 não abrangeu os 26 laboratórios associados, avaliados nessa altura num processo próprio (a vantagem ou desvantagem de os avaliar em conjunto com as restantes unidades é irrelevante para a comparação quantitativa que Coutinho pretendeu fazer). Esses 26 laboratórios associados passaram à segunda fase, todos menos um. Portanto, para além da escala, também o universo não é comparável. Declarar que os resultados são idênticos é um erro factual grave. Um erro lamentável para um grande cientista ainda que (julgo) aposentado. Acresce que, se em cada exercício de avaliação forem sempre eliminadas metade das unidades, daqui a alguns anos ficaremos apenas com uma unidade e talvez tenhamos que a cortar ao meio para chumbar a metade que não agrada a António Coutinho.

2. António Coutinho parte do principio de que a avaliação mais recente é virtuosa. Para ele isso é um dogma, portanto algo indiscutível. Ignora os gravíssimos erros que foram apontados por muitos e conceituados investigadores. Sobre esses erros, devidamente fundamentados, Coutinho não diz uma única palavra. Passou ao lado dos argumentos da ampla contestação, como se estes não existissem. Em ciência seria como se ignorasse por completo os artigos dos outros sobre o mesmo assunto. Não referiu que as notas dos vários centros da mesma área são incomparáveis, porque cada unidade foi classificada  por avaliadores diferentes. Não referiu que os painéis de avaliação são menos que em 2007 e que cada painel abarca uma tão grande diversidade de áreas que os seus membros não incluem especialistas de todas as áreas e subáreas que avaliam. Isto é, esta não foi uma avaliação por pares!  E é também por isso que ela é controversa ao contrário da anterior.  Não se pronunciou sobre a quota estabelecida a priori de 50 por cento de 
chumbos, constantes do contrato celebrado entre a FCT e a ESF, que corrompeu a 
justiça e a validade da avaliação. Essa percentagem de aprovações forçou a uma redução artificial e arbitrária de classificações de alguns centros, transformando a "avaliação" que Coutinho elogia numa lotaria, quer dizer, numa verdadeira fraude. O contraste entre as notas atribuídas, que Coutinho não se deu ao trabalho de analisar, é digno de análise.  Em ciência seria como escrever um artigo sem olhar para os dados. Passando ao lado de tudo isto, ainda se permitiu divagar sobre a "reinvenção da roda" que, na sua opinião, se faz nalguns centros chumbados e afirmar que o seu financiamento seria alimentar a mediocridade. Quer Coutinho, como se de tudo soubesse, permitir-se avaliar, ele próprio, as unidades de matemática, física, química, sociologia, estudos clássicos, etc.? Em suma, Coutinho comete um erro factual grave: parte do principio, e contra toda a evidência, que a avaliação foi boa. E não foi. Foi  uma fraude, eivada como está de erros grosseiros.  Não corrigir imediatamente um erro quando ele salta à vista viola as mais elementares regras da ciência.

3. Nuno Crato afirmou recentemente que as criticas ao processo de avaliação das unidades de investigação são feitas por pessoas que não são isentas, por estas serem partes interessadas. E este elogio, até agora singular, à "avaliação"? É difícil imaginar uma parte mais interessada do que António Coutinho, coordenador do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNCT), um órgão criado pelo actual governo e presidido por Pedro Passos Coelho. A propósito: onde anda o CNCT? A avaliação das unidades e a sua avassaladora contestação (reitores, sociedades cientificas, etc.) não é tema que mereça um conselho do órgão que tem por missão aconselhar o governo nestes temas? Ou agora o CNCT é um órgão unipessoal, exercido por Coutinho, para evitar vozes dissonantes, mesmo entre as vozes escolhidas pelo governo? O CNCT ainda existe ou suicidou-se quando se deixou condicionar a propósito do corte brutal nas bolsas de investigação? O CNCT bem poderia contribuir para a unidade da ciência em Portugal pugnando contra a sua amputação.

4. António Coutinho parece considerar que o ensino superior pode ser assegurado por professores que não fazem investigação. De que ensino estará ele a falar? Será que Coutinho sabe o que é uma universidade na moderna definição de Humboldt? Está a defender o abate de algumas universidades? Quais e porquê? A avaliação da FCT pretenderá eliminar universidades? Se sim, quais? Quanto aos bons investigadores abatidos ele quer transferi-los de universidade? Talvez do Minho para Lisboa? E os investigadores sobrantes quer mandá-los para as empresas estrangeiras já que as de cá não os têm sabido ou conseguido receber? E por que é que os outros, supostamente melhores, não vão para a indústria que tanto precisa de gente que inove? Seria bom que esclarecesse. 

 Tinha António Coutinho em alta consideração antes de ele ter anunciado a sua autocrática "teoria da poda", ou melhor da "grande poda", pois mais não faz do que destruir metade da ciência nacional. Quando ele se informar mais e melhor sobre a "poda", quando ele se informar mais e melhor não só sobre a gestão da ciência mas também sobre a gestão de universidades e empresas, nessa altura, se for como quero crer que é intelectualmente honesto, reconhecerá que se enganou. 

 Carlos Fiolhais

5 comentários:

Anónimo disse...

O sr. prof. dr. Fiolhais tinha/tem demasiada gente tóxica em "alta consideração". (Até parece o outro professoré doutouré do umbigo). Pelos vistos há demasiados cataventos na academia.
Quanto às imbecilidades de alegados pensionistas e maoístas não tenho como as comentar porque entendo pouco de doenças mentais.....

ajacinto disse...

Não percebo se o Carlos Fiolhais é a favor ou contra o conceito de avaliação. A primeira frase parece traí-lo “Só se conhecia uma voz favorável à avaliação das unidades de investigação da responsabilidade da FCT”. Quer isto dizer que o Carlos Fiolhais rejeita a avaliação e acha que o António Coutinho é o único que a defende? Não me parece porque eu e a maioria dos cientistas que conheço somos a favor de uma avaliação exigente e consequente. Será que o Carlos Fiolhais acha que um bom exemplo de avaliação são “os 26 laboratórios associados, avaliados nessa altura num processo próprio”. Muita gente discorda, eu por exemplo, sou Investigador Principal em Laboratórios Associados desde 2002 e nunca assisti a nenhuma avaliação a este tipo de instituições. A não ser que se considere avaliação alguma análise documental na secretaria que eventualmente tenha existido e cujo resultado foi todos termos continuado a ser alegremente excelentes.

A avaliação é essencial para que o nosso sistema científico continue a evoluir positivamente como tem acontecido nos últimas décadas. O processo de avaliação das unidades de investigação em curso não está a ser perfeito, mas os anteriores também não foram. Temos de identificar os erros cometidos e convencer a FCT a corrigi-los para que não voltem a acontecer. A atitude do Carlos Fiolhais é de tal forma negativa que fica a dúvida se não estará acima de tudo frustrado pela sua unidade de investigação ter sido mal classificada, eventualmente de forma injusta.

Anónimo disse...

Para António Coutinho não importa o que as palavras “Medíocre” e “Excelente” significam. O que importa é que tudo o que seja classificado de Medíocre seja eliminado e tudo aquilo que seja classificado de Excelente seja financiado. Tal apreciação ignora dois tipos de exemplos fulcrais no desenvolvimento científico: aquilo que outrora foi classificado de Medíocre verificou-se ser Excelente; aquilo que outrora foi classificado de Excelente verificou-se ser Medíocre. Basta ler um pouco de História da Ciência para tomar conhecimento de exemplos deste tipo. Humildade científica é necessária para inferir que devemos continuar a ser prudentes ao avaliar a investigação dos outros.

Anda por aí uma ideia comparativa, que António Coutinho também se socorre, que unidades de investigação são avaliadas pelos pares como são avaliados os artigos científicos. Na verdade, a 1ª fase da presente avaliação foi feita à luz desta própria ideia: os relatórios das unidades foram enviados para dois referees externos e, posteriormente, o painel de avaliação comportou-se como um corpo editorial de uma revista, onde 50% dos “artigos” teriam de ser recusados por falta de espaço na revista. Acontece que unidades de investigação não são para ser avaliadas por um processo idêntico aos da publicação científica. Um artigo recusado, em virtude de pareceres díspares, pode ser sempre re-submetido a uma outra revista e vir a ser publicado. Por sua vez, recusar financiamento a uma unidade de investigação é simplesmente condená-la para o futuro.

migprud disse...

Não me parece que das palavras de Carlos Fiolhais se possa inferir uma discordância com a existência duma avaliação, mas sim uma discordância com esta avaliação. Discordância essa, diga-se, plenamente justificada e compreensível para quem quer que não esteja preso a fidelidades políticas ou pessoais que tolhem a objetividade. Para defender este sistema de avaliação criado pela FCT, é necessário ir contra todas as evidências científicas, lógicas, ou de mero senso-comum. Contudo, os factos são coisas teimosas. Eis alguns: a imposição duma quota de 50% de reprovações pelo próprio contrato de avaliação fere de morte qualquer credibilidade que a mesma pudesse ter; a European Science Foundation, responsável pela avaliação, é uma entidade moribunda de credibilidade duvidosa para levar a cabo uma tarefa desta monta; os painéis de avaliação não têm o grau de especialização necessário para avaliar as instituições que lhes compete avaliar sendo que, em muitos casos, o mérito científico dos avaliadores é claramente inferior ao dos avaliados; como diz Carlos Fiolhais, e contrariamente ao que diz Coutinho, a avaliação não foi boa, longe disso, sendo a responsabilidade desse facto de quem a concebeu e contratou os avaliadores.

Infelizmente tudo isto é ignorado por Coutinho. Considerando a sua constante defesa desta Direção da FCT, confesso que o seu artigo no Expresso não me supreendeu (embora deva confessar que me supreenderam alguns erros ortográficos nesse mesmo artigo). Congratulo-me, pois, com o texto de Carlos Fiolhais neste blog, que tão bem desmonta os argumentos apresentados. E, para que não restem dúvidas, termino dizendo que não estou contra uma avaliação das instituições científicas portuguesas, muito pelo contrário. Apenas se pede que esta seja rigorosa, honesta e competente, todas estas características que não se encontram na avaliação que foi levada a cabo pela FCT.

Anónimo disse...

É uma pena que os fundos não sejam aplicados a projectos de excelência e sirvam para subsidiar projectos que mais não são do que empregos bem remunerados, com esta polémica é evidente que a cultura de mérito assusta muita gente porque dá trabalho, também fica patente a forma como a classe reage em grupo contra as mudanças... não são só os professores do secundário e os táxistas.
No fundo todos diferentes, todos iguais, educados no mesmo caldo cultural.

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