sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A CASA DA MINHA AVÓ

A avó Isabel foi o meu primeiro contacto com uma pessoa, nesse tempo, considerada idosa, teria ela sessenta e poucos anos. A sua imagem está entre as minhas primeiras tomadas de consciência do mundo que me rodeava, tinha eu dois para três anos. Sempre de preto, dos sapatos ao lenço, como mandavam os usos que se vestissem as viúvas, a mãe da minha mãe foi a única, de entre os meus avós, com quem me foi dado conviver. O marido, o avô Vicente, que já não conheci, era oriundo da região de Alcanede, de uma família de curtidores de peles e, também ele, curtidor de profissão.

Mãe de sete filhos, a todos criou, dentro dos condicionalismos do tempo e das suas limitadas posses.

Quando a conheci, esta minha avó vivia só, numa velha casa da rua de Frei Braz, em Évora. De pavimento já empedrado nessa altura, esta rua representava um avanço considerável sobre muitas outras da cidade, então ainda de terra batida, com calcetamento apenas nas regueiras, uma de cada lado, sob os beirais. Ficou-me esta casa, entretanto demolida, bem mais gravada na memória do que a dos meus pais, onde vivia com mais quatro irmãos, todos mais velhos do que eu, situada na mesma rua, três portas mais acima.

Vinda de finais do século XVIII, nela se entrava por uma grossa porta de madeira com postigo. Esverdeada, no tom que restava de uma velha pintura, tinha uma fechadura enorme e um pesado batente de ferro. Por cima, no primeiro andar, uma janela de peito. Do lado direito da fachada, saliente da parede, sempre caiada de branco, subia a chaminé, larga e bem acima do telhado. Num prego, a meia altura, ao lado da ombreira da porta, uma gaiola com um pintassilgo. Sobre o parapeito da janela, do lado de fora, um “craveiro” com “malvas” e um outro com brincos-de-rainha. A avó chamava craveiro a qualquer vaso para plantas, e malvas às sardinheiras vermelhas. Por detrás das vidraças, alvejavam as cortinas de croché, com os desenhos de dois pavões virados um para o outro, rodeados de motivos florais um tanto geométricos.

A casa tinha quatro divisões em dois pisos. Duas ficavam no rés-do-chão, a de entrada, servindo simultaneamente de cozinha e de sala de todas as serventias, e uma outra, interior. Sempre aberta, a porta da rua, meio escancarada durante o dia, como única fonte de iluminação, dava-nos a liberdade de entrar e sair vezes sem fim entre o brincar e o pedir pão ou água. No poial, ao fundo desta divisão, as bilhas de barro vermelho, tapados com um texto também de barro, tinham sempre água fresca com um sabor a terra, muito especial e apreciado. Junto deles, sempre à mão, o copo de água, de vidro grosso com relevos, tinha forma de campânula e pé alto e estava sempre tapado com um pequeno napperon. Atrás, empinados à parede, arrumavam-se os alguidares de barro vidrado.

Com tampo de lousa, o “pial”, como dizia a avó, era uma espécie de balcão de alvenaria, construído junto de uma parede, com espaços abobadados por baixo – as buracas – onde se guardavam diversos utensílios de cozinha, louças de barro e outras.

– Tapa o copo, por causa dessas malditas moscas! – Recomendava a avó sempre que um dos netos entrava para beber, esbraseado pelo calor e pelas correrias.

O poço da casa ficava nesta divisão, no vão da escada que subia para os quartos. Coberto com uma grande tampa de madeira e sempre muito caiado, deixava ver as capas sucessivas de tanta caiança. Ao lado, no rebordo, o balde com a respectiva corda e o cesto de arame que servia para nele se descer, a refrescar, melões, melancias ou uma garrafa de vinho. Por cima, num prego, pendurava-se a fateixa, espécie de âncora ou gancho de muita utilidade para trazer de volta o balde que, escapando-se a corda das mãos, muitas vezes, se deixava cair ao fundo e que aí ficaria confirmando os princípios de Newton e de Arquimedes.

– Saiam “d’ó pé” do poço! – Ordenava a avó sempre que, destapando-o, espreitávamos a rodela de espelho, lá em baixo, onde mal se desenhavam os contornos das nossas cabeças que fazíamos tremer, lançando-lhe pequenas pedrinhas. Tinha um gosto particular esta água do poço da avó. Era salobra, como ela dizia, e muito boa para ajudar a digestão, ou para “desmoer” o almoço, na sua maneira de falar.

A chaminé, grande e própria para lume de chão, tinha varas suspensas onde, em vida do avô, no tempo da matança, se enfiavam os enchidos a pendurar ao fumeiro. Nela cabia uma pequena mesa com uma gavetinha para os talheres, onde se podia almoçar ou jantar confortavelmente sentado numa cadeirinha baixa, ao pé do borralho. De Inverno era bom sentarmo-nos todos em roda do lume, uns em cadeirinhas outras em mochos, ouvindo histórias, embalados no crepitar da lenha, presos os olhos na luz azul-lilás saída de entre os paus de azinho, apoiados num grande toro. Este madeiro, no geral também de azinho e às vezes de sobro, era encostado à “boneca”, ao centro e ao fundo da chaminé. Reminiscência do passado, a boneca era uma espécie de figura antropomórfica de pedra ou de tijoleira, um pouco saliente da parede caiada, protegendo-a do calor e do negro dos fumos.

Às vezes, nas brasas do borralho, assavam-se pedaços de toucinho, de farinheira ou de chouriço, misturando o odor que exalavam ao da lenha a arder. Comia-se com pão caseiro e café de cevada, feito ali, numa chocolateira de barro a que se juntava, no fim, uma brasinha para assentar o pé.

– Não mexas no lume! – Ralhava a avó a todo aquele que, insistindo para além do necessário, mexericava nos tições do braseiro. – Quem mexe no lume faz xixi na cama! – advertia ela, tentando fazer-nos acreditar naquela relação causa-efeito.

Passado o rigor do Inverno, não se acendia a lareira e os cozinhados era feitos num fogareiro a carvão. Nas noites mais amenas, a avó e outras vizinhas levavam para a rua, cada uma, a sua cadeirinha baixa, e aí ficavam conversando, enquanto a miudagem dava largas à energia, sempre muita, brincando e correndo. Nessa altura já havia iluminação pública que, embora muito fraca, permitia este tipo de confraternização. Muitas casas já estavam electrificadas, mas esta vinha de outros tempos e, para o que ali se fazia à noite (a avó não sabia ler) bastavam o candeeiro de petróleo sobre a mesa, para que se visse onde se estava e onde se mexia, e a palmatória com uma vela, que se acendia para subir aos quartos.

Nesse tempo não havia televisão e a rádio ainda estava longe de entrar nas casas de família. O cinema já existia, mas ainda não tinha chegado à cidade. Assim, os contos e as histórias que se contavam e ouviam, ou as conversas que se faziam, eram os nossos folhetins radiofónicos ou as nossas telenovelas. Eram os contos de final feliz, mas também histórias de meter medo, com bruxas, feiticeiras, ladrões e salteadores. Que arrepios no alto da cabeça e pela espinha abaixo!

O chão de todas as divisões era de ladrilhos quadrados e grandes. No Verão, quando eram molhados para se varrer ou, simplesmente, para refrescar a casa, exalavam o mesmo cheiro das bilhas com água. Muito gastos, deixavam sobressair em acentuado e incómodo relevo os seixos contidos no barro mal cuidado de que eram feitos. A casa de entrada era o espaço principal, funcionando como cozinha e casa de estar. Podia, ainda, reunir todos os netos à mesa, pois que tinha também os cómodos precisos numa casa de jantar. Para funcionar ainda como sala de visitas esta mesma divisão dispunha de um elegante canapé com quatro almofadas de veludo e cetim, pintadas à mão.

Nas paredes, emolduradas, duas gravuras de muita estimação. Uma era alusiva à Proclamação da República,

e outra à travessia aérea do Atlântico Sul, com os retratos do Gago Coutinho e do Sacadura Cabral e um belo hidroavião, ao centro.

O tecto desta divisão era formado por conjuntos de grossas traves de madeira colocadas no sentido transversal da casa, suportando uma outra fiada de traves mais finas, cruzadas com as anteriores, sobre as quais assentavam outros ladrilhos. Na outra divisão térrea, a selha de lavar a roupa era feita de meias aduelas de madeira sustidas por aros de ferro, como nas pipas de vinho. Quase sempre com água de sabão usada, enchia o ambiente de um cheiro húmido, característico e inesquecível.

Num canto, tapado com uma tampa de madeira, estava o indispensável pote, ou «tigela da casa», como se lhe chamava, e que, todos os dias, a avó lançava na pia dos despejos, deitando-lhe depois, no fundo, por causa dos maus cheiros, um pouco de água e uma golada de creolina que íamos comprar à drogaria. Nas situações em que fosse necessário perfumar a casa, colocava-se alecrim na pá do lixo, nesse tempo de folha de ferro, e sobre ele, uma brasa. De pá na mão, deixando libertar os fumos, percorriam-se as divisões necessitadas desse cuidado.

As duas divisões do piso superior eram o quarto da avó, com janela para a rua, e uma outra, interior, de arrumações. No quarto, a cómoda, de pinho e sem estilo, onde uma lamparina de azeite, sempre acesa, tremeluzia junto aos santinhos da devoção da avó, era a peça importante do mobiliário. Tinha três grandes e fundas gavetas onde ela guardava as roupas, perfumadas com saquinhos de pano fino cheios de alfazema ou de rosmaninho. Coberta com uma toalha orlada de renda, feita à medida do móvel, mais parecia um altar. Aliás, era essa a intenção da mãe da minha mãe que, apesar de muito temente a Deus, não ia à missa nem se confessava porque, para ela, um padre era sempre um homem como outro qualquer. Suportada por dois cavaletes, uma velha arca de madeira, forrada de cabedal ressequido e ornada de preguetas amarelas, guardavam roupas antigas, sem uso, perfumadas com saquinhos de alfazema e amarelecidas pelos anos.

Perto da janela, a cama de ferro tinha com enxergão de palha de centeio, sobre o qual assentava o colchão de lã, fofo e quente. Os lençóis eram de linho, com bordados de abertos na dobra, e a colcha, de renda, feita com fio de algodão muito grosso, tinha cadilhos até ao chão. Sobre a cabeceira da cama via-se uma oleogravura emoldurada com uma imagem de Jesus, deixando ver as chagas da crucificação e exibindo o Seu Sagrado Coração, cravado de espinhos, irradiando fios de luz.

Para uso nas suas orações da noite, a avó tinha, suspenso numa das maçanetas de latão, da cabeceira, um terço benzido, trazido de Fátima por uma vizinha e amiga que ali fora em peregrinação. De um dos lados da cama a “banquinha-de-cabeceira” tinha o tampo de mármore parcialmente coberto com um napperon de renda. Sobre ele um pequeno crucifixo com a imagem em casquinha prateada e a cruz em madeira lacada a preto, muito leve. Ao lado, a palmatória de estanho com uma vela de cera e a caixa dos fósforos. Havia ainda ali a garrafinha de água em vidro acobreado com florinhas pintadas, daquelas com prato por baixo e copo emborcado no gargalo, que a mãe lhe comprara na feira de S. João.

O lavatório era uma armação de ferro pintada de branco, com jarro de faiança, tapado com mais outro napperon, bacia da mesma loiça e balde de ferro zincado, que era preciso despejar regularmente. Por cima do balde, numa base circular, estavam a saboneteira de loiça e uma escova de cabelo com um pente cravado. De cada lado tinha suspensas duas toalhas de rosto, em linho grosso e de cor crua, com lindos cadilhos, ali colocadas só para fazer decoração. Em frente, colado à parede, havia um pequeno espelho numa moldura branca com um friso dourado. Duas cadeiras holandesas com fundo de palhinha completavam o mobiliário.

O quarto interior era o das arrumações. Além de mais duas grandes arcas, tinha duas camas de ferro onde, algumas vezes, um ou outro dos netos dormia. Era aí que estava o lavatório com as toalhas de uso, onde, sempre à pressa, me lavei mal e porcamente, numa operação que consistia em molhar os olhos com as pontas dos dedos e encharcar o cabelo para que, penteado e brilhante de água, me desse um certo ar de asseio. Nas manhãs desses dias, a avó fazia-me papas com farinha, água, uma colherzinha de banha de porco, em sua opinião, “para dar sustento”, e uma casquinha de limão. No borralho da chaminé, mexendo sempre com a colher de pau, vigiava-as até engrossarem. Na fase final, a libertação do vapor, vencendo a viscosidade da mistura, começava a fazer bolhas espessas e sonoras.

– Já está a dar bufas! – dizia, logo que as via rebentar, grandes, lentas e grossas.

Aí, juntava-lhes umas colheres de açúcar amarelo, que era o que havia, e mexia-as bem durante um tempo sabiamente calculado. Retirava-as, por fim, do lume e vazava-as nuns pratinhos rasos para arrefecerem mais depressa. Mais açúcar, agora só para as polvilhar por cima e, por fim, canela, a fazer enfeites.

Já frias, mas não muito, porque a pressa de as provar as não deixava arrefecer, rijas na colher que as trazia à boca, capinha bem doce, da última dose de açúcar, e perfumadas pela canela, não havia manjar como aquele.

Ainda hoje as faço, não com água mas com leite, nesse tempo um bem raro, e não lhes ponho banha, porque o sustento, sabemos hoje, não está na gordura.
A. Galopim de Carvalho

4 comentários:

regina disse...

Que fantástica viagem no tempo.
Obrigada Professor
Regina Gouveia

perhaps disse...

Maravilha, este entremeio de passado.

Unknown disse...

Uma pequenina correcção ... O seu avô Vicente não era de Alcanede mas sim de Alcanena. Muito provavelmente dos Silva Galopim das Moitas Venda / Casais Robustos.
Pode muito bem ter ligações judaicas (os Silvas Santarém dos C.Robustos diziam-se X.N, e eram peleiros conforme diz um processo da inquisição quando em 1752 moravam nos Amiais de Baixo)

ZAMIAIS (Também curtidor em Alcanena)

Unknown disse...

Alcanena

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