Nos
textos que tenho aqui publicado sobre as relações entre a química e a
literatura tenho evitado as referências (mais ou menos óbvias) a
livros em que a química está ligada a venenos. Uma nova leitura ao
Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas, livro datado de
1844, fez-me mudar de ideias. Não só existem neste livro aspectos
detalhados e muito positivos sobre a química, como as questões
levantadas pelos venenos referidos são muito mais interessante do
que pareceria à primeira vista.
Na
Prisão de If, Edmond Dantès conhece o abade Faria de origem
italiana, notável personagem inspirada numa outra real e com o mesmo
nome mas de origem portuguesa, segundo um notável estudo do
Professor Egas Moniz. Faria mostra a Dantès, o qual depois de
escapar da prisão assume o nome de conde de Monte Cristo, como
conseguiu na prisão, com os seus conhecimentos de química, obter
folhas em quantidade para escrever a partir de uma camisa, fazer
velas a partir de gordura dos alimentos e fabricar tinta a partir da
fuligem. Ao longo de toda a história, o Conde de Monte Cristo
apresenta-se como químico amador que tem um remédio maravilhoso
(que nunca sabemos bem o que é), o qual em pequena quantidade
cura mas em grande quantidade mata.
Há
muitos outros aspectos químicos que podem ser explorados neste
livro, mas aqui vou referir apenas a brucina, um veneno muito
presente no livro, o qual sabemos hoje ser obtido das mesmas espécies
de árvores de onde se obtém a estricnina. Umas décadas antes da
publicação do livro, a brucina tornou-se tristemente famosa devido
a uma fraude com consequências trágicas, contada em detalhe por
John Buckingham em Bitter Nemesis: The Intimate History of
Strychnine, de
2007. Um
elixir amargo similar ao de
casca de chichona
(que
contém quinina),
mas sem as propriedades curativas deste,
o qual
era obtido a partir da
casca de uma árvore
denominada
angostura,
causou várias mortes por
altura de 1800.
A
causa dessas
mortes foi associada a uma
suposta falsa angustura
que durante muito tempo não se soube de onde provinha.
Quando se pensou ter
identificado essa árvore como
sendo uma Brucea,
Pelletier e Caventou, que haviam já identificado a estricnina nas
árvores do género Strychnos,
analisaram a casca dessa
árvore e encontraram uma
substância muito similar à estricnica que denominaram brucina. De
facto, embora os dois
compostos parecessem de ter vindo de árvores diferentes, só em 1937
se confirmou que Pelletier e Caventou tinham analisado partes
diferentes do mesmo tipo de árvore do
género Strychnos.
Além disso, a
estricnina obtida por estes químicos continha
brucina como
mais tarde se verificou.
Muito
medicamentos da altura, supostamente de estricnina, continham também
brucina, sendo a
dosagem assim, durante
bastante tempo, um problema
delicado e perigoso.
Não
sabemos se Alexande Dumas
estaria informado dos
últimos desenvolvimentos
sobre a origem da brucina, pois no livro ainda refere a sua origem a
partir da falsa
Angustura. Em
qualquer dos casos, a novidade e os aspectos misteriosos da origem
deste veneno, assim como as suas propriedades e os testes com ácidos
que confirmam a sua presença, devem tê-lo fascinado e por isso
preferiu dar-lhe mais importância do
que à estricnina, a qual é
mais venenosa do
que a brucina.
De facto, além de menos tóxica, a brucina é detectável de
forma mais fácil do que a estricnina por reacção com ácidos
fortes, sob a acção dos quais origina compostos com uma forte cor
vermelha, um aspecto referido por Alexandre Dumas no livro. Em
qualquer dos casos, os sintomas são idênticos e facilmente
identificáveis, sendo só vagamente semelhantes aos do tétano.
Jock
Murray no artigo Medicine in Alexandre Dumas père's The
Count of
Monte Cristo, de 2002, cita as memórias de Alexandre Dumas para
apontar como fonte das informações sobre química e medicina
presentes neste livro um jovem médico, o Dr. Thibaud. Além dos
apsectos médicos, Murray comenta ainda ser surpreendente que um
livro referido como sendo de literatura juvenil contenha, entre
outras coisas, uma envenenadora em série, dois infanticídios,
assassinatos e mortes em abundância, três suicídios, cenas de
tortura e execução, drogas e fantasias sexuais envolvendo drogas,
travestismo e lesbianismo, aspectos que terão sido suavizados nas
traduções inglesas. Encontramos, no entanto, níveis de violência
da mesma ordem noutros livros de literatura juvenil do século XIX,
por exemplo nos de Emilio Salgari, o que, em qualquer dos casos, não
agradava nada aos moralistas da altura.
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