Nessa actividade de delegado de informação médica, que se prolongou por todo o ano de 1959, houve uma situação, deveras insólita que retive bem viva na memória e que, um qualquer doente de parcas posses que, por razões de urgência, se vê forçado a recorrer à medicina privada, tem dos médicos uma imagem pouco edificante, nem sempre justa, de uma profissão, para alguns, altamente rentável.
Um primo meu, camionista de pesados que, pelas ditas razões, trocara o hospital pelo consultório do especialista na capital, tinha essa imagem bem metida na cabeça. Nas muitas vezes que vinha buscar ou trazer cargas a Lisboa e que nos juntávamos para almoçar, relatava-me os seus problemas de saúde e o rombo que isso lhe dava no seu magro salário, tratando todos os médicos por “tubarões de bata branca”.
«Nem todos são assim, Manuel». Dizia-lhe eu, a pensar em dois ou três que conhecia e que eram o polo oposto do estereótipo emocionalmente fixado pelo meu primo. «Ainda há muitos João Semana por esse país». «Mas isso é lá na província». Respondia-me ele, muito seguro de si. «Não é aqui na capital».
A dita situação que agora relato, passados mais de cinquenta anos, teve lugar no consultório de um professor de medicina, como se podia ler na placa de latão, brilhante de solarine, afixada ao lado da porta da rua. Eu havia faltado à primeira chamada do exame de frequência da disciplina de Zoologia Geral. Já tinha, na altura, 28 anos e para ganhar tempo, matriculara-me no máximo de cadeiras que a minha condição me permitia. Precisava de mais uns dias para me preparar para o dito exame, e fazê-lo numa segunda chamada era a única solução.
Mas para aceder a essa oportunidade era preciso habitual atestado médico a declarar que o aluno faltara à primeira chamada por motivo de doença. Convicto de que este respeitável clínico compreenderia o problema de um estudante, nas condições em que me encontrava, revelei-lhe a situação, pedindo-lhe, com toda a ingenuidade, que me passasse o tão desejado atestado. Como resposta, comecei por receber a mais austera lição de moral que me foi dado ouvir em toda a minha existência. Que o que eu lhe estava a pedir era uma fraude e que ele, ainda por cima, professor, não podia pôr a sua assinatura num documento que faltava à verdade.
Reduzido ao tamanho da minha insignificância, argumentei que era prática corrente na Faculdade, que até havia um contínuo que se encarregava desse estratagema, servindo de intermediário entre os necessitados desse documento, quase sempre falso, e um médico de todos desconhecido que, a troco de escassos escudos, o assinava. O que era preciso, afinal, era o que ele rendia à fazenda pública.
A verdade é que tive artes para demover este seguidor de Hipócrates, a entrar na terceira idade, que acabou por preencher a meia-folha de papel-selado, que levara comigo e inutilizar o selo fiscal, ali colado. com a sua douta e respeitável assinatura. «Faz favor de aguardar na sala de espera». Disse-me, enquanto guardava no bolso a Parker 51. «A senhora enfermeira já lhe leva o atestado». Grato mas um tanto vexado, expressei-lhe o meu reconhecimento e retirei-me. Passados alguns minutos, a enfermeira que, ao mesmo tempo, fazia as vezes de recepcionista, trouxe-me o papel azul que me abria a possibilidade de estudar mais uma meia dúzia de dias para a tal segunda chamada. «São trinta escudos.» Disse, quando eu me preparava para sair, agradecendo.
«Trinta escudos?» Repeti, apanhado de surpresa. «É metade do preço que o senhor professor costuma cobrar». Respondeu com um sorriso magoado, num tom de quem pede perdão de uma culpa que não tinha.
Depois daquela inesquecível lição de ética profissional, saída da boca deste distinto professor, não me passava pela cabeça que desejasse receber honorários. Como era costume, não levava comigo tanto dinheiro, de modo que tive de voltar no dia seguinte em busca do indispensável papel. Paguei e nunca mais ali voltei no desempenho da profissão.
O que mais me surpreendeu neste episódio não foi a reprimenda em si, ética e moralmente incontestável, nem tampouco os trinta escudos que me saíram do bolso, nessa altura o equivalente a mais de três refeições na tasquinha do Elias, um simpático galego, que nunca precisou de falar português. O que, de facto, me surpreendeu e deixou confuso foram aquelas duas atitudes numa mesma pessoa.
Quando, dias depois, relatei este episódio ao meu primo, ele, olhando para mim com ar de quem sente ter razão, acrescentou sorrindo: «Eu bem te dizia. O que não falta por aí são tubarões. E não são só os da bata branca»…
A. Galopim de Carvalho
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