Meu artigo no último número de "As Artes entre as Letras", a revista cultural do Porto que acaba de fazer cinco anos:
Como o “As Artes entre as Letras” acaba de completar cinco
voltas ao Sol, lembrei-me de procurar exemplos interessantes em que o número
cinco aparecesse. Cinco é, de facto, um número que aparece muitas vezes, e de forma curiosa, tanto nas ciências como nas
artes. É, na matemática, o número de
sólidos platónicos ou perfeitos (tetraedro,
cubo, octaedro, dodecaedro e icosaedro). É, na química, o número de elementos da Antiguidade grega, se aos quatro tradicionais
(água, ar, fogo e terra) acrescentarmos
o misterioso éter ou quinta-essência. É, na geografia, o número de continentes:
Europa, Ásia, África, América e, mais recente, a Antárctica. É, nas letras, o
número de vogais: o aeiou que os meninos aprendem na escola. E é, finalmente, na música, o número de linhas
nas modernas pautas.
E, como o “Artes” tem sabido juntar de forma exemplar as ciências às artes, lembrei-me também de procurar cinco exemplos de ligações
entre ciência e artes na história da
ciência em Portugal. Nessa história várias são as figuras e os episódios em que
a ciência e a literatura se interligam, não sendo fácil a escolha. Escolhi cinco
casos, desde o século das luzes até ao século passado, que mostram como ciência e artes se conjugam
na cultura humana.
1. Teodoro de Almeida (1722-1804), padre oratoriano, natural
de Lisboa, que foi figura maior do Iluminismo católico português e o primeiro
grande divulgador da ciência entre nós, com o seu livro “Recreação Filosófica”. No ano de 1761, o padre Almeida encontrava-se
escondido na Igreja dos Congregados no Porto, onde procurou refúgio da fúria persecutória
do Marquês de Pombal, a qual, após se
ter dirigido aos Jesuítas em primeiro lugar, acabou também por atingir os
Oratorianos. Foi do Porto que ele observou o trânsito do planeta Vénus diante
do Sol que ocorreu nesse ano. Haveria de
se exilar primeiro em Espanha e em França, até acontecer a “Viradeira”, com a
morte do rei D. José e a destituição do Marquês. Acabou por ser o autor da
primeira oração de sapiência na nóvel Academia de Ciências de Lisboa no ano de
1780, uma oração que provocou viva controvérsia
entre os partidários do primeiro ministro deposto. Teodoro de Almeida escrevia com rara elegância
e clareza, podendo a sua obra maior, a “Recreação Filosófica”, ser
considerada uma bem sucedida tentativa
de fusão entre entre as ciências e as letras.
2. Augusto Nobre
(1865-1946), natural do Porto, professor de Zoologia primeiro da Academia Politécnica
do Porto e depois da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, que surgiu
em sua substituição em 1911, especializou-se em malacologia, tendo criado a
primeira estação portuguesa de biologia
marinha. Foi Reitor da Universidade do Porto e ministro da Instrução Pública. A
ligação do Prof. Nobre à literatura fez-se através do seu irmão António Nobre,
o bem conhecido autor de “Só”, “o livro mais triste que há em Portugal”. António morreu muito novo, com apenas 32 anos, vítima da tuberculose, a doença da
época que dizimou tantos cientistas e artistas. Pois foi o seu irmão Augusto que tratou de assegurar a
memória futura do poeta, recolhendo e entregando o seu espólio à Biblioteca
Municipal do Porto e ajudando na edição de algumas publicações póstumas.
3. Ricardo Jorge
(1858-1939). Natural do Porto, o médico
formado na Escola Médico-Cirúrgica do Porto haveria de ser docente nesta
instituição. Depois de se ter iniciado na área da Neurologia, acabou por se
transformar num higienista, tendo mesmo sido pioneiro da Higiene Pública em Portugal. No ano de 1899 estava a combater
um inusitado surto de peste no Porto, quando, confrontado com a fúria das populações
ás quais queria sensatamente impor um
cordão de isolamento sanitário, teve de abandonar a Cidade Invicta para
ingressar na Escola-Médico Cirúrgica de Lisboa, que em 1911 se transformou na Faculdade
de Medicina da Universidade de Lisboa. O Dr. Ricardo Jorge, não contente por
ter sido um dos grandes médicos da sua época, foi também um cultivador das
letras: escreveu vários volumes numa
prosa esmerada, por exemplo os “Canhenho de um Vagamundo”, e não temeu
incursões na historiografia e crítica
literária ao escrever sobre o escritor leiriense
Francisco Rodrigues Lobo.
4. António Egas Moniz
(1874-1955), o até agora único nosso Prémio Nobel português nas áreas das Ciências (foi laureado
com o Prémio de Medicina em 1949),
nasceu em Avanca, não longe de Estarreja e da ria de Aveiro, numa casa hoje
transformada em museu que pode ser visitada,
e estudou Medicina em Coimbra, onde iniciou
a sua carreira docente. Com o estabelecimento da Faculdade de Medicina de
Lisboa, acabou por se transferir para a
capital, onde, após um período de intensa actividade política, passou a dedicar-se em quase exclusividade à
ciência, efectuando invenções pioneiras (a angiografia cerebral e a leucotomia). O Prof. Egas Moniz foi um homem interessado não só pelas ciências,
mas também pelas artes e letras. Nas artes o seu gosto ia para o pintor José
Malhoa sobre o qual escreveu um ensaio. E, nas letras, para o portuense Júlio Dinis, pseudónimo do médico Joaquim
Gomes Coelho (que, como António Nobre,
faleceu precocemente de tuberculose), do qual escreveu a primeira biografia.
5. Abel Salazar
(1899-1946), médico nascido em Guimarães que foi aluno da Escola Médico
Cirúrgica do Porto e, após a República, da Faculdade de Medicina da
Universidade do Porto. A par de Egas Moniz, foi um dos investigadores científicos
mais notáveis da primeira metade do século XX português, tendo realizado
trabalhos notáveis nas áreas da Histologia e Embriologia. Afastado da sua
profissão em primeiro lugar por doença, acabou por ser definitivamente afastado
dela quando regressou por perseguição política por parte do regime do Estado
Novo: tal fez com que se concentrasse a
sua energia críativa, para além de artigos de divulgação científica, na
escultura e na pintura, produzindo obras como as que se podem apreciar hoje na sua Casa-Museu em S. Mamede de Infesta, nos arredores do
Porto. Além de artista, Abel Salazar foi
também um teórico da estética. Para ele o acto criador tanto se podia exercitar
nas ciências como nas artes plásticas.
Todas estas atitudes de proximidade cultural entre as ciências, as artes e as letras podem constituir
para nós fontes de inspiração.
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