Meu artigo saído ontem no Público:
“A diplomocracia, analisada filosoficamente, presta-se ao riso. Mas infelizmente é uma das
características estruturais da sociedade portuguesa” (António José Saraiva, na fotografia).
A incidência de novos
holofotes do escândalo público sobre Miguel Relvas, como que renascido de
cinzas de um passado recente, justifica
a tomada de empréstimo do título de um
artigo da autoria de António José Saraiva, segundo Eduardo Lourenço, "um dos espíritos mais fascinantes da cultura
portuguesa contemporânea” ( “Diário de Notícias”, 31/08/1979).
Nele lê-se: “Criou-se desta maneira uma hierarquização
do País entre “doutores” e não “doutores”, entre os portugueses com voz activa
e os portugueses com voz passiva. E pela tendência natural das sociedades
democráticas, os da segunda categoria passaram a querer pertencer à primeira. Não para ter mais conhecimento ou serem mais esclarecidos, mas não serem menos
que os outros. Não era a igualdade que se buscava, mas a igualdade de estatuto,
através da posse do diploma”
.
E desta forma, determinados
políticos ou simples figurões da sociedade portuguesa que ocupam, ou ocuparam, cargos ministeriais, ou simplesmente se
sentam, ou sentaram, nas bancadas de S. Bento, como se não lhes bastasse serem
ministros ou deputados, vendem a
alma ao diabo para que lhes seja concedida
a graça de antecederem o seu nome com o tratamento de “doutor”
ou ”engenheiro”. Longe vai o
tempo, portanto, de verdadeiros e esforçados autodidactas, como o notabilíssimo
historiador Oliveira Martins (com o curso liceal incompleto), e não, como hoje, daqueles que
não são mais, como escreveu o jornalista brasileiro Mário Quintana, “do que ignorantes por conta própria” mesmo que adornados com diplomas de três ao pataco e constantes descuidadas consultas nocturnas ao google que lhes dê o aspecto de noites insones ao serviço de horas de dedicado estudo e não, como o acontecido, em noitadas
perdidas em discotecas ou bares até altas noites da madrugada.
Par além deste
ridículo, será, isso sim, trágico o simples tratamento por “doutor ou
engenheiro” a uma juventude portuguesa de valor, atestado por universidades de
prestígio, mas presa nas garras impiedosas do desemprego. E que,
por esse verdadeiro drama, é aconselhada a procurar emprego no estrangeiro pelo próprio poder político tutelado
por Pedro Passos Coelho. Este conselho
não deve ser encarado como coisa boa porquanto, em tempos anteriores a 25 de
Abril, a emigração de portugueses era criticada como sendo altamente reprovável.
Aliás, já o próprio Eça, escritor da minha visitação constante, impiedoso
farpeador “da velha tolice humana”, recriminava
este statu quo no século XIX: “Em Portugal a emigração não é, como em toda a parte, a transbordação
de uma população que sobra, mas a fuga de uma população que sofre”. Uma
população culta, instruída e com grandes conhecimentos técnicos e científicos
enquanto por esse país fora pululam “burros
diplomados” (Francisco de Sousa Tavares) em rendosos empregos ou meras sinecuras na
administração pública ou privada.
Aqui chegados, a
pergunta impõe-se: poderá este desgraçado país sobreviver ao descalabro da
deficiente formação da sua juventude por dar aval a um ensino teórico
atamancado, porque colhido em duvidosos estabelecimentos de ensino superior, em
substituição, por exemplo, do know how
das extintas escolas industriais? Pela equivalência, apenas para satisfação de
dados estatísticos estatais, de diplomas
que nada têm a ver uns com os outros, mas havidos como farinha do mesmo saco,
começa a faltar-me a paciência para aceitar estatísticas sobre a elevada
percentagem de actuais diplomados do
ensino superior comparativamente a diplomados de finais da década de 60 e início dos anos 70. Ou seja, antes de 25
de Abril, existiam, apenas, diplomas de ensino superior de raiz; depois de 25
de Abril, diplomas de ensino superior pela transformação, da noite para o dia,
de antigos cursos médios em cursos superiores e aparecimento de novos cursos
privados, a eito e sem jeito, quais tortulhos em terreno húmido.
Só desta forma
demagógica de uma planificação ministerial que tem feito tábua rasa do “soberaníssimo bom senso”, como escreveu
Antero, por vezes por imposição de um determinado sindicalismo defensor de uma
sociedade sem classes, perante a passividade da tutela estatal, se podem
apresentar dados estatísticos que aumentarem descaradamente o número actual de
diplomados pelo ensino superior. Acresce que estes dados, para além das já
encurtadas licenciaturas portuguesas pós-Bolonha (com a duração de antigos
bacharelatos), irão novamente aumentar, com os próximos diplomas com a duração
de apenas dois anos lectivos, fazendo desequilibrar, ainda mais, o prato da balança em desfavor daqueles que
mais se entregaram a um estudo sério e aturado. Razão continua a assistir a
Eça: “A prática da vida tem como única
direcção a conveniência”.
Aiás, um déjà vu que colhe reedição nos
objectivos iniciais do ensino
politécnico, com a denominação de ensino superior curto, mas que hoje concede
diplomas não só de licenciatura como, outrossim, de mestrado e o desejo
acalentado, e nunca abandonado, por
parte dos respectivos docentes e discentes, da atribuição de doutoramentos. E isto já para não falar nas
“Novas Oportunidades” (hoje com novas
roupagens que não conseguem esconder andrajos antigos) e “Provas de Acesso ao
Ensino Superior para maiores de 23 anos”, abrindo as comportas ao dique do mais
descarado e escandaloso oportunismo que permitirá anunciar, sem pejo, números de uma esperada legião de diplomados pelo
ensino superior.
Desgraçadamente, a ser prosseguida este verdadeiro bodo aos pobres, pela via rápida de um facilitismo radical, na obtenção destes ”canudos”, futuramente, depararmo-nos com um português sem um diploma de ensino superior será o mesmo que tentar encontrar agulha em palheiro. Alea jacta est, trata-se, apenas, de uma questão de tempo!
Desgraçadamente, a ser prosseguida este verdadeiro bodo aos pobres, pela via rápida de um facilitismo radical, na obtenção destes ”canudos”, futuramente, depararmo-nos com um português sem um diploma de ensino superior será o mesmo que tentar encontrar agulha em palheiro. Alea jacta est, trata-se, apenas, de uma questão de tempo!
4 comentários:
O ilustre Senhor da foto é o professor António José Saraiva. José António Saraiva é o arquitecto do pasquim Sol, cujo intelecto fica a anos luz do do seu pai.
Caro senhor, tenho apenas um reparo a fazer: o acesso ao ensino superior para maiores de 23 anos é apenas um processo de selecção normativo para os alunos que não ingressam directamente do ensino secundário. O curso, esse tem que ser concluído pelos trâmites normais, como é exigido a qualquer outro aluno. Não creio que seja justo colocar esta situação a par de equivalências, transformações ou Novas Oportunidades.
Penitencio-me perante si, perante os leitores e, principalmente, curvo-me perante a estatura de António José Saraiva merecedor da seguinte homenagem de ´Helena Vaz da Silva:" António José Saraiva era uma personalidade fortíssima e extraordinária que não seria possível inventar: inocente e sábio, irreverente e académico, boémio e profeta". Obrigado pela correcção. Vou emendar no post.
Prezado Senhor: Só hoje vi este comentário. Para alunos autodidactas (não aqueles que alguém definiu " como ignorantes por conta própria") existia o sério e exigente "exame ad hoc", substituído pelo facilitismo de uma prova de acesso ao ensino superior como forma de preencher lugares às moscas em universidades e politécnicos privados e... alguns públicos. Quanto ao curso ter que ser cumprido pelos trâmites, julgo não se estar a referir a conclusões à Relvas e outros quejandos. Vária vezes me tenho interrogado: mais espantoso que a entrada destes candidatos maiores de 23 anos não será o estupor de os ver sair de diploma na mão? Seria, aliás, interessante saber a percentagem relativa a cada uma destas situações.
Agradeço-lhe a sua resposta ao meu post, pondo-me à sua disposição, se assim o entender, em desenvolver esta temática.
Enviar um comentário