sábado, 14 de dezembro de 2013
Egito Gonçalves
O título de alguns livros é, por vezes, suficiente para o leitor os adquirir. Recentemente caiu-me nas mãos "Entre mim e a minha morte há ainda um copo de crepúsculo", livro póstumo de Egito, editado pela Campo das Letras em 2006, e com prefácio do saudoso Manuel António Pina.
Este título é dos mais extensos que conheço e também dos mais venustos. Duvido que, no futuro, saia para as livrarias um livro tão brilhante como este. Egito herdou o humor de Cesariny, de Assis Pacheco, de Alexandre O`Neill, e foi um dos muitos escritores que girou em torno da Árvore. Porque tenho a limousine à porta e um copo de Sol na mão, fico-me com esta relíquia, "Entre um século e outro":
Goethe entrou no automóvel do poeta alemão
que se divertiu a explicar-lhe o funcionamento
da máquina, o número de cavalos do motor,
provocando-lhes as naturais
reacções de espanto. Se eu pudesse imitá-lo,
em vez do poeta de Weimar
escolheria Eça. Este admiraria certamente,
com a ironia do risco rachado,
as maravilhas deste século! Alguém o guiaria
até às Águas Férreas, a visitar Antero
em casa de Oliveira Martins. Ruas estreitas
em macadame onde era fácil aparcar. Diria,
à despedida, com ironia a brunir-lhe o bigode:
"A civilização não se detém! Mas eu
ainda prefiro que os cavalos comam palha
e sejam quadrúpedes. Puxam as tipoias
onde os tornozelos das mulheres se tornam,
quando sobem, ardentes objectos de desejo,
luminosas fontes de inspiração. Que poderia
eu escrever no século das novas bestas?
Fico-me pelo meu tempo. Bem depressa,
os tornozelos serão relíquias anatómicas.
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2 comentários:
Poema no século das bestas
Relíquia de Eça, tornozelos em pega
Pela fímbria da saia que arrasta o chão
Vai formosa e não segura a Eva de Adão
Mas não chega à fonte, à fonte não chega
Partiu-se o paraíso a meio do centro
Partiu-se a vontade e o pote da mão
Parou-lhe o olhar infinito por dentro
Parou-lhe lá dentro o finito coração
Essa fonte de Eça afinal não o era
Miragem o poema na pena do deserto
História irreal, trocada quimera
Ninguém ali passou, ninguém a sentiu
Ninguém a viu, nem de longe, nem de perto
Porque, de verdade, Eva nunca existiu!
Adoro ler António Barreto... e não é que lhe dou toda a razão?
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