terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Prefácio à segunda edição de "Como Respiram os Astronautas"


Transcrevemos o prefácio à 2.ª edição do livro "Como Respiram os Astronautas", de Manuel Paiva, que acaba de sair na colecção "Ciência Aberta" da Gradiva: 

Desde que este livro foi escrito, a nossa nave espacial com o leitor a bordo deu nove voltas ao Sol e os astronautas na Estação Espacial Internacional deram muito mais voltas ao nosso mundo globalizado. Lá em cima, continuam a respirar calmamente e os pulmões não deverão constituir problema para as viagens interplanetárias, o que é uma boa notícia para os astronautas; é menos boa para os investigadores que procuram fundos para realizar experiências sobre o sistema respiratório no espaço, pois há outros órgãos cujo estudo é prioritário para assegurar a saúde dos astronautas durante longos períodos em imponderabilidade.

Nos últimos anos, com a excepção dos astronautas chineses ou taikonautas, a carreira de astronauta perdeu fôlego, visto que as dificuldades económicas estão a atrasar a exploração do espaço, em particular a aventura marciana. Os três vaivéns que sobreviveram às múltiplas idas-e-voltas espaciais estão em museus e o acesso dos astronautas à Estação Espacial Internacional é assegurado unicamente pelos velhos foguetões Soyuz. Ainda levará algum tempo até que os norte-americanos consigam levar de novo homens e mulheres para o espaço com material próprio e é provável que grande parte desse transporte venha a ser assegurado por empresas privadas. Felizmente, muito do que os astronautas poderão fazer já está a ser realizado por naves automáticas, como a Curiosity, que percorre actualmente a superfície marciana analisando sistematicamente o terreno. Um simples clique no sítio da NASA pode levar o leitor a um passeio marciano.

É interessante verificar que muitos esforços foram envidados para estudar o sistema respiratório em imponderabilidade. A primeira justificação foi o receio de que, quando o astronauta entrasse em imponderabilidade, o afluxo de sangue no pulmão produzisse o que então se designava por congestão pulmonar, que poderia ser fatal. Algumas das experiências da trágica missão da Columbia tinham precisamente como objectivo medir a quantidade de líquido no pulmão dos astronautas. Houve grandes expectativas de que viesse a ser possível utilizar os dados do disco duro de um dos computadores que resistiu à desintegração do vaivém. Quando me jubilei anos depois, a empresa Spacehab, que era dona dos aparelhos, ainda não tinha chegado a acordo com a NASA sobre o valor da indemnização pela perda dos instrumentos, e os resultados científicos foram dados, na sua maior parte, como definitivamente perdidos. Infelizmente, a influência dos cientistas na exploração humana do espaço continua a ser muito pequena.

Quando já era claro que o pulmão não devia ser um obstáculo para a vida em imponderabilidade, um astronauta russo teve problemas respiratórios a bordo da Estação Mir, o que foi apresentado como argumento para novas investigações sobre o sistema respiratório. É possível que, se ele não tivesse fumado lá em cima, nenhum sintoma tivesse ocorrido! No entanto, os modelos matemáticos que foram então desenvolvidos para calcular a deposição de partículas nos pulmões dos astronautas servem hoje para avaliar o que se passará quando chegarem a Marte, onde a força da gravidade é três vezes menor que na Terra. Mesmo quando a motivação não é a mais apropriada, uma investigação séria conduz quase sempre a resultados interessantes. Desde que escrevi este livro, já passaram nove anos e, entretanto, uma aplicação recente do Teste de Esvaziamento do Nitrogénio do Pulmão, cuja representação gráfica se mostra na capa, passou a ser usada na avaliação clínica de pacientes com fibrose cística. A maneira standard de realizar este teste foi recentemente aprovada pela American Thoracic Society e pela European Respiratory Society. Quando sugeri que fosse feito no espaço, nunca imaginei que este teste ganharia um dia esta inovadora aplicação clínica.

Fui estudar Física para a Universidade Livre de Bruxelas em 1964 e, à medida que criava raízes na Europa do Norte, fui perdendo a ligação com as minhas origens. Retomei os contactos regulares com Portugal há 17 anos, graças às funções que ocupava na Agência Espacial Europeia. Fui convidado a passar uma semana em Portugal. Tive então muita dificuldade em compreender como é que o país que eu estava a redescobrir podia funcionar com mentalidades que me pareciam semelhantes às que me tinham feito partir. Os meus interlocutores não percebiam o meu pessimismo e irritavam-se com a opinião de um estrangeirado. Curiosamente, sou menos pessimista hoje que a maioria dos portugueses, que passam por um período de grande depressão. Este estado de espírito, que induz passividade, parece mesmo impedir que se apreciem os avanços realizados em certas áreas, como a da ciência. Uma razão parece-me ser o facto de esses progressos terem sido feitos muitas vezes fora das estruturas universitárias tradicionais e por cientistas formados fora de Portugal, por vezes estrangeiros, atraídos por melhores condições de investigação. Contribuem assim para diminuir a endogamia ou consanguinidade das universidades portuguesas. Ao mesmo tempo que a ciência progredia, os indicadores internacionais de avaliação do ensino básico e secundário diziam que Portugal ainda estava no fundo da tabela. Parece-me relevante compreender este aparente paradoxo.

Quais foram então as razões principais do recente progresso da ciência em Portugal? Os fundos aumentaram de uma maneira espectacular e o mesmo responsável pela política de investigação manteve-se no Governo durante um período excepcionalmente  longo. José Mariano Gago modernizou as estruturas da investigação científica com base em padrões internacionais de avaliação externa, isto é, abalou o paroquialismo local. Além disso, o número de investigadores estrangeiros que se instalam em Portugal tem aumentado significativamente, o que favorece a vitalidade do sistema e cria um efeito bola de neve, pois a qualidade atrai a qualidade. Quanto ao aumento da investigação feita no sector privado, surpreende-me que as empresas que mais investem na investigação pertençam a sectores diferentes dos de outros países europeus. Por exemplo, gostaria de compreender quais são os benefícios para a sociedade portuguesa dos investimentos bancários na investigação e desenvolvimento. No que diz respeito ao financiamento dos Laboratórios Associados e das unidades de investigação reconhecidas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, regozijo- -me com a grande transparência. Hoje, qualquer pessoa pode consultar na Internet os dados sobre o financiamento científico e respectivos critérios de seleção. Depois de um período de aceleração da ciência, na qual a participação dos contribuintes portugueses foi decisiva, é agora uma boa altura de os cientistas que trabalham em Portugal procurarem obter mais fundos das agências internacionais de financiamento da ciência, onde a competição é bem mais dura. Há já alguns casos de sucesso cujo mérito está, felizmente, a ser reconhecido.

É para mim um grande reconforto e um motivo de esperança verificar a diferença de mentalidade entre a nova e a velha geração. No entanto, se bem que seja menos pessimista do que a maioria dos portugueses quanto à sua situação na Europa, estou muito menos optimista do que há nove anos quanto à posição da Europa em relação aos Estados Unidos da América e à China. Contrariamente ao que então esperava e escrevi no final deste livro, tenho hoje receio de que a declaração de Lisboa nunca se venha a concretizar, isto é, que a Europa nunca se torne o espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo, baseado no conhecimento.

Voltemos à qualidade do ensino, qualidade essa que considero constituir cada vez mais, a base do progresso. Infelizmente, as soluções que funcionaram para a investigação não se podem transpor directamente para o ensino básico e secundário. O custo do ensino básico e secundário em Portugal antes da crise económica era equivalente à média europeia mas com resultados bastante piores, o que era também o caso da Bélgica francófona. Aumentar os fundos sem modificar as estruturas, de nada serviria. Trariam os mesmos resultados que uma terceira auto-estrada Lisboa-Porto. Enquanto os indicadores de qualidade da investigação científica se generalizavam, alguns responsáveis pelo ensino lutavam contra as avaliações internacionais dos alunos e os rankings das escolas. Parece-me que têm uma grande responsabilidade no facilitismo que está generalizado no ensino. Nunca me convenceram os argumentos contra exames nacionais como sistema de avaliação dos conhecimentos dos alunos a partir do primeiro ciclo do ensino básico. Quanto a professores de mérito semelhante, mas com diplomas de instituições de critérios e exigências desiguais, as notas finais de curso poderão ser muito diferentes. Não estarão pois em igualdade para iniciar as respectivas carreiras. Não seria mais justo que o recrutamento pelo Estado fosse baseado num exame nacional? Um chefe de empresa acolherá de modo idêntico dois candidatos, ambos com nota final de 18 valores, um com um diploma da Universidade do Porto e outro da Universidade Lusófona?

Quando me questionava sobre as causas dos problemas do ensino em Portugal, fiquei admirado ao encontrar uma resposta clara às minhas interrogações no livro de Nuno Crato O «Eduquês» em Discurso Directo (Gradiva, 2006). Nas minhas várias idas a escolas portuguesas durante os últimos anos, uma das coisas que me admirou foi o número de professores que me disseram nunca ter lido esse livro. Talvez a verdade fosse inconveniente e incomodasse. A enorme resistência à mudança por uma grande parte do mundo da educação deixa-me apreensivo. O que me dá alguma esperança, presentemente, é reconhecer e admirar as qualidades  excepcionais do autor d’O «Eduquês» em Discurso Directo e actual ministro. Espero que lhe seja dado o tempo necessário e que continue a ter energia e perseverança na concretização dos seus objetivos, cuja bondade, ouso esperar, acabará por ser reconhecida. Ter aceite começar um mandato num momento de crise revelou uma grande coragem. Estou também convencido de que os jovens portugueses que têm beneficiado do Programa Erasmus irão contribuir para continuar a evolução de mentalidades e alegro-me por ver desabrochar uma nova geração de jovens empreendedores em ruptura com as mentalidades fatalistas do passado. Ao mesmo tempo, desespera-me ouvir altos responsáveis encorajá-los a partir em vez de lhes assegurarem perspectivas de futuro em Portugal. Recentemente, um estrangeiro admirava-se do estado de um país que tinha um tal passado de exploradores. Foi-lhe respondido: «Nós não descendemos dos que partiram, descendemos dos que ficaram!»

Manuel Paiva
Monte dos Estorninhos, 2 de Maio de 2013

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