quinta-feira, 31 de outubro de 2013

PEDRO NUNES, CRIADOR DA NAVEGAÇÃO ASTRONÓMICA

Meu artigo no último "Artes e Letras":
 

O maior sábio português do século XVI foi Pedro Nunes (1502-1578), que viveu no tempo de Copérnico. Tomou conhecimento do livro dele, mas apenas reparou em aspectos menores, não tendo aderido à tese do heliocentrismo. Aliás, na altura, praticamente ninguém aderiu. Copérnico foi, em particular, veementemente criticado por Lutero: como poderia a Terra andar em volta do Sol, se na Bíblia estava escrito que o Sol andava em volta da Terra? Foi preciso esperar por Galileu, no início do século XVII, para que a tese copernicana ganhasse um bem sucedido porta-voz.

Natural de Alcácer do Sal, de uma família judaica, Pedro Nunes estudou Medicina em Salamanca. Tornou-se em 1532 doutor em Medicina na Universidade de Lisboa, onde ensinou Filosofia. Em 1544, sete anos após a transferência da Universidade para Coimbra, o matemático mudou-se para esta cidade, onde foi professor durante quase vinte anos. Desde cedo que o seu interesse foi a Matemática e a Astronomia em vez da Medicina. Pela sua notável obra, pode ser considerado o criador da ciência da navegação astronómica, uma ciência inteiramente baseada na matemática, mas com reconhecida utilidade prática. Nunca pôs os pés num navio, mas tinha de certificar pilotos, na sua qualidade de cosmógrafo-mor do reino, um cargo de nomeação real que o obrigou a frequentes deslocações de Coimbra a Lisboa.

 É notável o rigor matemático colocado por Nunes na sua argumentação. Mostrou-o, por exemplo, no estudo de uma nova curva matemática, cuja motivação era empírica: como seria a rota de um navio, se o seu rumo fosse mantido constante (isto é, se se fixasse o ângulo da trajectória relativamente a um meridiano)? Nunes concluiu, no livro Petri Nonii Salaciensis Opera (1566), que essa curva se aproximava em espiral de um pólo da Terra, só lá chegando ao fim de um percurso infinito. Ficou conhecida por loxodrómica.

 Nunes, que começou por traduzir e comentar antigos livros sobre a esfera celeste (entre outros, um clássico: o Tratado da Esfera de Sacrobosto, do século XIII), estudou a duração dos crepúsculos em De Crepusculis (1542), saído em Lisboa.  Petri Nonii Salaciensis Opera, publicado em Basileia, reúne parte da obra noniana.  Em De arte atque ratione navigandi (1573), em português Sobre a Arte e a Ciência da Navegação, saído em Coimbra, Nunes reeditou textos anteriores, agora melhorados.


Nunes criou vários instrumentos. O mais conhecido foi o nónio, um aperfeiçoamento da escala de um quadrante, para conseguir maior precisão na leitura dos ângulos. Surgiu um desenho dele em De Crepusculi e o conceito foi usado em quadrantes reais, dos quais um foi identificado pelo Comandante Estácio dos Reis em Florença. Provavelmente nunca foi empregue a bordo de navios. Aliás, Nunes teve um diálogo difícil com pilotos: estes achavam que o sábio era demasiado teórico. O astrónomo dinamarquês Tycho Brahe referiu e representou o nónio e o seu discípulo alemão, Johannes Kepler, o descobridor das leis que hoje têm o seu nome, representou-o na portaria do seu livro Tabulae Rudolphinae.

Sabendo-se hoje que Nunes era um cristão-novo, como se explica que ele não tenha sido perseguido em Portugal? Não foram encontrados vestígios da sua família em Alcácer. O próprio pode ser responsável pelo mistério das suas origens por ter criado um espesso muro de silêncio em volta do assunto. É natural que o tenha feito, pois quando nasceu tinham passado escassos seis anos sobre o édito de D. Manuel de expulsão dos judeus e, quando ele tinha quatro anos, aconteceu o pogrom de Lisboa, que causou mais de duas mil mortes. Certo é que viveu de modo cristão, tendo até recebido o hábito de cavaleiro da Ordem Militar de Cristo em 1548, um ano após ter sido designado cosmógrafo-mor do reino. De outro modo não teria sido possível ter chegado a professor da Universidade de Coimbra (foi também o primeiro lente de Matemática), e ter sido conselheiro real e preceptor de príncipes: ensinou o príncipe D. Luís, irmão de D. João III; o futuro Cardeal D. Henrique, inquisidor-mor e Rei (embora por pouco tempo); e terá também ensinado D. Sebastião. Curiosamente, Nunes falece dias depois do desastre de Alcácer Quibir protagonizado por este Rei, embora ainda antes da respectiva notícia ter chegado a Portugal. Não deixou escola. A sua descendência científica demorou até a chegar, uma vez que a cadeira de Matemática em Coimbra só seria ocupada por André de Avelar 30 anos após a jubilação do sábio. Este sucessor de Nunes, acusado de judaísmo, seria condenado a prisão perpétua pela Inquisição. Os tempos da Contra Reforma tinham chegado.

Nota: este e os dois textos anteriores publicados nesta revista são adaptações resumidas de trechos do meu livro “História da Ciência em Portugal”, Lisboa: Arranha Céus, no prelo.

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