sábado, 5 de outubro de 2013

CAMPANHA VERGONHOSA DA SCIENCE CONTRA O ACESSO LIVRE



A revista Science acaba de publicar uma história que conta como um jornalista da Universidade de Harvard conseguiu que um falso artigo científico fosse aceite para publicação por 150 revistas científicas de acesso livre (a história é também recontada no Público). O falso artigo científico descreve um suposto novo fármaco anti-cancro, que pura e simplesmente não existe. Foi enviado para 304 revistas de acesso livre e mais de metade aceitaram-no para publicação.

Isto é uma vergonha, uma campanha escabrosa da Science, que é uma revista de acesso pago, contra as revistas de acesso livre. E não permite, concluir, de todo, que as revistas de acesso livre são menos fiáveis ou rigorosas que as revistas de acesso pago.

O falso artigo científico foi apenas envido para publicações de acesso livre e isso é uma falha metodológica fatal. Então e as publicações de acesso pago? Quantas aceitariam o artigo? Mesmo se aceitarmos, por uma grande boa vontade, que a amostra é representativa das publicações de acesso livre (e não tenho razões nenhumas para pensar que é), e considerarmos como significativa a informação de que mais de 50% aceitaram o artigo, como se compara este número com o das publicações de acesso pago que aceitariam o artigo? Não sabemos.

Se quiséssemos comparar com seriedade o rigor das publicações científicas de acesso livre com as de acesso pago (como é o caso da Science), o falso artigo científico teria que ter sido também enviado para publicações de acesso pago. E teria que haver muito cuidado com o critério para escolher as publicações, de modo a que as amostras fossem comparáveis e representativas. É possível, por exemplo, escolher as piores revistas de acesso livre e as melhores de acesso pago, e concluir que as de acesso pago são muito mais rigorosas. Teria que haver um critério objectivo e explícito para escolher as revistas. 

As revistas de acesso livre permitem que qualquer pessoa possa ter acesso gratuito aos artigos científicos publicados e são financiadas através de um pagamento feito pelos autores dos artigos aceites. Por causa disso, os opositores do acesso livre dizem que os editores das publicações de acesso livre "vendem" o espaço de publicação aos autores, sendo menos exigentes com o rigor e seriedade dos artigos submetidos. Essa ideia, está por demonstrar, e a história da Science não prova nada (por exemplo, a revista PLoS ONE, a mais importante revista de acesso livre, recusou o falso artigo).

A história da Science não é um artigo científico, mas tem muitos número e gráficos como se fosse, uma característica típica da pseudociência. Mas não é ciência, não prova que as publicações de acesso livre são menos rigorosas. É apenas uma campanha para denegrir as publicações de acesso livre, levada a cabo por uma publicação de acesso pago. É triste, mas é mesmo só isso.

Para terminar: muitos artigos científicos estão pura e simplesmente errados, mesmo que não seja intencionalmente como neste caso. Isso não é um problema, porque a ciência não se baseia em não cometer erros, mas sim em detecta-los e corrigi-los. As novas ideias em ciência são tendências que se consolidam ao longo do tempo, com o trabalho de vários grupos de investigação independentes que se escrutinam mutuamente, confirmam ou infirmam resultados. Por isso, atribuir o selo de "validade científica" com base nas conclusões de um único artigo científico é frequentemente absurdo. Não podemos ver apenas um postal ilustrado, temos que olhar para a paisagem toda. No entanto, muitas notícias baseiam-se apenas num artigo científico, publicado numa revista mediática (como a Science ou a Nature) ou noutro publicado em qualquer lado mas que tenha conclusões engraçadas ou sexo, de preferência os dois juntos ("os homens que cuidam dos filhos têm testículos mais pequenos"). Às vezes nem é preciso um artigo científico, bastam as declarações de um especialista, possivelmente até reproduzidas de uma notícia de uma publicação de outro país. Verdadeiro jornalismo de ciência, que não se limite a ser um megafone de figuras de autoridade e grilos falantes da Science e da Nature, precisa-se. Infelizmente, os jornalistas de ciência são uma espécie em vias de extinção.

7 comentários:

António Granado disse...

David: Acho que este post tenta desculpar o que não é desculpável. Parece-me um argumento idêntico ao que foi utilizado pelos críticos do Sokal. O que estas revistas fizeram não é desculpável. Ponto.

jmdamas disse...

David, li a notícia original da Science. Pareceu-me que aquilo não está a ser passado como artigo científico, embora concorde que é uma notícia propagandística. É curioso a Science andar a fazer isto... Talvez seja uma resposta à sua concorrência (ie. Nature) ter também entrado no mercado de "acesso livre" (Scientific Reports, Nature Communications).
Concordo que as revistas de subscrição têm que ser incluídas num estudo "a sério". Aliás, uma das supostas figuras de autoridade, o David Roos, é citado no fim do artigo: «If I had targeted traditional, subscription-based journals, Roos told me, "I strongly suspect you would get the same result."» E é o que eu também acredito. Eu vi este estudo como um ataque ao mercado da publicação científica como um todo (embora concorde que não o seja), que é um criador de muito lixo científico virtual, resultado prático das políticas bibliométricas de avaliação de instituições e pessoas. Esse lixo nunca passará a Ciência apesar de estar "publicado", mas é um desperdício de recursos. No caso prático das revistas de "acesso livre", é dinheiro público (dos projectos) a ser usado para financiar estes negócios e práticas, o que os faz florescer.
Independentemente da propaganda, eu acho este um assunto muito importante e que deve ser alvo de reflexão e, possivelmente, estudos sérios. Deixo convosco esta citação que me escandalizou:
«The editor-in-chief of the European Journal of Chemistry[ que aceitou o artigo], Hakan Arslan, a professor of chemistry at Mersin University in Turkey, does not see this as a failure of peer review but rather a breakdown in trust. When a paper is submitted, he writes in an e-mail, "We believe that your article is original and [all of] your supplied information is correct."»
Abraço
João

David Marçal disse...

António: não acho que seja desculpável as revistas publicarem aquela fraude mal disfarçada. Tal como não seria se fossem também revistas de acesso pago. O incidência selectiva em revistas de acesso livre introduz um viés, que induz erradamente a ideia de que as revistas de acesso livre são menos rigorosas que as de acesso pago. Não sabemos! Acho que o caso do Sokal é diferente, porque o falso artigo do Sokal foi um tijolo numa parede toda ela fraudulenta, o Sokal cita abundantemente os autores mais conceituados de uma área e publica na Social Text, a revista mais importante dessa área (o equivalente aqui seria publicar na PLoS One, o que não aconteceu). O caso do Sokal aponta o dedo a toda uma corrente científica ou pseudo-científica. Este aponta o dedo (e mal) às revistas de acesso livre.

Anónimo disse...

Caro David.
Nao só o artigo nao dá uma bofetada unicamente nas publicaçoes open acess. Aliás, faz um comentario bastante prestigioso sobre o PLosOne e avisa ainda que muitas revistas de gigantes editoriais como a Elsevier, também aceitaram o artigo. O open acess nao está aqui em discussao. Está em discussao o uso abusivo, em nome do open acess, de publicaçoes com pouco ou nenhum peer review e portanto sem rigor.
O open acess vai ser uma realidade, já a RSC está a trabalhar nesse sentido http://www.rsc.org/Publishing/Journals/OpenScience/Open_Access_RSC.asp
há orientaçoes europeias nesse sentido
http://horizon2020projects.com/policy-research/h2020-focuses-on-open-access/
http://esof2012.org/esof-programme/policy-day/
e portanto nao é uma questao de sim ou nao ao open acess, é uma questao de quando.
Aqui o problema é outro... é que em nome do open acess, se anda a vender gato por lebre, e há gente a ganhar dinheiro com isso, o que contradiz totalmente a ideia de acesso aberto e livre do conhecimento. Nao há desculpa para que uma publicaçao nao passe por peer review, e a pressao para publicar, seja em open acess ou fora dele, nao pode justificar isso, nem estas barbaridades de pagar 150 euros e ter um artigo de uma nao investigaçao publicado.
Ana

Anónimo disse...

comentario do cw
http://pipeline.corante.com/
Ana

joão viegas disse...

Muito bem,

O facto de a autoridade cientifica existir, e de ter de se merecer (que é o que esta por detras da critica descrita no post), não implica, como é obvio, que a autoridade se possa comprar ou vender.

Neste caso, a propria natureza do argumento usado (o espaço é "vendido", logo não ha garantia) é suficiciente para deitar por terra o proposito : se assim é, então também não podemos ter nenhuma garantia de que as revistas pagas são melhores (apenas por serem pagas) e a argumentação é contraditoria.

Alias, os casos mais emblematicos de fraude atingiram, tanto quanto sei, publicações pagas.

Estamos pois a misturar os problemas.

Boas.

Anónimo disse...

Quando leio este tipo de 'notícias' penso logo: Cui bono? Talvez não seja mera coincidência que tenha sido um 'jornalista' da Universidade de Harvard a publicar na revista Science uma 'notícia' que faz a apologia dos conteúdos pagos, já que ambas as instituições vêem como ameaça ao seu modelo de negócio o crescimento da quantidade e qualidade de conteúdos livres. Com 'notícias' destas mais vale nem perder tempo a ler o jornal…

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...