sexta-feira, 4 de outubro de 2013

RECURSO À EPÍSTOLA


Por amável deferência do autor, ora se reproduz mais um valioso texto do ensaísta Eugénio Lisboa publicado no “JL”:
À publicação de póstumos de Jorge de Sena, não tem faltado, graças à valiosa vigilância, trabalho e empenho de Mécia de Sena, a contribuição de vários acervos mais ou menos substanciais da sua correspondência (treze, ao todo, se não estou em erro, para não mencionar a publicação avulsa de cartas em jornais ou revistas, com este ou aquele pretexto).
Em 1959, Jorge de Sena ausentou-se, para sempre, de Portugal, passando a viver, primeiro, no Brasil, até 1965, e depois, a partir dessa data, nos Estados Unidos. Ausente do lugar onde se encontrava a maior parte dos seus interlocutores naturais (amigos, colegas escritores, críticos), a epistolografia passou a ser o seu modo natural de comunicação. Numa carta a Jorge de Sena, incluída no acervo de que trata esta crónica – Jorge de Sena/João Gaspar Simões: Correspondência (1943 – 1977), Incluindo Carteio de Mécia de Sena, Organização, Estudo Introdutório e Notas de Filipe Delfim Santos- o crítico presencista observa: «Como não nos vemos há muito, recorro à epístola (...)»
No “exílio”, que se prolongou até à sua morte, Jorge de Sena recorreu abundante e quase freneticamente “à epístola”. Escreveu muito, frequentemente cartas longas e onde, não raro, se repetia,para destinos vários e para dar saída impetuosa às informações, desabafos, pedidos, vitupérios, fúrias que o consumiam. Essas cartas são, em muitos aspectos, uma mina de informação, para estudiosos, sobre o próprio e o seu mundo e sobre o milieu em que passou a viver: as terras, os homens, os hábitos, os vícios, as intrigas, a universidade, a cultura e a incultura...
Pode perguntar-se se a correspondência de Sena representa, para a obra de Sena, o que representam algumas correspondências justamente célebres, que, nalguns casos, até acrescentam algo – ou bastante – à obra dos que a produziram: as de Rousseau, Voltaire, Byron, Chateaubriand, Flaubert, Gide, Martin du Gard, Thomas Mann, George Bernard Shaw, Bertrand Russell, Padre António Vieira, Eça de Queirós... para só citar alguns. Estas são correspondências vitais, sem as quais a obra de criação dos seus autores alguma coisa perderia, não sendo vista, necessária e exactamente, da mesma maneira, em que pese aos oficiantes do “newcriticism”. São, em quase todos – ou todos – os casos citados, verdadeiros exercícios de criação literária, que algo acrescentam a uma obra dita de criação. No caso de Flaubert ou Voltaire – e não só – quase se pode preferir – e há quem tenha preferido – a epistolografia ao resto (sendo o resto tão bom como é). Voltaire deixou para cima de 20 000 cartas. Numa volumosa e apetecida selecção de 906 espécies, Jacqueline Hellegouarc’h considera a correspondência do autor de Candide como «um dos monumentos mais imponentes da nossa literatura», dando-lhe, pois, e com o nosso caloroso acordo, o merecido estatuto de criação literária e, para o caso, ao mais alto nível da espécie. De António Vieira ou de Eça, o mesmo ou quase o mesmo se poderia dizer: a epistolografia não desmerece da obra e até a aumenta.
Poderá dizer-se o mesmo da correspondência de Jorge de Sena, importante como é, para o estudo do homem e da obra? Claro que pode, em grande parte. Há, no vastíssimo acervo epistolográfico de Sena, cartas admiráveis, de densidade informativa, de vigor, de penetração crítica, de generosidade na entrega de si, de reflexão teórica, de observação fina e aturada; e há outras onde não tudo, mas certas passagens são claramente de antologia, a reter, para estudo e divulgação. Mas há, por outro lado, momentos de mau feitio, de ressaca, de ressentimento agressivo, de ajuste de contas, de grande violência, que deixam mau travo na boca e desfeiam, de algum modo, o conjunto, que seria, de outro modo, inigualável. Estes momentos, que, infelizmente, abundam, não anulam o resto, mas, repito, deixam marcas feias na paisagem. Numa certa passagem, diz Voltaire: «Saboreei a vingança», mas, logo a seguir, reconsidera: «A vingança fatiga a alma». E, de facto, fatiga: a quem escreve e a quem lê. É claro que Sena tinha sérias razões de queixa – e quem as não tem? Mas há duas maneiras de reagir às vilanias, às invejas e até às pulhices: com elegância ou com espalhafato. Sena optou, não raro, pelo segundo modo.
Devo desde já dizer que nada disto está presente no magro acervo que é esta correspondência entre o autor de Andanças do Demónio e o autor de Pântano. Tendo cortado relações (ou arrefecido relações), muito cedo, com Simões, e tendo-as reatado já muito na fase final da sua vida, o que nos fica da troca de cartas destas duas importantes figuras da cena literária portuguesa é muito pouco. Mas, deste pouco – que é, contudo, bastante significativo – fez Filipe Delfim Santos um livro, a todos os títulos, exemplar. É um modelo do que um livro de epistolografia deve ser: abundantes e bem investigadas notas de pé de página, textos dos autores, que enquadram a correspondência e melhor iluminam certas passagens dela, testemunhos, um elenco das resenhas de João Gaspar Simões à obra de Jorge de Sena, índice de outras edições das correspondências, indispensáveis cartas de Mécia de Sena a João Gaspar Simões, umas muito interessantes e esclarecedoras Memórias dos Anos 40 em forma epistolar, de Mécia de Sena, um útil Índice Cronológico, um longo, perceptivo, bem fundamentado e inteligente Estudo Introdutório, da autoria de Filipe Delfim Santos, que é, de resto, também o responsável por toda a formatação e execução organizativa e, last but not least, um precioso Índice Onomástico. É um autêntico festim a leitura de um livro assim concebido, tão rico de informação, de interpretação fina e de minucioso cuidado organizativo. Há, é claro, um ou outro ponto, em que podemos discordar de “opiniões” do organizador, o que em nada fere a esbelteza da organização do livro. Um só exemplo: na p.30, Filipe Delfim Santos parece dar cobertura a um “cliché” muito em voga em manuais, histórias da literatura e até em doutos ensaios, quando considera a literatura da presença «uma literatura do eu e da introspecção».

Ora basta um folhear não muito exaustivo dessa mesma literatura, para verificar que ela é isso, mas é,  simultaneamente, muitas mais coisas que não são isso. A literatura de Régio – para tomar nota, apenas, do maior representante do presencismo – em muito transcende as miúdas explorações do eu e os labirintos da introspecção. Por outro lado, também não me parece muito correcto dizer que a presença «fez do culto dos primeiros modernistas a sua bandeira». A presença estudou, divulgou, valorizou ou promoveu, com abertura e generosidade, os valores  (alguns) do primeiro modernismo, mas não os seguiu à letra, pelo contrário, fez uma literatura e um percurso em tudo diferentes e independentes daqueles. Os órficos não queriam saber de psicologia, nem de Freud,  nem de Dostoiewsky, nem do grande romance do século XIX, para coisa nenhuma. Pessoa não intersectava Proust, nem queria saber de Tolstoi nem de Bergson, fosse para que fosse. Não se pode medir os valores do primeiro modernismo com a mesma régua que se usa para medir os do segundo. “Comparar” – no sentido científico do termo – Álvaro de Campos ou Caeiro com o Régio das Encruzilhadas ou do Jogo da Cabra Cega, faz tanto sentido como pretender medir a distância da Terra à Lua com um calorímetro. E, no entanto, isso tem sido feito, obtusamente, para gáudio e aplauso da galeria. E continua a fazer-se, porque o erro tem a carapaça dura.
Quem ler Régio com a atenção e minúcia que ele merece – e que ele usou para comentar terceiros – cedo verificará que o autor de Biografia promoveu Pessoa, apesar das fundamentais diferenças que havia entre ambos e não por causa de alguma fundamental semelhança que entre eles existisse (e é até isso que torna admirável essa promoção e a compreensão que a motivou). Isso vê-se, aliás, desde 1925, por altura da celebrada tese de licenciatura apresentada à Universidade de Coimbra.
É um dos lugares comuns do anti-presencismo em vigor – com o fim de se desvalorizar o real serviço por este prestado ao Orpheu – proclamar que os presencistas, afinal, não tinham compreendido os órficos. A verdade é que tinham, mas a verdade é também que, mesmo admirando-os, o seu projecto de vida e de criação não incluía fazerem o mesmo que os outros tinham feito – no que estavam no seu realíssimo direito. Não se tratou de reacção bonapartista, como sugeriu Lourenço, mas simplesmente de definir o seu próprio território, como fazem os artistas autónomos que se prezam. De resto, Régio nunca escondeu as reservas  que lhe merecia o poeta Pessoa e até o homem Pessoa – e não só ele, entre os do Orpheu. Nada que impedisse de valorizá-lo e promovê-lo, mas muito que o desviasse de segui-lo. E é assim que está bem. Fernando Pessoa também dizia admirar desmedidamente Junqueiro, mas tomou o cuidado meticuloso de não o prolongar... Valéry admirava Poe, mas fez o contrário do que Poe fez (não do que Poe disse que fez). E por aí fora.
Nada disto, repito, serve para desvalorizar o impecável trabalho de editor e intérprete desta correspondência, em boa hora, vinda à luz e que pode ficar como modelo de como um livro destes se deve montar e apresentar.
Eugénio Lisboa

2 comentários:

Angelo Miguel Pessoa Alves disse...

Fernando Pessoa disse que Régio era o melhor poeta da sua geração.
Choderlos Laclos escreveu Relações Perigosas com base em epístolas.
Pessoa admirava muito os poetas românticos britânicos, como sabe. Isto apesar de não ser um romântico.
E, creio, Walter Scott.

Anónimo disse...

Passou um comentário na TV sobre Jorge de Sena – como sobre outros autores -, salvo erro na RTP2, talvez de nome, Grandes Escritores. Já lera alguma coisa do escritor, nada sabia da sua vida. E fiquei com a ideia de um pensador muito ele, que não se verga à multidão e persegue aquilo em que acredita. Pareceu-me também uma figura um tanto esquecida, quando, do que li dele, surpreende pela qualidade. Por esse programa, soube que era um combativo opositor ao antigo regime desde estudante e que, depois de Abril de 74 regressou à pátria para voltar a partir, desiludiu do rumo que Portugal e os literatos de então, tomavam. Não foi abençoado pela democracia nem pela ditadura. Não recebeu nenhum prémio, não lhe interessava ser público. Com tanto não, forçosamente, na sua correspondência particular, a amigos em quem confiava, parece-me natural que se queixe, que desabafe – estava longe e sentia-se talvez injustiçado. E não me parece mau carácter haver com quem se confia, essa catarse.
As cartas de Voltaire são diferentes? Não denotam tanta mágoa, rancor, amargura? Mas a Voltaire não coube a existência de Jorge de Sena. Só se a tivera poderíamos saber - se escrevesse cartas – como responderia à vida.

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