O que marca a diferença entre a ciência e a pseudociência? Chama-se a isto o problema da demarcação. Do que conheço do debate, só com base em princípios filosóficos é possível fazer tal coisa. Não é possível ir a um laboratório e provar cientificamente que algo é pseudociência; tudo o que podemos fazer é mostrar caso a caso que uma e outra afirmação de uma dada área, como a homeopatia, é falsa. Mas isto não prova que a homeopatia é pseudociência, pois também há muitas afirmações científicas que podemos provar cientificamente que são falsas, e na verdade fazemo-lo o tempo todo em ciência.
O meu próprio pensamento sobre o que distingue a ciência da pseudociência é contrário a qualquer tentativa de encontrar diferenças cruciais que não incluam as atitudes das pessoas envolvidas. Claro que há diferenças metodológicas, mas a ideia de que há um método, separado da maneira como as pessoas o usam, que seja próprio da ciência, parece-me uma ingenuidade. Nenhum método há que não possa ser transfigurado pela crendice e tolice humana, e é por isso que a numerologia parece usar os métodos da matemática, a astrologia da astronomia, a alquimia da química, e a homeopatia da medicina. Do meu ponto de vista, não há maneiras puramente metodológicas para fazer a demarcação entre ciência e pseudociência. O que faz a diferença é haver nessa área um conjunto vasto de pessoas que se esforçam conscientemente por serem epistemicamente virtuosas. Dizendo isto de maneira menos pomposa: pessoas que se esforçam genuinamente por distinguir o falso do verdadeiro, e que não estão só a tentar confirmar as ideias que já tinham antes. Este critério é vago, mas põe as pessoas e as suas atitudes no centro do problema da demarcação.
E tem a vantagem de não enfiar a história, a matemática, a arqueologia e a cosmologia no saco da pseudociência. Se dissermos que é ciência o que for empírico, a matemática é pseudociência. Se dissermos que é ciência o que podemos provar no laboratório, a cosmologia é pseudociência, assim como a história. Se dissermos que é ciência o que podemos observar, a cosmologia é pseudociência, porque quando estudamos o que ocorreu três milissegundos depois do Big Bang, estamos a estudar o que nunca poderemos observar. Etc.: para todas as tretas que se lê por aí por parte de cientistas quando querem explicar ao povão o que diferencia a ciência da pseudociência há contra-exemplos óbvios no seio da própria ciência. Geralmente, esses cientistas limitam-se a repetir ideias simplistas que aprenderam no segundo ano da licenciatura, e que nenhuma relação tem com um estudo histórico e filosófico sério do que distingue a ciência da pseudociência: é puro mito escolar.
Qual é a moral desta história? A moral é que devemos ter uma atitude aristotélica e preocuparmo-nos mais com a virtude intelectual do que com supostos métodos simplistas que tudo explicam. Ora, quando o fazemos, descobrimos duas coisas curiosas. Primeiro, que apesar de práticas como a astrologia, o espiritismo ou a numerologia carecerem em si de um número significativo de pessoas intelectualmente virtuosas, algumas dessas pessoas são-no. Nada impede uma pessoa de estudar estas coisas virtuosamente, e se o fizer não é óbvio que descubra em meia-hora que tudo aquilo é pseudociência por carecer de virtude intelectual. Segundo, que a maior parte dos cientistas não tem virtude intelectual: limitam-se a seguir as receitas aprovadas pelo poder instituído, e seguiriam outras receitas se as suas bolsas e financiamentos a isso os obrigasse. A maior parte dos cientistas que segue um determinado procedimento laboratorial, por exemplo, não faz a mínima ideia por que razão se faz as coisas daquela maneira em vez de outra.
A conjunção destas duas ideias contraria uma ideia comum entre os militantes contra a pseudociência: que todas as pessoas que fazem pseudociência são trapaceiras e que todas as pessoas que fazem ciência são certinhas. A natureza humana é demasiado complexa para se reduzir a estes simplismos — feliz ou infelizmente, não sei.
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16 comentários:
Ola,
O mesmo raciocinio levaria a considerar que não é possivel traçar a fronteira entre o que sejam "principios filosoficos" e "principios pseudo-filosoficos", de modo que a frase "só com base em princípios filosóficos é possível fazer tal coisa" entra um bocado em contradição com o resto do post...
Eu diria que o que permite traçar a diferença é o rigor intelectual com que se apresentam hipoteses e resultados. Esse rigor, por hipotese, pode ser constatado por qualquer pessoa dotada de razão e disposta a dar-se ao trabalho de estudar a questão. Contudo, como não ha certezas absolutas em matéria de conhecimento cientifico, e na medida em que pode ser necessario chegar a consenso sobre o rigor de uma ciência (para fins educativos, medicinais, politicos, etc.) o rigor pode também aferir-se pelo reconhecimento das pessoas que se dedicam à ciência, que contrariamente ao que se supõe no post, não esta dividida em compartimentos estanques, mas muito pelo contrario vive de um dialogo constante entre as suas diversas disciplinas (acho que existem até blogues inter-disciplinares...). Isto parece-me valer para ciências ditas "duras" como para ciências ditas "moles". E, pese embora se trate de uma disciplina especulativa que envolve também, senão principalmente, uma refelxão moral (dificilmente redutivel a um conhecimento "objectivo"), isso também me parece aplicar-se à filosofia.
De resto não conheço nenhum ramo da ciência, nem mesmo entre aqueles que aspiram à categoria de ciência "exacta", que dispense a reflexão filosofica sobre o seu objecto e os seus métodos.
Boas
O Desidério tem toda a razão no seu argumento. Há muitas coisas em ciência que são tidas como verdades que são questionáveis (e algumas são mesmo questionadas), e são aceites por muitos cientistas e não-cientistas sem qualquer reserva, como se não existissem dúvidas a esse respeito. Essas coisas não são verdades mas crenças e devem ser tratadas como crenças, e não devem ser impostas aos outros (como verdades indiscutíveis), nomeadamente a quem não partilha essas crenças. A este propósito era bem cada um tentar manter um espírito crítico e procurar saber se quem invoca essas verdades consegue saber se essas verdades o são ou não de facto.
À partida não me parece ser um princípio correcto o de aceitar acriticamente o que é dito. Mesmo que se trate de uma opinião partilhada por muita gente, isto por si só não quer dizer coisa nenhuma (a não ser que afirmação tenha alguma razoabilidade), mas o facto de ter alguma razoabilidade é só isso e não mais do que isso.
Vou apenas dar um exemplo que tem a ver com o "aquecimento global ser devido à actividade humana", que é apresentado como uma evidência (com um enorme consenso na comunidade científica). Nada mais falso, não há qualquer espécie de consenso na comunidade científica.
A este respeito convém dizer que à várias coisas que suportam esta tese, o efeito de estufa (do CO2 libertado pela actividade humana) de facto leva a que se espere que ele contribua para aumentar a temperatura (e isto faz sentido), mas será esse o causador principal do aumento de temperatura observado no último século? Pois, mas ninguém sabe provar isto inequivocamente. Pelo que a resposta a esta pergunta é feita essencialmente de um modo ideológico. Depois a questão climática é demasiado complexa para os cientistas não especialistas na área, e é um facto que quase toda a gente tem uma resposta, mas a resposta de um cientista não especialista tem praticamente a mesma validade que a do cidadão comum e é muito mais uma resposta ideológica do que qualquer outra coisa. Neste caso apenas é reforçada porque os alguns dos argumentos invocados fazem algum sentido, nada mais. Mesmo que fosse um facto que o aquecimento global fosse principalemente devido à acção humana, também se poderia perguntar o que havia de mau nesse facto. Mas também aqui estamos no desconhecido, sendo um facto que a temperatura do planeta já foi mais alta (e não se conhecem efeitos dramáticos desse facto), ninguém sabe garantir que as consequências sejam dramáticas para a humanidade ao contrário do que prevém os mais catastrofistas dos que partilham esta tese. Este exemplo que dou, é hoje uma coisa que é dita às pessoas como um facto incontestável e tem o selo de garantia do estado (este "facto" é ensinado às criancinhas nas escolas e o estado têm polícas em curso para o combater com dinheiro dos nossos impostos), será que isso torna este facto mais real? Será o "aquecimento global antropomórfico" um facto? Será esta dúvida razoável?
Para mim é. Isto não devia ser aceite como um facto.
Caro,
Mas nenhuma ciência que se preze, precisamente porque ela se reclama do rigor, exige de quem quer que seja que aceite verdades como "indiscutiveis".
Embora procure aproximar-se o mais possivel da verdade, a ciência não alcança senão "crenças" (e não "verdades", ainda menos "verdades absolutas"). Apenas reivindica que se trata de crenças racionais.
Quem reivindica "verdades indiscutiveis" são antes as religiões...
Pode acontecer, no entanto, que alguns cientistas adoptem por vezes atitudes a-cientificas. Não ponho isso em causa. Mas nesse caso, eles afatstam-se dos principios da ciência e podem com toda a legitimidade - devem mesmo - ser criticados por isso.
Boas
Caro João Viegas,
Isso não é bem assim, digamos que está a dar um ar relativista ao que se sabe. Embora muitas descrições sejam incomplectas, há um grande número de leis que descrevem bem a realidade, apesar de muitas vezes não se perceber tudo do que justifica esses comportamentos, mas essas leis adequam-se à descrição da realidade (dentro da incerteza com que temos acesso à realidade). A validade da afirmações em ciência não é toda igual como parece sugerir com as suas afirmações. Isso não invalida que existam muitas coisas que são tidas como verdades, que não o são. Mas não podemos escamotear a validade do nosso conhecimento com essa presunção, no limite isso levar-nos-ia a concluir que não sabemos nada (o que não só não é certo, como não se ajusta à realidade).
Caro Vasco Gama,
Não pretendo de maneira nenhuma ser relativista nem menosprezar a validade (racional) das leis que a ciência vai descobrindo, com rigor, quando procura conhecer a realidade. Apenas digo que a ciência é uma forma de racionalizarmos as nossas crenças acerca da realidade.
Quando nos dedicamos a uma ciência, acreditamos, por motivos racionais e discutiveis, que merecem aprovação por qualquer pessoa que procura inteirar-se das coisas usando o raciocinio critico, que determinadas leis descrevem correctamente a realidade. Nunca de forma completa e exaustiva, repare, mas com um grau de aproximação bastante elevado...
Não se trata de verdades absolutas, nem tão pouco de verdades indiscutiveis. Mas também não se trata de crenças arbitrarias, ou caprichosas.
Por exemplo, existem razões objectivas, mensuraveis, e convincentes (à luz do debate racional), de acreditar que as leis de Newton descrevem melhor a realidade fisica do que as explicações anteriores a Newton. E as mesmas razões, levarão a acreditar que as leis de Einstein descrevem a mesma realidade de maneira um pouco mais fina, um pouco mais exacta, permitindo dar conta, e prever, uma quantidade maior de fenomenos observaveis de maneira objectiva.
No entanto, as representações que temos da realidade atravês da ciência não deixam de ser crenças (nem as leis de Newton, nem as leis de Einstein são verdades absolutas). Crenças racionais, a que todos os seres que usam a razão são levados a aderir, mas ainda assim crenças...
Entre muitos outros, penso que Russel explica isso bem. E não consta que ele seja "relativista", ou que ele considere que os conhecimentos cientificos têm tanto valor como as crenças irracionais.
Espero ter sido mais claro.
Boas
Caro João Viegas,
Sim acho que se explicou bem. Em ciência há muitas coisas que são muito bem descritas e pode-se com rigor prever muitas coisas, com base num bom conhecimento das premissas (e apenas nesse sentido se pode usar o termo verdade, porque se consegue provar a sua adequação à realidade). Já noutras coisas não é possível, e aí especula-se, quanto a mim, a racionalidade do homem faz com que a convivência com o desconhecido seja muito difícil, digamos que o decsonhecimento causa transtorno e desorientação ao homem e daí a sua necessidade de ter crenças. Pode ser que tenha um pouco a ver com a nossa percepção do tempo, em que em simultânio conhecemos o passado (do que está a acontecer) e pressentir o futuro (do que está a acontecer).
Pessoalmente acho este assunto das "pseudo-ciências" um pouco tolo e ao mesmo tempo preocupante. Tolo porque a ciência é algo que interessa sobretudo aos cientistas (ou a quem quer que se ocupe da ciência), mas em épocas como as de hoje, tal como já aconteceu noutras alturas, onde ocorreu uma grande evolução ciêntifica e tecnológica, as pessoas passam a ser fortemente impressionadas por esses avanços e surgem toda uma série de coisas disparatadas, hoje em dia, a ciência está hipervalorizada e qualquer coisa que tenha um selo de certificação científica ganha uma disparatada credibilidade, que muitas vezes não tem a ver com coisa nenhuma. Isto já aconteceu no passado, estando tristemente associado também a coisas nefastas, lembro a necessidade de credibilização científica que tiveram os regimes mais infames do século XX, onde por exemplo os nazis pretendiam que a superioridade da raça ariana era algo que a ciência justificava e, de facto existiram cientistas que deram o seu aval a essas ilusões (com o resultado que se viu). Também os marxistas (ou comunistas) pretenderam que a história era científica e se repetia (neste caso a ciência, foi ainda metida à bruta em muito mais áreas que não vêm ao caso), também estes com os tristes resultados que vieram a ser pagos com um grande número de vítimas dessas crenças, supostamente científicas.
A histeria da ciência segue hoje também ela fluorescente e triunfante, levando a aberrações como as que têm sido discutidas neste blog, nomeadamente com a importância do enquadramento legal da homeopatia, como se o importante fosse que essa prática terapeutica, tivesse ou não base científica. Para mim esta discussão (em si) é um pouco idiota, a medicina não é uma ciência, quando muito é uma área do conhecimento, que tenta tirar partido dos resultados científicos. Em medicina pretende-se tão só e apenas tratar das patologias das pessoas, para isso recorre-se ao conhecimento do passado e usam-se os procedimentos que se verificaram conduzir a bons resultados. Para além disso, na medicina moderna, procura-se ter o melhor conhecimento possível das patologias e dos fármacos e dos procedimentos terapêuticos. Não faz qualquer sentido por de lado qualquer prática, procedimento, droga, chá, picadela, massagem, banho, nem nunca fez, nem fará (com o argumento que não é científico ou ...), espero eu a menos que as pessoas fiquem de repente tolas de todo (eu espero que isto nunca venha a acontecer).
Eu diria que qualquer "coisa" que afirme ter por base um corpo de conhecimento, que sustenta determinas afirmações/conclusões se pode submeter a um método de validação, que envolve modelação do que se passa, teste de hipóteses, confirmação. Se disto resulta uma não confirmação e a tal "coisa" mantém que as suas afirmações têm sustentação, não é certamente ciência. Se a isso convencionarmos chamar pseudo-ciência, como me parece razoável, então assim será. Podomos dar-lhe outro nome ou dizer que não sabemos qualificar, mas não vejo grande necessidade de arranjar aqui um novo problema, nem uma nova semântica.
Para mim a medicina é daquelas áreas do conhecimento que se podem dizer pseudo-científicas (e isso não me faz impressão nenhuma). Com certeza que um médico que recomende qualquer terapia deve conhecer a validade dessa terapia (senão seria inconsciente, o que não é saudável esperar de um médico). Digamos que o facto de se dizer que essa terapia é ou deixa de ser científica é irrelevante. Há muitas terapias que são feitas e se conhecem ter uma validade relativa, por exemplo, os médicos reconhecem que só uma percentagem dos tratamentos tem validade, e não deixam de prescrever esses tratamentos por não terem garantias que funcione. Há outros tratamentos que se realizam sem que perceba em toda a extensão as implicações biológicos dos fármacos, e esses fármacos são utilizados porque se mostraram eficazes (apesar desse desconhecimento). Em medicina o primeiro critério é a eficácia dos procedimentos terapêuticos e não a presumível cientificidade dos mesmos (o que é razoável, o contrário seria um absurdo).
Se a homeopatia é um tratamento que funciona através daquelas diluições e defende que cura de igual forma como os medicamentos então tem que ser testada para ver se fala verdade.
Ao usar-se o método cientifico pretende-se alcançar a imagem mais próxima da realidade que nunca chega a ser a própria realidade, a ciência funciona e é espetacular porque os seus postulados são aqueles que melhor nos explicam os fenómenos.
Para se testar a homeopatia passa também por laboratório para verificar a eficácia e validade da homeopatia, se ela se confirmar então é ciência porque resulta se não se confirmar então é fraude e é pseudo ciência porque invoca características cientificas e resultados que não possui.
Claro que a filosofia pode fazer essa demarcação, mas sem os conhecimentos mínimos a filosofia só por si não consegue, o filosofo tem que possuir conhecimento base de química e outras areas para saber como funcionam os medicamentos ditos convencionais e que resultam para os comparar com os homeopaticos, para saber como aplicar as ferramentas os processos que permitem dizer sim isto resulta, não isto não resulta.
Podem tentar dar as voltas que quiserem e os argumentos que quiserem, filósofos, engenheiros, pastores ou outra qualquer profissão sem conhecimentos científicos mínimos não está apta a distinguir coisa alguma, tal como um filósofo que não saiba engenharia não pode projectar uma ponte, um engenheiro que não saiba historia não nos pode dar uma imagem coerente do passado assim como quem não tiver conhecimentos científicos não sabe distinguir astronomia de astrologia, homeopatia de medicina, química de alquimia e etc.. é este o calcanhar de Aquiles que o Desidério não quer assumir nesta já longa série de posts!
O que eu vou aprendendo frequentando blogs como o de rerum natura é que toda a gente (ou quase) sabe o que é a homeopatia, eu serei provavelmente a pessoa que menos sabe de homeopatia (eu não procuro ser ignorante acontece que a homeopatia não faz parte das coisas que me fascinam). Mas com as discussões sobre a homeopatia no blog, lá acabei por conseguir perceber que homeopatia trata de uma pseudo-ciência que pretende curar as maleitas com diluições extremas (talvez absurdas). Espero que a minha visão da homeopatia não seja demasiado redutora, mas se calhar é. Uma coisa é certa nunca vou discutir com ninguém sobre o que a homeopatia é ou deixa de ser.
Se a pseudociência se apresenta sempre como ciência e a ciência nunca se apresenta como pseudociência, apesar de, não raro, o ser, o problema de ser ou não ser ciência é um problema sério, que não se resolve com certificados e, também por esta razão, é deveras preocupante, para qualquer indivíduo, pensar que confia ou não confia e que, quer confie, quer não, não está livre de comer gato a pensar que é lebre, porque ninguém, nem o Estado, ou este menos do que ninguém, lhe garante verdades. Assim, em primeira linha, tudo começa por ser pseudociência e, caso a caso, se configurará, ou não, como ciência. Temos alternativa? Penso que não. E não resolve problema nenhum dizer que quem quiser dar-se ao trabalho de investigar pode verificar e concluir por si próprio, etc. e tal. Não chegaríamos a lado nenhum. Na prática, o cidadão, qualquer que ele seja, cientista (e Einstein que fosse), não tem outro remédio senão confiar em quem lhe parecer que merece confiança. Neste aspecto, está sempre, de uma ou de outra forma, dependente disso, dos outros ou de si próprio, do seu próprio nível de conhecimento das coisas. E não precisamos de ser muito engenhosos na busca de exemplos. Sempre que vamos ao mercado comprar uma bisnaga ou uma pasta de dentes (e com os transgénicos, agora, até uma melancia...) se pensarmos uns segundos, damo-nos conta deste problema que é um grave problema, mais até do ponto de vista político e dos direitos do homem, do que do ponto de vista científico (os problemas científicos não nos afectam, os técnicos sim). A ciência, enquanto tal, nem é boa nem má, assim como a pseudociência. Aliás, acontece o mesmo com as religiões e com as ideologias. E, por isso, persiste o problema da intervenção do Poder nestas áreas. O laicismo do Estado não é um problema de religião strictu senso, antes me parece que é extensivo aos sacerdotes/acólitos/fiéis das(pseudo)ciências.
aro Carlos Soares,
Levanta questões interessantes e eu apenas gostava de comentar uma ou duas coisas, relacionadas com algumas coisa que diz:
"o problema de ser ou não ser ciência é um problema sério"
ou
"Na prática, o cidadão, qualquer que ele seja, cientista (e Einstein que fosse), não tem outro remédio senão confiar em quem lhe parecer que merece confiança"
Não me parece que seja um problema tão sério como pode parecer, se for a ver bem as coisas, muito pouco da sua vida é (ou pode) ser inquietado por uma coisa ser ou não ser científica.
Pensando um bocadinho, acho que todos temos muitas inquietações e de vária ordem em relação à compreensão de muitas coisas e ao valor do que nos é dito sobre elas. A este respeito, julgo que, ao fim e ao cabo, não é muito relevante se uma afirmação é ou não científica (ou pseudo-científica), a este respeito, digamos que cada um tenta credibilizar a sua crença (como pode) e por outro lado descredibilizar as crenças opostas à sua (também como pode). A questão passa por saber tentar perceber a validade de uma afirmação. Acho que há alguns pressupostos para a avaliar, a meu ver há pelo menos dois pressupostos, um, que seja possível a alguém poder fazer essa afirmação e dois, que a pessoa que a afirma tenha capacidade para fazer essa afirmação (também se poderia perguntar o porquê dessa afirmação…). Pessoalmente eu, apesar de ser uma pessoa tendencialmente um pouco ingénua (e talvez por isso mesmo), prefiro ser um pouco céptico, e talvez parta do princípio, que o que é dito (talvez corresponda à realidade, se isso for importante e me inquietar a sério, então procuro informar-me, preferencialmente procurando uma fonte credível).
Digamos que hoje existe essa tentativa de credibilizar as coisas (sendo que coisas são ideias, objectos, ...) pondo-lhe o rótulo de científico (já existiram outras alturas em que se preferia usar outras qualificações como patriótico, democrático, sustentável...) e também para descredibilizar se usam outros rótulos (como o pseudo-científico, que é o que está hoje de moda, mas já foi muitas outras coisas, fascista, burguês, xenófobo, liberal...).
Pode defender-se a medicina contra a homeopatia como se queira. Mas a ciência nada tem a ver com isto. Porque nem uma nem outra são ciência.
O físico António Manuel Batista explica isto muito bem nuns livritos que escreveu acerca de uma polémica que o opôs a Boaventura Sousa Santos.
Caros,
Vejo nos comentarios acima uma imprecisão que, parecendo anodina, é na verdade reveladora de um erro metodologico fundamental, em que o Desidério (entre outros) esta sempre a cair.
A medicina não é "uma ciência" ou "uma area do conhecimento". A medicina é uma arte. Esta arte apoia-se, em grande parte, mas não exclusivamente, em ciências como a biologia, a quimica, etc. Mas não é, ela propria, uma ciência.
A ciência visa alcançar, atravês do uso critico da razão, o melhor conhecimento possivel (mais rigoroso, mais exacto, mais completo) acerca da realidade objectiva.
Uma arte tem um fim diferente : a medicina procura dar saude, a engenharia procura construir pontes e estradas, etc.
Quanto ao resto, concordo que os conhecimentos reivindicados pela ciência são precarios, que podem ser suspeitos (uma vez que é sempre dificil destrinçar até que ponto um cientista se inspirou no seu trabalho unicamente dos principios da ciência, ou se foi também, mesmo inconscientemente, animado por outros propositos) e que, na impossibilidade de verificarmos tudo por nos proprios, somos necessariamente tributarios dos outros e, nomeadamente, daqueles que se dedicam à ciência, etc.
Mas contra isso, so conheço um antidoto : o uso da razão e do sentido critico, que estão na base do conhecimento cientifico e que levam a procurar incansavelmente testar a solidez dos nossos conhecimentos.
Afinal, a comunidade cientifica soube também produzir as reflexões importantes que nos levam, hoje, a pôr limites à sua objectividade, tais como as teorias de T. Kuhn, etc.
Afinal de contas, na base do conhecimento rigoroso, esta também a humildade cientifica, que obriga a identificar cuidadosamente o que podemos razoavelmente afirmar que conhecemos, e o que devemos admitir que ignoramos.
Boas
Convém perceber de que é que se está a falar quando se refere a precariedade da ciência, esta precariedade tem a ver com o facto de a realidade ser muito complexa (em face da nossa capacidade para a compreender na totalidade). Em face disso vão-se desenvolvendo modelos que pretendem descrever essa realidade, o que passa, muitas vezes, por simplificar esses sistemas recorrendo a aproximações que pareçam aceitáveis, e normalmente vão-se obtendo descriçôes e explicações para o comportamento desses sistemas, sendo certo que a adequação à realidade depende dessas aproximações que se fazem. O carácter provisório das teorias tem a ver com o facto de com o tempo se ir conseguindo explicações mais fiáveis. Mas a adequação à realidade é sempre dependente das aproximações que se fazem e da capacidade em determinar as variáveis que influenciam esses sistemas complexos e sendo certo que há muitas coisas que a ciência consegue conhecer com rigor, há muitas outras coisas, onde as aproximações que têm de ser feitas são muito grandes pelo que os resultados obtidos são muito mais incertos, mas quem faz ciência deve ter (e normalmente tem, porque o seu trabalho é monitorizado por colegas, muitas vezes concorrentes) noção da incerteza associada às suas previsões e da fiabilidade dos resultados.
Hoje em dia muitas áreas do conhecimento, adoptaram alguns procedimentos científicos (tratamento de dados, estatisticas, correlações etc...), mas, embora isso melhore o conhecimento (e seja um bem inestimável), não é isso que confere validade às teorias dessas áreas de conhecimento, isso terá sempre de ser validade pelo confronto com a realidade.
Caro Vasco Gama,
Penso que consigo concordar com a totalidade do seu comentario.
Havera um hiatus entre "conhecimento" e "validade" no sentido em que v. emprega estas duas palavras no ultimo paragrafo do seu comentario, que me parece corresponder ao hiatus entre "conhecimento" e "conhecimento objectivo (ou da realidade objectiva)".
Esse hiatus explica algumas falsas aporias, como a objecção em relação à matematica trazida agora à baila pelo Desidério (no seu ultimo post). Com efeito é muito discutivel, e alias muito discutido, saber até que ponto a matematica versa sobre uma realidade objectiva.
Mas estamos agora a entrar em situações limite que não me parecem afectar o essencial.
O rigor de uma ciência (logo, o seu caracter cientifico) afere-se pela sua capacidade para descrever com exactidão e de forma mensuravel a realidade objectiva...
Boas
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