Reflexão a partir do texto "Os bárbaros estão à porta", de Eugénio Lisboa
"Não é evidente que a humanidade sobreviva.
Ela pode sobreviver, mas apenas por vontade.
E a responsabilidade torna-se objecto de uma ética”.
Paul Ricoeur, 1993.
1. Hans Jonas era, tal como Hannah Arendt, judeu alemão; ambos conheceram de perto a insanidade do nazismo e, de modo mais lato, da insanidade que insiste em caracterizar a condição humana. Colegas na universidade de Marburg, tornaram-se amigos próximos, ainda que desavindos certa vez, refugiaram-se nos Estados Unidos da América e, como filósofos, foram fortemente influenciados pelo pensamento de Martin Heidegger, que havia sido seu professor.
2. É que este admirador do Terceiro Reich, na contradição, tão comum quão inexplicável, entre a pessoa e a obra, assinou uma análise da transformação humana em virtude da transformação técnica cuja perspicácia e profundidade era, à altura, e ainda é, impossível de ignorar.
Na dupla transformação, os instrumentos tecnológicos, deixaram "apenas" de “prolongar o braço humano”: em vez de os restringirmos a essa função, conferimos-lhes a possibilidade de integrar o nosso ser, de o superar e, até mesmo, de nos tornarmos um produto seu. Passámos a confiar a humanidade aos instrumentos que criámos.
Face a uma tal transformação, propõe que não viremos as costas ao pensar e à escolha sob pena de nos pormos em perigo e de pormos o mundo em perigo. Usando palavras de Hölderlin – “Lá onde está o perigo, também cresce o que salva” –, não descartou a esperança de podermos superar tão grandes perigos.
3. Volto a Hans Jonas, que, nessa perspectiva do “ser no mundo”, e no quadro de uma "ética transgeracional", delineou o "princípio de responsabilidade". Trata-se de um princípio fundamentalmente humanista, não no sentido antropocêntrico, de preservação egoísta do homem, mas no sentido de perpetuação da própria humanidade e do mundo, "a sua casa", na expressão de Arendt.
Que fique claro que a existência de uma humanidade depois de nós, requer uma natureza depois de nós. Logo, a preservação da natureza faz parte do projeto humanista.
Acontece que os problemas de natureza técnica e tecnológica, que viu agudizarem-se no século XX, indicam inequivocamente que o homem se tornou num perigo não só para si e para os outros (mundo social) mas também para a biosfera, para o seu ethos (mundo natural), pelo que o seu primeiro dever é assegurar o futuro. Para que ele seja possível é preciso valorizá-lo.
4. A partir da declaração de Immanuel Kant (“devemos, logo podemos”) afirmou: podemos agir no mundo porque estamos no mundo e devemos agir nele. Este é a base do “princípio da responsabilidade”, a que deu várias formulações.
Na forma positiva: “age de tal maneira que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a preservação da vida humana genuína”; na forma negativa: “age de tal maneira que os efeitos da tua acção não sejam destruidores da futura possibilidade dessa vida”; ou numa forma mais simples: “não comprometas as condições de uma continuação indefinida da humanidade sobre a terra”; ou, ainda, numa forma mais geral: “nas tuas opções presentes, inclui a futura integridade do homem entre os objectos da tua vontade.”
Sublinho que o imperativo de Jonas reporta-se “à iniciativa pública, mais do que à conduta privada”, distinguindo-se aqui do imperativo categórico de Kant porque este “se dirigia ao indivíduo” (Jonas, 1994, 46). Assim, precisamos de adquirir consciência colectiva de que algumas das nossas acções implicam a deterioração gradual e irreversível da natureza e da vida humana; temos de submeter essas acções a um exame exigente, a partir de critérios transculturais e universais.
5. Lamentavelmente, Hans Jonas ganha mais razão a cada dia que passa. Nesta semana, o Secretário-geral da ONU, que tem sido uma das vozes mais marcantes da consciência colectiva, afirmou que "o colapso climático começou": "o clima está a implodir mais depressa do que conseguimos aguentar, com fenómenos meteorológicos extremos a atingir todos os cantos do planeta".
E, acrescentou: "se somos uma família global, hoje parecemos uma família bastante disfuncional. As divisões estão a crescer, as tensões estão a explodir e a confiança está a diminuir, o que, em conjunto, levanta o espetro da fragmentação e, em última análise, do confronto". O mundo, tal como está, "não pode continuar", a falta de união dos países face aos problemas globais pode levar a uma "catástrofe". "Temos de nos unir e agir em conjunto para o bem comum". "Ainda podemos evitar o pior do caos climático, mas o tempo está a esgotar-se. Não temos um momento a perder".
O pensamento de Hans Jonas faz sobressair as palavras de António Guterres, por isso deixo a sugestão de leitura do seu livro mais marcante nesta matéria e ao lado identificado.
Maria Helena Damião
Referências bibliográficas:
- Heidegger, M. (1954/2002). A questão da técnica. Ensaios e conferências. Editorial Vozes.
- Jonas, H. (1979/1984). The imperative of responsibility: In search of ethics for the technological age. Chicago: University of Chicago Press.
- Jonas, H. (1995). El principio de la responsabilidad. Ensayo de una ética para la civilización tecnológica. Barcelona: Herder.
- Ricoeur, P. (1993). “A ética, o político, a ecologia”. Entrevista a Paul Ricoeur por Edith e Jean Paul Deléage]. Écologie politique, Sciences, Culture, Société, n.º 7.
- Ricoeur, P. (2003). Responsabilité et fragilité. Autres Temps. Cahiers d'éthique sociale et politique. n° 76-77, pp. 127-141. https://www.persee.fr/doc/chris_0753-2776_2003_num_76_1_2415
3 comentários:
Desde que tenho memória, de antes de saber ler e escrever, e de saber expressar o que pensava, o que sentia ou o que desejava (que ainda hoje estou longe de saber como gostaria), mesmo acreditando que tinha um protector, um amigo imaginário perfeito, Deus, que me fazia sentir ouvido, amado e acompanhado, até no deserto, que compreendia mesmo aquilo que eu era incapaz de comunicar, um confidente sempre presente. à medida das minhas necessidades e das minhas expectativas, paciente e benevolente sem limites, que me habita alguma noção de que a humanidade, a vida das pessoas, a minha vida, os valores e os objectivos que organizam e mobilizam os humanos, os sonhos e os ideais das pessoas, que se exprimem e materializam na cultura, ciência e tecnologias, são imorais. Se eu quisesse explicar as causas da minha visão melancólica, mas não pessimista, do mundo, teria de colocar no centro da análise o sentimento de que os humanos são imorais. E, não raro, quando são éticos e, sobretudo, ético-jurídicos, é quando a imoralidade atinge os píncaros. Mas, então, o que é isso da imoralidade, essa doença congénita e incurável, com a qual todos parecem conviver, uns com mais sofrimento do que outros, mas todos, mais ou menos resignada e inconscientemente? A minha questão é esta e, para responder a qualquer questão ética e ético-jurídica, como são as colocadas pelas relações humanas, individuais e sociais, e destes com o ambiente, é crucial, para não dizer indispensável, que se saiba responder a esta questão.
Parabéns Helena Damião! Que grande dívida todos nós temos pelo seu incansável trabalho no De Rerum Natura e, sobretudo, para a educação nacional, em muitos outros lugares. Pena é que os responsáveis sejam tão irresponsáveis.
Dando continuidade ao meu comentário das 12:10h, que deixou questões em aberto, às quais tentarei responder bem, nomeadamente, à questão de que só os humanos são imorais, a probabilidade de algum humano não compreender isto, ou de não estar de acordo, suponho que seja baixa e baseio a minha suposição na experiência social, no senso comum, em correlações empíricas.
Mas esta consensualidade acerca do assunto, se se confirmasse, diria muito sobre a consciência das pessoas quanto ao problema, ou que é um problema que lhes é, de algum modo familiar, ou, pelo menos, que tem significado.
Curioso é que qualquer pessoa, sem precisar de indagações, tenha a intuição de que imoral seja o que é errado, num sentido de contrário ao recto, ao direito, ao que deve ser, ao que não é censurado pela consciência e, não menos curioso, que tenha a intuição, por exemplo, de que os outros seres vivos não são imorais, porque não lhes atribuímos (também por intuição do senso comum) a aptidão, ou capacidade, para fazerem algo contrário àquilo que eles fazem, porque o que eles fazem, na nossa perspectiva intuitiva (e isto é muito curioso) não é certo nem errado. Percebemos claramente, embora por simples intuição, que os outros seres vivos, e menos ainda a matéria inorgânica, não regem os seus comportamentos por nenhuma noção de dever.
Quanto aos humanos, por outro lado, não hesitamos em pensar e partir do princípio de que regem as suas condutas por escolhas e, sobretudo, atribuímos-lhes, ou imputamos-lhes o dever de o fazerem de modos determinados, em muitos domínios que não são apenas do foro privado da moral (sem dano, ou ofensa), mas que estão sob a alçada da ética e do ordenamento ético-jurídico.
A dificuldade de educar e de persuadir os indivíduos a adoptarem condutas como deve-ser, no sentido do que é correcto, bem, bom, justo, desejável, necessário até, como no caso do respeito, defesa e preservação da natureza e do ambiente saudável, está na dificuldade de consciencializá-los das condutas/comportamentos que causam dano/ofensa a tudo quanto é exterior ao indivíduo e sobre o qual nenhum indivíduo, nem organização, nem sociedade, pode legitimamente reivindicar um direito, seja de uso, seja de outra coisa qualquer.
Ora, era aqui que eu queria chegar quando me referi à imoralidade dos humanos. Basicamente, a imoralidade dos humanos, neste meu conceito de imoralidade, consiste numa coisa muito simples: o indivíduo humano não tem direito nenhum relativamente a nada, excepto relativamente aos outros seres humanos e, como não pode prescindir de agredir a natureza para sobreviver, agride-a, mas isso é imoral. E é tanto mais imoral quanto mais ele tiver consciência de que o seu uso é um grosseiro e trágico abuso.
Na realidade, ninguém atribuiu ao ser humano qualquer direito sobre a natureza e não está na natureza dos direitos, nem do direito, que ele se arrogue e se outorgue a si mesmo.
Enviar um comentário