sexta-feira, 31 de março de 2023

O PODER DA EDUCAÇÃO FACE À IMPOSIÇÃO DE TECNOLOGIAS QUE NÃO BENEFICIAM A HUMANIDADE

Em Janeiro de 2015, algumas dezenas de grandes nomes ligados à inteligência artificial (IA) apresentavam ao mundo, depois de um longo trabalho de bastidores, uma carta aberta na qual faziam sobressair a necessidade de se estudarem as consequências sociais desta tecnologia: podendo trazer grandes benefícios à humanidade poderia também trazer malefícios incalculáveis. 


Algures na nossa memória terá ficado a sombra de uma ameaça, talvez mais ameaçadora do que aquela que se colou ao nuclear e que o físico Stephen Hawking, na voz que a tecnologia lhe proporcionou, tão bem enunciou: a IA tem o poder para acabar com a própria humanidade, não por morte física, mas por a destituir de sentido, por permitir que o ser humano desinvista de si mesmo, abandonando-se como coisa sem préstimo.

O contexto de trabalho que conduziu à carta foi o Future of Life Institute, que se dedica a estudar como a tecnologia pode beneficiar a vida em vez de a colocar em risco. Uma das suas funções é informar, de modo objectivo, políticos e sociedade em geral, para que possam tomar decisões conscientes. O mote que fixou é que os seres humanos não podem perder o controlo das tecnologias e que esse controlo deve nortear-se pela ética.

Como bem sabemos, tal princípio pouca capacidade tem para deter uma ideia, que se saiba, de antemão, rentável e/ou com potencial para exercer controlo. Nestes casos, a ética mais não é do que um empecilho, talvez nem isso. E, assim, chegámos à versão mais recente do famoso ChatGPT, que nos alicia a entrar num mundo esplêndido, onde não precisamos de pensar nem de fazer, pois a máquina executa isso por nós. Falo de tarefas exigentes sob o ponto de vista intelectual, aquelas que requerem anos e anos de aprendizagem, com tudo o que isso implica, aquelas que sempre supusemos derivarem da "essência humana", seja ela designada por alma, espírito, mente... Escrever um artigo ou um livro, fazer um poema ou desenhar uma flor.

O mencionado Instituto, na sua linha de missão, publicitou agora uma nova carta aberta onde se pergunta, muito directamente: podendo o ser humano fabricar "mentes" não-humanas, que abrem a possibilidade de o tornar obsoleto e substituí-lo, deve fazê-lo? Como se percebe, a questão não é de ordem técnica, mas de ordem ética. 

A carta foi assinada por quase dois milhares de pessoas com o mesmo perfil das que assinaram a anterior. Nela se pede, sobretudo às empresas de tecnologias que suspendam por um período de seis meses os ensaios que estão a fazer dos mais recentes sistemas de IA. Isto para que o mundo possa pensar nos riscos que acarretam para todos nós, para a humanidade.


Li a carta e diversas notícias sobre a mesma, mas deixo aqui o excelente artigo de Hugo Séneca, saído no jornal Expresso e que a seguir identifico.

O jornalista dá destaque à contribuição de um dos seus signatários, Luíz Moniz Pereira, que trabalha há meio século em IA. Segundo este professor emérito da Universidade Nova de Lisboa é de pôr a hipótese: "quando vemos as consequências já é tarde de mais para fazer algo". Parece-me uma hipótese razoável, mas, como se adivinha, não consensual. O jornalista ouviu investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que consideram a referida suspensão inviável: os mecanismos estão em franca evolução, já chegaram ao comum dos mortais e estes não parecem estar especialmente incomodados com as distopias que já fazem parte do normal.

Julgo, a partir do que tenho observado, que isto é verdade: entre a curiosidade e o deslumbramento parece não existir espaço para a óbvia interrogação que a carta regista. Talvez quando percebermos as consequências nefastas da IA (que as há) seja demasiado tarde para reencontrarmos a nossa humanidade; talvez na corrida sem paragens, a que assistimos mais ou menos impávidos, não demos conta dessas consequências por seremos já algo de diferente do que julgamos ser...

Uma coisa é certa: o futuro está nas nossas mãos, nas mãos de todos e não apenas daqueles que, por dominarem as tecnologias e os lucros que elas proporcionam para uns poucos, se respaldam no argumento de que qualquer tecnologia sempre trouxe benefícios e malefícios. Nada de novo, nada a fazer, os riscos são inevitáveis.

Chegámos a um ponto em que precisamos de exigir que as tecnologias, desde as mais rudimentares às mais sofisticadas, só terão pertinência, só deverão ter lugar no mundo se concorrerem para o bem comum, para uma existência digna. E isso cabe à educação, muito particularmente à educação escolar. 

Aposto muito, aposto quase tudo, na sensibilidade, saber e responsabilidade de directores, professores, educadores para passarem às gerações seguintes o testemunho (possível) do que fomos, do que somos e do que poderemos ser, mantendo-nos simplesmente... humanos. Sim, com tudo o que de bom e de mau, de forte e de fraco a condição humana encerra, mas na esperança, sempre na esperança, de que poderemos torná-la um pouco melhor.

8 comentários:

Bonifácio disse...

Quem manda no mundo, mesmo no sentido de quem pode influenciar as grandes linhas do futuro da Humanidade, é quem tem mais dinheiro. Veja-se o caso de um pobre país como Portugal, sem autonomia para aplicar políticas educativas próprias, sujeito aos ditames de organizações económicas internacionais, que uma meia dúzia de grandes cientistas da educação portugueses traduzem magistralmente, numa linguagem que até os professores do ensino secundário entendem, impondo a toda agente que o alfa e o ómega do processo do ensino/ aprendizagem é castigar, de uma forma contínua, docentes e alunos com métodos de avaliação desumanos, com recurso a uma parafernália de tecnologias, que desprezam o item dos conhecimentos adquiridos e “trabalham” digitalmente milhares de competências, muitas vezes inseridas em grelhas excel, até que as médias escolares excretadas pelas máquinas nos coloquem, pelos menos, ao nível dos resultados europeus. Neste ponto, perguntará o leitor deslumbrado:
-E essa fraude gigantesca vai fazer-nos enriquecer?
-Não.
Respondo eu, acompanhado por mais de 80 mil professores. Refiro-me ao Projeto MAIA que acabou com a autonomia técnica e pedagógica, consagrada no Estatuto da Carreira Docente, de cada um dos professores! Não havendo ensino, não há aprendizagem, não havendo aprendizagem, não há escola, não havendo escola, não há desenvolvimento, económico ou outro!

A invenção do dinheiro tem sido mal aplicada por muitos homens ricos e, no limite, poderá conduzir à extinção da própria Humanidade. A inteligência artificial, na mão dos ricos, vai continuar a desenvolver-se na medida em que gere mais e mais dinheiro.
Lembram-se daquelas lutas entre os países da Reforma Protestantes e os da Contra-Reforma, apoiados pela Santa Igreja Católica e Apostólica Romana?
Quem venceu?
Foi quem tinha mais dinheiro, ou seja, os países cujo desenvolvimento se baseava nas novas ciências e no velho capital (dinheiro), independentemente de qualquer ética.
Inevitavelmente, a escola, de dimensão humana, será destruída pela Inteligência Artificial. Os professores dão muita despesa!

Anónimo disse...

Nunca me apetece falar de educação. É um cancro crónico. Ninguém gosta de lá estar. Não tem solução. É provável que a Escola, um dia, acabe porque não serve ninguém. O ambiente é de um cinismo atroz; os alunos pouco aprendem, os professores pouco sabem; as conversas de intervalo são de uma trivialidade e patetice constrangedoras; não há qualquer supervisão séria do trabalho docente, a não ser alguém anonimus a espreitar emails e a fazer coincidir umas coisas para que a gente saiba que lá andam; a avaliação quer de alunos, quer de professores é ridícula (muito papel que nada diz); todos os docentes querem Excelente e se não o tiverem pedem recursos até à 5.ª geração; os alunos não se respeitam, os professores não se respeitam nem se dão ao respeito; as assistentes operacionais, porque ganham pouco, pouco ou nada querem fazer, sempre com queixas no assento; os pais exigem; os currículos são demasiado extensos e complexos para cabeças tão pequenas; inclusão estropiada com alunos multideficientes e outros a vaguearem pelas salas com os professores de educação especial a perguntar "o que é para fazer? na única vez que lá vão"; os apoios educativos não funcionam porque os docentes das turmas fartam-se de faltar e os professores de apoio estão sempre em constantes substituições; o tempo de trabalho nestas condições é monstruoso (reforma aos 66 anos e 4 meses)... Querem mais?

Anónimo disse...

A culpa não morre só.

Anónimo disse...

Claro que estou a generalizar...

Anónimo disse...

In justa mente.

Anónimo disse...

Quanto à Inteligência Artificial... Pois não sei. A orgânica funciona mal.

Botticelli disse...

"Uma escola onde os alunos mandassem seria uma escola triste. A luz, a moralidade e a arte serão sempre representadas na humanidade por um conjunto de mestres, uma minoria que guarda a tradição do verdadeiro, do bem e do belo."
Ernest Renan
Ora, em Portugal, no século XXI, quem manda nas escolas são os alunos, e respetivos encarregados de educação, assessorados por supervisores, também designados chefes intermédios, com grau académico nunca inferior a Doutor em ciências da educação. São, estes últimos, os novos Doutores, que estão por detrás do Projeto Maia, que obriga os professores a passar quem sabe tudo e quem sabe nada, através do preenchimento, com imensas competências e evidências, de muitas grelhas excel!

Helena Damião disse...

Prezados Leitores, agradeço os vossos comentários. Sendo muitas e diversas as ideias que trazem a lume, foco-me em duas:
1) Como professora, custa-me ver o "professor" como vítima ou, pelo menos, como profissional subjugado a alguém ou a qualquer coisa: encarregados de educação, alunos, maia, grelhas, "cientistas da educação" (que também sou), etc.. As tentativas de subjugação da profissionalidade docente existem realmente, estão em crescendo e são muito evidentes, mas entendo também que, como profissionais, temos obrigação de preservar o sentido de profissionalidade, procurando manter a dignidade que lhe está associada. É difícil? Sim, é. É muitíssimo difícil. Mas, aceitar a subjugação ainda o é mais.
2) A escola pública polariza tantos problemas, tantos interesses, tantas posições, tantas angústias.... algumas tão sem sentido ou solução, que talvez o resultado seja mesmo este: "ninguém gosta de lá estar". Mas, pensemos, por um minuto, o que será do mundo se ela, a escola, deixar de existir? Há um trabalho de reedificação que nos cabe, de que não nos podemos alhear. Quem é professor não pode deixar de sentir essa responsabilidade. E tanto que a sente, que fala dela, apresenta-a, explica-a. É preciso dar mais alguns passos pois a escola pública é de todos e não apenas daqueles que a querem usar para seu proveito.
Cumprimentos, MHDamião

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