Prefácio ao 1.º volume da Obra Selecta de Manuel Sérgio, que vou lançar amanhã em Lisboa:
Manuel Sérgio (n.
1933) é o sábio construtor de uma ponte entre a Filosofia e a Educação Física,
os seus dois domínios de formação, que pareciam estar nos antípodas um do
outro. Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa (1977), doutorou-se no Instituto Superior de Educação Física da antiga Universidade
Técnica de Lisboa, hoje denominado Faculdade de Motricidade Humana (1986), onde
também fez a agregação (1988) e exerceu docência. O feliz cruzamento interdisciplinar
que concretizou entre nós passou precisamente por mudar a designação de «Educação
Física» para «Ciência da Motricidade Humana». O nome primitivo assentava na premissa
cartesiana da separação do corpo e do espírito, ao passo que o novo visava
superar a dita divisão uma vez que a motricidade humana, se tem obviamente uma
parte corporal, tem também uma outra, não menos relevante, que é eminentemente mental:
as duas têm de estar bem articuladas para que o corpo se mova da melhor maneira,
por exemplo na prática de uma modalidade desportiva. Mas Ciência da Motricidade
Humana não se esgota no desporto: para além dele, engloba a dança, o circo, a
ergonomia, a reabilitação, etc. Nada do que é o corpo humano em movimento lhe é
estranho. Apesar da novidade do termo e de alguns dos seus conteúdos, mantém-se
a máxima do poeta romano Juvenal, dos séculos I e II da era cristã: mens sana in corpore sano.
A carreira académica de
Manuel Sérgio está longe de ser a tradicional, pelo menos a avaliar pelos
padrões etários da obtenção dos graus académicos. Antes da Universidade
propriamente dita, Sérgio andou na Universidade da Vida, a mais exigente de todas.
Diz-se que a Universidade prepara para a vida, mas, no caso de Sérgio, foi a
vida que o preparou para a Universidade. A sua experiência laboral permitiu-lhe
ser um caso raro de self-made thinker, afinal a posição que melhor serve
para arrostar modelos culturais arreigados. De origens humildes, entrou muito
jovem para funcionário administrativo do Arsenal do Alfeite, pertencente ao Ministério
da Marinha, e só anos volvidos se tornou professor de uma Escola Comercial e
Industrial e de um colégio nas redondezas de Lisboa. As suas excepcionais qualidades
pedagógicas começaram desde essa altura a ficar patentes. Em 1968, entrou
profissionalmente no domínio do Desporto, ao iniciar funções de direcção do
Centro de Documentação e Informação do Fundo de Fomento do Desporto (pertencente
ao Ministério da Educação), que estava instalado no Instituto Nacional de
Educação Física, em Lisboa. Uma reportagem da RTP, guardada nos seus arquivos,
mas visualizável online, mostra o telegénico Manuel Sérgio, com 37 anos,
a mostrar o referido Centro e a convidar treinadores, atletas e jornalistas a visitá-lo.
Para além, claro, de alunos, pois aquela escola diplomava professores de
Educação Física. Sérgio, imerso naquele repositório de informação cuja leitura
decerto o ocupava, nunca mais largaria o desporto, pensando-se e repensando-o.
Para Sérgio, o desporto tinha – e tem – de ser continuamente pensado.
Tendo entrado no
conhecimento da área do desporto pelo mundo livresco (nunca foi desportista
federado), Sérgio já tinha nessa altura experiência de autor. De facto, começou
a sua produção literária em 1961, com o livro de poemas Chuva e a poesia
haveria de o acompanhar sempre. Foi só em 1974 que publicou os seus
primeiros livros sobre desporto, com a chancela da Direcção-Geral dos Desportos,
organismo do Ministério da Educação: a sua obra pioneira de reflexão sobre o desporto
começou por um título onde a inovação era desde logo manifesta: Para uma Nova
Dimensão do Desporto (1974), que junta uma série de artigos que o autor tinha
publicado em jornais como A República, O Século e Record (só
sobreviveu este título). Um título saído no ano seguinte confirma a sergiana
intenção de ruptura da anquilosada redoma em que estava instalado o desporto
nacional: Para uma Renovação do Desporto Nacional (1975, com prefácio de
Baptista Bastos). E vários títulos seguintes, saídos a bom ritmo, vão na mesma
linha: Desporto e Democracia (1976), O Desporto como Prática Filosófica
(1977) e A Prática e a Educação Física (1978). Em 1979 foi publicada
uma sua notável antologia de textos desportivos da cultura portuguesa: Homo
Ludicus (1979, em dois volumes, coorganizados com Noronha Feio). O primeiro
volume incluía textos que iam de D. João I a Sílvio Lima, o professor da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra saneado em 1935 pelo Estado Novo,
e o segundo desde o poeta Alexandre O’Neill ao jornalista desportivo Vítor
Santos. Fazendo o balanço da produção sergiana no período que se seguiu à
Revolução de 1974, desde Sílvio Lima que não se via entre nós um intelectual não
só tão interessado pelo fenómeno desportivo como também com conclusões tão
argutas sobre ele.
Nos anos de 1980 ficou
ainda mais clara a ideia de Manuel Sérgio de que era previso ver a Educação
Física e o Desporto por outro prisma: a Motricidade Humana ganhou carta de
alforria. Os títulos dos livros da época dão uma boa indicação dos conteúdos,
sendo interessante ver as tutelas que procurava ao escolher os prefaciadores: Heróis
Olímpicos do Nosso Tempo (1980, com prefácio de Urbano Tavares Rodrigues), Filosofia
das Actividades Corporais (1982, com prefácio de José Barata Moura), Ideário
e Diário: um Filósofo Reflecte sobre o Desporto (1984, com prefácio de Vítor
Santos), Para um Desporto do Futuro (1986), Para uma Epistemologia da
Actividade Humana: Prolegómenos a uma Ciência da Motricidade Humana (com
prefácio de Melo Barreiros, 1988), decorrente da sua tese de doutoramento, à
qual foi buscar o título. Em 1989, decerto com o contributo dessa tese, a
Instituto Superior de Educação Física (que era o novo nome desde 1975 do
Instituto Nacional de Educação Física) passou a chamar-se Faculdade de
Motricidade Humana. Manuel Sérgio deu aulas nas instituições com as três
designações, que se foram sucedendo umas às outras. Teve como alunos alguns
treinadores que se tornariam celebridades nacionais e internacionais, como José
Mourinho.
Nos anos de 1990, a boa
safra sergiana prosseguiu com A Pergunta Filosófica e o Desporto (1991),
Alguns Olhares sobre o Corpo (1991), Motricidade Humana. Para um Paradigma
Emergente (1994), Para uma Teoria Crítica do Desporto (1997), O Sentido
e a Acção (1999) e Um
Corte Epistemológico: Da Educação Física à Motricidade Humana (1999). «Corte Epistemológico» não será uma
expressão exagerada, pois a visão do autor diferia radicalmente da antiga. Na
nova escola de Motricidade Humana, não se tratava apenas de educar o «físico»,
mas de juntar saberes antes dispersos num novo ramo das Ciências Sociais e
Humanas. O Desporto não é apenas uma actividade física, é também e
principalmente uma actividade social e humana. Como Sérgio gosta de dizer: «Não
há jogos, há pessoas que jogam».
Não seria
preciso o continuado processo de reiteração das ideias sergianas, por elas entretanto
terem vingado, mas as teses de filosofia do Desporto continuaram a ser reiteradas
pelo autor: Algumas Teses sobre o Desporto (2001, com prefácio de
Francisco Louçã), Para um Novo Paradigma do Saber e… do Ser (2005,
com prefácio meu), Textos Insólitos (2008) e Filosofia do Futebol (2009).
Filosofia do Futebol? Sim, um dia Manuel Sérgio disse ao seu aluno José
Mourinho, futuro special one: «se quer saber alguma coisa de futebol
leia livros sobre Ciências Humanas». Com Sérgio, o futebol passou a ser um legítimo
tema intelectual. O professor da Faculdade de Motricidade Humana disserta sobre
futebol como se este fosse a coisa mais importante do mundo: de facto, para
muita gente é.
Seja-me
permitida uma nota pessoal, pois conheci o autor há cerca de duas décadas. Ele
é uma pessoa extremamente afável, um gentleman, com quem apetece
prolongar a conversa. A sua inteligência transparece desde logo no sentido de
humor que exibe. E a sua amabilidade, bem expressa nas relações que cultiva,
vai a par com a sua inteligência.
Finalmente nos
anos de 2010, quando Sérgio, entretanto aposentado, já era um nome consagradíssimo,
surgiram Crítica da Razão Desportiva (2012), As Lições do Professor
Manuel Sérgio: Motricidade Humana e Futebol (2013), Citius, Altius, Fortius:
Olimpismo & Complexidade (2015, com prefácio de Roberto Carneiro), O
Futebol e Eu (2015, com prefácio de José Mourinho), Futebol: Ciência e Consciência
(2016), Desporto em Palavras (2016), Da Ciência à Transcendência: Epistemologia
da Motricidade Humana (2019) e Uma Reformulação da Ética e Outros Escritos
(2020). Com efeito, «transcendência» é palavra-chave na nova disciplina da
Motricidade Humana: o movimento humano deve tender para a superação, para a
elevação, para a transcendência. Manuel Sérgio dixit: «Não há educação
do físico, mas de pessoas no movimento intencional da transcendência.» De certo
modo, é o regresso ao antigo ideal olímpico, em que os atletas vitoriosos se
aproximavam do estatuto dos deuses.
Não tive a
pretensão de ser exaustivo na enumeração dos títulos. Eles são mais. As últimas
cinco décadas viram surgir um total de mais de quatro dezenas de livros de
Manuel Sérgio, aos quais acrescem quase duas dezenas de prefácios para livros
de outros (Sérgio é uma pessoa generosa!) e inúmeros artigos para revistas e
jornais. Tem sido uma obra monumental, produzida ao mesmo tempo que o autor
dava aulas em várias universidades do país e estrangeiro, em particular no
Brasil, e fazia conferências convidadas, nas quais gostava de colocar uma
pitada de humor («O Descartes não jogava no Benfica» é uma das suas frases mais
engraçadas). Sobrou-lhe ainda tempo para ser, entre 1991 e 1995, deputado pelo
Partido da Solidariedade Nacional, numa experiência política circunstancial que
lhe trouxe notoriedade no grande público.
É, em suma, um
autor com uma obra assaz considerável, que tem sido objecto de discussão por vários
seguidores e que tem levado a merecido reconhecimento por prémios e distinções.
Uma das maiores distinções será a criação da Cátedra Manuel Sérgio sobre
«Desporto, Ética e Transcendência» na Universidade Católica. Mas outra é o nome
da Escola Básica Professor Manuel Sérgio no Restelo, perto do estádio do seu
Belenenses. Se a obra de Sérgio se encontra nas bibliotecas e, embora em pequena
parte, nas livrarias, tornava-se mister uma sua súmula que condensasse o melhor
da sua produção. O presente conjunto de Obras Selectas, cumpre a muito útil
função de extrair o sumo das obras atrás elencadas assim como de alguns artigos
em periódicos não compilados em livros e de o dar a beber a quem tiver sede. Uma
equipa editorial assaz conhecedora, sob a experiente batuta de José Eduardo
Franco, professor de Estudos Globais na Universidade Aberta, reuniu criteriosamente
em quatro volumes o essencial do pensamento sergiano. O primeiro volume,
coordenado por Gustavo Pires, professor na Faculdade de Motricidade Humana, trata
A Ciência da Motricidade Humana. O segundo, coordenado por Gonçalo M.
Tavares, um dos escritores mais originais da contemporaneidade e que, como
professor na Universidade Nova de Lisboa, é um dos discípulos de Sérgio,
intitula-se O Desporto Enquanto Projecto Ético e Político. O terceiro, Filosofia,
Corporeidade, Desporto-Cultura, é da responsabilidade de Miguel Real, bem
conhecido crítico literário, ensaísta e novelista. Por último, o quarto volume,
Poesia Toda, reunindo a totalidade da sua produção poética, é da
responsabilidade de Luísa Paolinelli, professora de Literatura Portuguesa na
Universidade da Madeira.
Faltava um abrégé
que permitisse a todos e quaisquer interessados – e os novos são muito bem-vindos
– orientarem-se no corpo denso e fascinante do pensamento de Manuel Sérgio sobre
o movimento do homem. Agora já não falta!