“A escola única é uma ficção, um igualitarismo funcional que nada tem a
ver com a igualdade real” (Jean-Luc Mélenchon, ex-candidato às eleições
presidenciais francesas de 2012, “L’Éxpress”, 22/03/2001).
Durante mais de um década fui presidente da Mesa da Assembleia Geral do Sindicato Nacional dos Professores Licenciados (SNPL) de que me demiti quando ele se aliou à Fenprof numa frente comum de combate por questões sindicais, marginalizando a criação de uma Ordem dos Professores havida, por este sindicato como uma das razões para a sua criação, mas sempre combatida por esta federação por a ter como desnecessária por se dizer capacitada para o desempenho dessas duas funções!. Que bem se encaixa aqui a sabedoria popular: "Presunção e água benta cada um toma a que quer".
Entretanto, iam sendo destruídos os caboucos de um ensino técnico devidamente valorizado na formação de técnicos que serviam de suporte a um saber académico em substituição de um fazer só de experiência feito como se, por vezes, "a experiência, segundo , Oscar Wilde, não fosse o nome que damos aos erros que cometemos"!
Meses atrás, deparei-me com o post “Cursos técnicos x bobagens académicas (24/04/2012), publicado no blogue brasileiro, Boteco Escolar - Ensaios sobre uso de blogs em educação. Nele foi transcrito integralmente um outro meu , "O Deputado Paulo Rangel, Canudos e Desemprego” (22/04/2012), com a seguinte introdução: “Dias atrás, dois amigos me contaram as bobagens que certos acadêmicos andam fazendo com o ensino técnico no Brasil. A bobagem maior é a de oferecer muita teoria, esvaziando o conteúdo técnico dos cursos. Eu precisaria de mais informações para analisar com cuidado o que está acontecendo. Mas, acho que o texto sobre o assunto, escrito em Portugal, no blog “De Rerum Natura”, oferece um bom quadro daquilo que meus amigos me contaram. A matéria é escrita pelo educador Rui Baptista e achei por bem reproduzi-la aqui”.
Deveras honrado com o interesse que este meu post despertou no
país irmão, publiquei um novo post, aproveitando a boleia
do sugestivo título Cursos Técnicos x Bobagens Académicas, que
muito foi valorizado pelos comentários aí deixados, mormente um deles, da
autoria de um brasileiro, Jarbas Novelino Barato, que vim a saber
mais tarde tratar-se de uma personalidade detentora do
mestrado em tecnologia educacional pela San
Diego State University e doutor em educação pela Unicamp,
professor da Universidade São Judas Tadeu com especialização
em educação profissional numa prática de mais de trinta anos
no Senac São Paulo.
Pelo seu grande interesse, reproduzo esse comentário que muito valorizou o meu post: “Rui, Muito bom ler sua crítica à desfiguração do ensino técnico aí em Portugal. Com pequenas mudanças, para tropicalizar a linguagem, tudo o que você escreve cai como luva para as bobagens que fizeram como ensino técnico no Brasil.Não vou muito longe. Começo com a história da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1971. Essa lei, que profissionalizou todo o ensino secundário no Brasil, sucateou o ensino técnico. Acadêmicos que nunca tinham visto uma oficina em suas vidas começaram a ditar regras para a formação profissional nas escolas. Resultado: um desastre, acompanhado pelo desmonte do ensino técnico que foi construído por gente que entendia de trabalho e gostava do que fazia em oficinas e empresas de aplicação (fazendas, lojas e hotéis escolas, por exemplo).
Conto uma história acontecida logo depois da Lei 5692/71. Com a unificação do ensino, carreiras de dirigentes do ensino geral e profissional foram equiparadas. Graças a tal equiparação, diretores de escolas primárias [formados em pedagogia por onde o trabalho não passa] puderam candidatar-se a cargos de direção das antigas escolas técnicas. Uma senhora, com muito tempo de experiência na educação de crianças, assumiu uma das escolas técnicas, da área de tecnologia agrária, situada numa fazenda. Ao inspecionar as instalações, a nova diretora viu um touro magnífico, bem nutrido de carnes. Ordenou que o animal fosse sacrificado para churrasco de posse. O touro da história era uma matriz importada, produtor de material genético que vinha sendo utilizado em experiências de reprodução em todas as escolas técnicas agrárias do Estado de São Paulo... Atualmente está em curso um projeto de educação integrada no ensino técnico brasileiro. A proposta é liderada por acadêmicos cujo saber sobre formação profissional é, quando muito, livresco. A consequência é uma desvalorização da técnica enquanto saber. Há muito que comentar sobre isso, mas fica para uma outra ocasião.
Se interessar, posso lhe encaminhar duas obras que analisam algumas das dimensões do assunto que é objeto dessa nossa conversa:"Educação Profissional: Saberes do Ócio ou Saberes do Trabalho", e"Saber no Trabalho: Valorização da Inteligência do Trabalhador". Sou autor do primeiro livro. O segundo livro é tradução de obra de Mike Rose, professor da UCLA. Mande-me seu endereço postal para que eu possa encaminhar-lhe as citadas obras. Para tanto, envie mensagem para o meu Email. Grande abraço, Jarbas”.
Como é óbvio, logo agradeci a generosa oferta, tendo-me chegado, pouco tempo depois, esses dois livros. Do livro do Professor Jarbas Novelino Barata, reproduzo integralmente a explicação por si dada sobre o título do seu livro, ao escrever na respectiva introdução (pp. 31 e 32):
“O conhecimento marcado pelos rigores intelectuais daquilo que
chamamos de filosofia e ciência tem as suas origens numa cidade da antiga Ásia
Menor, chamada Mileto. Tales, Anaximandro e Anaxímenes, são os
primeiros pensadores conhecidos a formularem teorias explicativas e
racionais sobre a origem e a evolução da matéria. Inauguraram um
modo de pensar, libertado da religião e de mitos, cujo
desenvolvimento foi ganhando os contornos daquilo que hoje recebe o
nome de ciência. Como observava Gottlieb, segundo Aristóteles a produção
dos filósofos de Mileto aconteceu graças ao tempo de lazer de que eles
desfrutavam numa cidade cujo comércio internacional liberava
alguns dos seus cidadãos para um pensar descomprometido com as coisas
do dia-a-dia. Essa associação entre produção do conhecimento e ócio
(assim como muitas outras observações de Aristóteles) marcou
profundamente a cultura ocidental.. Acostumamo-nos assim a ver o
conhecimento como teoria desvinculada do fazer.
A tradição aristotélica atravessou séculos e criou uma fronteira nítida entre teoria e prática. É preciso considerar, porém, que as actividades humanas, sobretudo aquelas às quais damos o nome de trabalho, começaram a se estruturar muito antes do surgimento do pensamento descomprometido dos filósofos de Mileto. Embora não fossem frutos de ócio, as técnicas de navegação marítima que garantiam a riqueza de Mileto eram conhecimento. Essa dimensão do saber dos homens não mereceu muita atenção de Aristóteles. Mais que isso: foi ignorada pelo pensamento e tradição aristotélica atravessou séculos e criou uma fronteira nítida entre teoria e prática. Por isso, em situações de educação sistemática, valoriza-se hoje o hegemônico que estruturou a educação sistemática no mundo ocidental.
No dia-a-dia dos educadores, a valorização dos saberes do ócio a correspondente desvalorização dos saberes do trabalho
aparecem num discurso que subordina a prática à teoria. Mais do que
isso: aparece em formulações que reduzem a técnica ao "status" de
“mera habilidade”. Neste livro procuro mostrar um caminho que se
contrapõe ao modo tradicional de pensar as relações entre
o conhecimento construído por sábios que podem contar com tempo livre
para elaborar suas teorias e sábios que inventam os fazeres que nos
produzem enquanto seres humanos. Para marcar a tensão entre duas tradições
distintas do saber, que certamente influenciaram e continuam a
influenciar modos de ver percursos de educação profissional, escolhi um
título pouco usual para esta obra. À referência ampla do tema
(Educação profissional) agreguei uma pergunta que apresenta de modo
contundente as ideias propostas neste livro: ‘Saberes do ócio ou
saberes do trabalho?’ Espero que a minha contribuição sirva para mostrar
que o modo hegemônico de privilegiar os saberes do ócio, nos sistemas
e escolas que pretendem formar trabalhadores, empobrecem a
educação profissional. Espero, ao mesmo tempo, que a valorização
dos saberes do trabalho mostre um caminho que não ignora o
conhecimento que nasce das actividades produtivas”.
Eu, por meu lado, espero (no dizer do povo: “A esperança é a última coisa a morrer") que a introdução deste livro, acima transcrita, seja lida e meditada pelos responsáveis governamentais pelo ensino profissional ou simples opinion-makers para que ilumine as esconsas e escuras vielas para que remeteram o ensino técnico em ambos os países irmãos abastardando a sua verdadeira função e poluindo-a, por vezes, com argumentos que nada acrescentam ao assunto baralhando-o mesmo. Para que tal aconteça é necessário que prevaleça o bom senso que tanto tem faltado às reformas que se vão seguindo em catadupa com o beneplácito da Fenprof em defesa de interesse sindicais dos seus manda-chuvas e associados.
E tanto assim é que a Fenprof passou de um tigre de garras afiadas contestatárias a um gatinho felpudo sentado a ronronar ao borralho de um único estatuto da carreira docente não superior. E se, segundo Pessoa, a “memória é a consciência inserida no tempo”, no caso vertente, memória de um má consciência em que se igualaram desiguais ao arrepio do defendido pelo falecido professor catedrático de Direito e reitor da Universidade de Coimbra, Rui Alarcão: "O princípio da igualdade, que está na Constituição, significa que o que é igual deve ser tratado igualmente e o que é desigual deve ser tratado desigualmente"! Isto é, igualar desiguais atenta contra a própria Constituição da República Portuguesa fazendo dela letra morta!
E o que dizer, ainda, de indecorosas situações de facilitismo em que em escolas do ensino oficial, em escassos meses, habilitados com um curso médio obtiveram uma equivalência a licenciatura de bradar aos céus e envergonhar o próprio inferno.
E, por acréscimo, como encarar, finalmente, de escolas privadas que abriram no mercado negro das equivalências pagas a peso de ouro? Ou seja, tudo isto houve tudo isto foi mau fado sendo, portanto, uma questão de honra não pactuar pelo silêncio com a desonra! Pelos vistos, é a única coisa que se pode fazer em tempos de rebaldaria que devia já pertencer ao passado, mas que continua a procriar num presente de indulgência!.
Sem comentários:
Enviar um comentário