Meu texto no jornal I de ontem:
Dorothy (Dora) Wordsworth
(1804-1847), segunda filha do escritor William Wordsworth (1770 –1850), visitou Portugal em
1845 e 1846, tendo publicado em 1847 um diário dessa sua viagem com o título Journal
of a Few Months' Residence in Portugal, and Glimpses of the South of Spain, sem
indicação de autoria. Aliás não era comum na época as mulheres assinarem
livros: lembro que Frankenstein (1818) de Mary Shelley, saiu sem a
assinatura da autora e Jane Eyre (1847), de Charlotte Brontë, foi
publicado sob pseudónimo. O próprio Wordsworth, apesar de ter dado uma educação
esmerada à sua filha (sobre quem escreveu o poema “Address to my infant
daughter”), resistiu o mais que pôde à publicação do diário da filha, instando nesse
sentido o editor Edward Moxon, de Londres.
Por que razão veio Dora
para Portugal? Por sofrer de tuberculose, a doença que levou tanta gente
(incluindo escritores e artistas do século XIX), e por ser recomendada a estada
de tuberculosos em países ensolarados como Portugal. E, além disso, por ter
casado em 1843, aos 39 anos (na época, idade avançada), com Edward Quillinan, um
militar viúvo que tinha nascido no Porto, filho de um comerciante de vinhos
irlandês naquela cidade. Quillinan cultivou a poesia e a sua fluência em português
tornou-o um lusitanista britânico, que traduziu Os Lusíadas, de Luís
de Camões, e a História de Portugal, de Alexandre Herculano. Wordsworth
também resistiu ao casamento da filha com um homem 13 anos mais velho, mais por
não querer perder a sua companhia do que por causa da menor condição social de Quillinan.
Mas tudo acabou por se resolver e Quillinan tornou-se um diligente divulgador
das obras do seu sogro.
William Wordsworth e o seu amigo Samuel Coleridge foram os responsáveis pela
introdução do romantismo na literatura inglesa com a publicação conjunta, em
1798, das Lyrical Ballads. Juntamente com o poeta e escritor Robert
Southey (1774-1843), que viveu em Portugal, tornando-se um grande lusitanista,
são conhecidos pelo nome de “Lake poets” por terem vivido no belo Lake
District, no Norte de Inglaterra. Em
Portugal não há muitas traduções de Wordsworth: O Prelúdio: Poema
autobiográfico, com tradução, prefácio e notas de Maria de Lourdes
Guimarães (Relógio d'Água, 2010) e Poemas Escolhidos, com selecção, tradução,
introdução e notas de Daniel Jonas (Assírio & Alvim, 2018). E de
Coleridge, que foi além de poeta um grande ensaísta, ainda menos.
Maria Filomena Mónica, no
seu penúltimo livro, O Olhar do Outro. Estrangeiros em Portugal: Do século
XVIII ao século XX (Relógio d’Água, 2020), dedica um capítulo a Dora Wordsworth
Quillinan, fazendo notar que o diário de viagem dela ainda não tinha saído em
português. Pois não demorou praticamente nada: Diário de uma Viagem a Portugal
e ao Sul de Espanha acaba de sair entre nós, com a chancela da ASA, numa boa
tradução de Francisco J. Gonçalves (que fornece muitas notas esclarecedoras).
Se no original o livro saiu em dois volumes, eles foram na tradução condensados
num só, embora dividido em duas partes, precedidas por um prefácio. A primeira parte
começa pela partida de Southampton em 7 de Maio de 1845, com chegada ao Porto em
três dias. No Norte Dora visitou Vila do Conde, Viana do Castelo, Guimarães,
Braga, o Gerês, etc. A segunda começa com a sua viagem de barco do Porto, em Março de 1846,
para Lisboa, de onde após curta estada, que incluiu passeios nos arredores,
partiu por via marítima, em 6 de Abril de 1846, para o Sul de Espanha. Aqui Dora
visitou Cádis, Gibraltar, Sevilha, Málaga, Granada, etc., antes de continuar para
Marselha, e daí, seguir por carruagem, atravessando toda a França, até ao canal
da Mancha, de volta a casa. O livro não é ilustrado, mas a autora era hábil no desenho.
Em Portugal, Dora teve
quase sempre a companha do marido, embora ela não o refira explicitamente (talvez
para não denunciar a autoria da obra), uma companhia que decerto facilitou os
contactos com os locais. Ela intercala no seu Diário longas descrições da
pena do marido, tanto literárias (há versos dos Lusíadas em português e inglês)
como históricas, que tornam a obra pouco homogénea (esse foi um dos argumentos
do pai Wordsworth ao obstar à sua publicação). Mas é um documento muito
interessante que nos revela um olhar estrangeiro sobre o nosso país a meio do
século XIX. Ainda hoje se lê com gosto e proveito. A autora procura ser isenta
nas observações que faz sobre os usos e costumes que via. Ao contrário de outros
visitantes que dizem o pior dos portugueses – o mais famoso foi outro escritor
romântico, Lord Byron, que, apesar de ter apreciado sobremaneira as belezas de Sintra,
o “glorioso Éden”, apoucou os portugueses: “Escravos miseráveis, apesar de
nascidos/ Entre as mais nobres cenas! Com tal gente,/ Ó Natureza! por que desperdiçaste
os favores?”) – Dora é gentil com os
naturais da terra que visitou. Começa no prefácio por gabar a segurança que
sentiu em Portugal: “No que me diz respeito, embora faça parte do sexo no qual
a cobardia não é motivo de desonra, não posso dizer que tenha receado desventuras
ou que tenha necessitado de grande esforço de persuasão para sair dos caminhos
conhecidos, num país onde poucas senhoras britânicas alguma vez se atreveram a
viajar”.
Depois confessa o seu
intuito de desagravar Portugal: “O motivo principal que me leva a publicar este
desorganizado diário é, na verdade, o desejo de contribuir para eliminar os preconceitos
que tornam Portugal um país evitado por tantos dos meus compatriotas errantes,
tanto homens como mulheres, que muito poderiam aí encontrar para os comprazer
se pudessem ser persuadidos de que não é merecedor do descrédito de ser somente
terra de bárbaros impetuosos e imundos e do demasiado forte vinho do Porto”.
Mais adiante, desfazendo preconceitos
arreigados, escreve: “Ouvimos muitas vezes falar da mesquinhez dos portugueses
na altura de tratar de acordos de alojamento e outras questões meramente
convencionais, e às quais aplicamos a censura de sordidez, apenas porque
diferem do nosso modo de fazer as coisas. Muitos dos nossos costumes estão abertos
ao mesmo tipo de censura por parte deles, caso decidam fazer das suas próprias
noções a regra arbitrária para avaliar o certo e o errado.”
Critica as inglesas do
Porto, com quem conviveu pouco. Escreve sobre elas: “As senhoras inglesas nem sequer
se dão ao trabalho a ler a língua portuguesa, fazendo de razões elevadas uma confortável
capa para esconderem de si mesmas a verdadeira razão para isso, a indolência – ‘É
uma grande perda de tempo aprender a ler uma língua que não tem mais do que um
livro digno de ser lido, Camoens [sic]’. – Um enorme erro, já agora.”
Em Lisboa, que na sua
opinião não conseguia bater o Porto em beleza, visitou os Jerónimos, a Torre de
Belém, a Praça do Comércio, etc. Encantou-se, tal como Southey e Byron com Sintra,
que estava na moda: “Parti de Cintra [sic] com o coração pleno de gratidão por
me ter sido dado ver um lugar que deverá ser um dos mais encantadores da
Terra.” Foi ver ballet ao Teatro
de São Carlos, onde avistou a rainha D. Maria II, e visitou a Torre do Tombo, no
actual Palácio de S. Bento, onde viu a Bíblia dos Jerónimos, que tinha
sido roubada por Junot e depois comprada por bom preço à viúva.
Por falar na cara-metade
de Junot, o comandante da Primeira Invasão Francesa, cabe lembrar que ela está entre
as mulheres que deixaram relatos sobre o Portugal do século XIX: Laure de
St.-Martin Permon (1784-1838), duquesa de Abrantes (um título francês não
reconhecido em Portugal), personagem mundana a quem chamavam a “Incrível Laura”,
escreveu Recordações de uma Estada
em Portugal, 1805-1806/ Duquesa de Abrantes (Biblioteca Nacional, 2008), um amontoado de frivolidades,
conforme Filomena Mónica bem assinala. Enquanto escrevia, o seu
marido entretinha-se com a bela condessa de Ega, duplamente traidora (ao marido
e à pátria), que casaria depois com um aristocrata russo.
Filomena Mónica refere
outras visitantes oitocentistas no seu excelente livro. Uma é pouco
conhecida: Isabella de França (1797-1880),
uma inglesa casada com um homem de negócios de origem madeirense mas nascido em
Inglaterra, autora de Journal of a Visit to Madeira and Portugal 1853-1854 (Junta
Geral do Funchal, 1970). Mas há duas visitantes célebres: Lady Catherine Jackson (1824-1891), esposa de um diplomata
inglês, autora de A Formosa Lusitânia. Portugal em 1873 (Caleidoscópio,
2007; tradução e notas de Camilo Castelo Branco); e Marie Bonaparte-Wyse (1831–1902; Bonaparte vinha do facto
de ser sobrinha-neta de Napoleão), mais tarde Marie
Rattazi, escritora e anfitriã literária francesa, autora de
Portugal
de Relance (Antígona, 1997), onde relata a sua estada
entre nós em 1876-1879. Camilo, irado, respondeu-lhe em A Senhora Ratazzi (Calçada
das Letras, 2009), usando, na segunda edição, a divertida expressão “Portugal
a Voo de Pássara” já que o original da francesa se
intitulava Le Portugal à Vol d’Oiseau.
O Portugal do século XIX, um tempo em
que o papel da mulher era extremamente apagado, teve, portanto, outros olhares
femininos, para além do da filha de Wordsworth. Vale a pena conhecê-los, para
saber melhor quem fomos e, portanto, quem somos.
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