quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Entrevista a Eduardo Lourenço por José Eduardo Franco - 2.ª e última parte


(continuação da entrevista começada em 
https://dererummundi.blogspot.com/2020/12/entrevista-eduardo-lourenco-por-jose.html)

— Pensar Portugal, a Europa e o Ocidente: Passado, Presente e Futuro —

 “Chegou a época da inversão dos signos. Todos os discursos são possíveis. O caos cultural do Ocidente, neste momento, e inexpugnável. Até já a teoria divulgada de que a América foi descoberta pelos chineses começa a ganhar adeptos.”

 JEF – E como é que é olha a integração de Portugal na União Europeia? 

EL – Portugal não tinha mais nenhuma hipótese, nem Portugal nem os outros países da Europa, da Europa dividida. O movimento globalizante intereuropeu foi tao forte que ninguém podia ficar de fora desse apelo das grandes nações para se reagruparem de forma a terem algum papel na nova configuração do mundo, desenhada depois da Segunda Guerra Mundial. O acontecimento mais importante na ordem política, e em todas as ordens, foi a nossa adesão oficial e a nossa entrada na Europa. 

JEF – Acha que foi o acontecimento mais importante destes últimos 30 anos? 

EL – Determina uma parte da nossa história enquanto país. Nós sempre estivemos na Europa. Mas estivemos na Europa a título em que cada nação está, em luta com as outras, dividida. Desta vez, entramos para um espaço que sempre aspiramos integrar, e depois consideramo-nos um pouco marginalizados pela marcha geral das nações mais evoluídas da Europa. Entramos realmente na Europa com benefícios imediatos; não foi a ideia utópica “vamos para a Europa, vamos para a Europa, e estamos encantados”. Não. Começamos a receber imediatamente benefício, uma ajuda que, de outro modo, seriam necessários anos e anos de trabalho nacional para que pudéssemos fazer o que fizemos em pouco anos, sobretudo no consulado do então primeiro-ministro Cavaco Silva e da presidência de Mário Soares. 

JEF – E qual é o seu projeto para a Europa? O senhor professor é federalista e pela união dos povos e nações? Qual é o seu ideal europeu? 

EL – Nenhuma das hipóteses, em termos práticos. A mais fácil de realizar seria um tipo de estado confederativo, uma grande Suíça na Europa. A hipótese federalista supõe sempre uma coisa federal e esta muito longe de ser o caso. A Europa vai-se fazendo, empiricamente, mas quanto mais voluntarismo se mete nessa cultura, mais ela naufraga. Colocam-se questões, começam a surgir todos os problemas, depois há aqui uma coisa que impede a Europa de se fazer, que é a reticência inglesa. A Inglaterra não quer que esta outra Europa continental realmente encontre a sua unidade. A Inglaterra ficaria sem protagonismo. 

JEF – Neste esforço de pensar Portugal e a Europa, e Portugal inscrito na cultura ocidental, há quem tenha mantido sempre a preocupação de que a Europa não perca o sentido das suas origens, das suas raízes greco-romanas e judaico-cristãs. 

EL – O que e ainda uma temática atual, suscitadora de polemica, mas não tanto quanto deveria suscitar, no que respeita a inscrição, no texto da falida Constituição, da referência a essas raízes da cultura europeia. Não querem impor a democracia, porque a democracia grega tinha escravos, não querem impor o Cristianismo, porque é uma religião, mas não é a única religião, não impõem o Islão, pois está à margem, e a Europa nunca se definiu em termos islâmicos. Em suma, não querem impor nada, e daqui a pouco a Europa não existe. 

JEF – Em seu entender, no quadro do tratado constitucional, seria importante inscrever o reconhecimento das linhas identitárias da Europa? 

EL – Sim, pelo menos para ter um referente cultural, para sabermos minimamente quais as nossas raízes culturais e mentais. Fala-se muito nos valores europeus, mas ninguém sabe defini-los, ninguém está de acordo sobre esses valores. Em última análise, a definição moderna de Europa, a partir da Revolução Francesa, como o continente dos Direitos Humanos, fica clara, na aparência, mas vasta demais. Não se pode apagar a fundamental herança da tradição humanista que vem dos tempos greco-romanos e da raiz judaico-cristã. 

JEF – Considera que uma das razões do malogro da Constituição Europeia foi essa tendência, essa corrente iconoclasta, que se impôs, no sentido de apagar uma memória segundo a qual era importante estar lá presente? Esse apagamento representará uma espécie de atentado à própria identidade europeia? 

EL – Sem uma ideia mínima do que foi a Europa, ou do que quer ser, não sei muito bem que Constituição será a sua. Deve haver o mínimo de inscrição axiológico- política que dei na os contornos dessa entidade histórico-mítica que é a Europa. 

JEF – Não considera que actualmente, nesta urgência de “Repensar a Europa”, há um défice de presença de sábios, de humanistas, e um excesso de tecnocratas frios e um pouco vazios de cultura? Isto não tem levado a esta indefinição europeia? 

EL – Há, sobretudo, uma hegemonia da perspetiva política, no sentido da urgência política, das soluções, como dizem os franceses, a là petite semaine. Não há realmente grandes pensadores europeus neste momento, ou, se há, não são ouvidos. A Europa está repleta de pensadores que meditaram, que têm belos livros sobre este continente e sobre esta união, mas não são eles que estão à frente da tecnocracia político-económica que domina a Europa em construção. A Europa precisava de uma paixão, e essa paixão não existe. 

JEF – Portanto, urge que se volte a recuperar a paixão pela Europa para que ela possa ter futuro e possa ter uma presença significa cativa e regeneradora no mundo... 

EL – O paradoxo é que a Europa não se faz, mas esse obstáculo interno que a Europa cria a si própria tem feito com que o nacionalismo, não sob a fórmula do século XIX, se tenha reavivado. O que está vivo neste momento e o desejo e a vontade de cada uma das componentes da Europa se afirmar na sua plenitude identitária. Há deficit de um pensamento europeu que seja globalizante, porque cada uma das nações parece querer representar por sua conta essa “inalcançável” Europa... 

JEF – É uma espécie de exorbitação, fora de época, de um nacionalismo que já passou.

 EL – Não se pode ignorar o facto de o lugar da Europa no mundo ter mudado. Antes, era a Europa que situava o mundo e agora e o mundo que situa a Europa. A nação imperial por excelência de um novo tipo é a América. A Europa, agora, tem os mesmos problemas que tinha no passado cada uma das suas nações que tendia a hegemonia. A Franca, que durante tantos anos foi uma espécie de referencia paradigmática para uma parte da Europa, e hoje uma quissanje de debuxei-me odre, não de primeira grandeza. 

JEF – Mas essas velhas nações imperiais parecem continuar a aspirar, têm saudades do tempo em que o foram... 

EL – Claro. Mas nenhuma nação e de primeira grandeza, provavelmente, nem os Estados Unidos o são agora. Só que cada nação quer, de algum modo, reivindicar essa grandeza perdida. 

JEF – Voltemos agora a outra questão, que é a questão do tempo da sabedoria, da idade da sabedoria, da velhice. Podemos dizer que o professor Eduardo Lourenço é um ancião, tem tornado a sua velhice fecunda, e, na sua idade, é realmente um exemplo de homem que continua a trabalhar, que continua a pensar. Como encara a velhice?

 EL – O problema é curioso. Tenho-me ocupado muito desta questão, a questão do tempo, mas sempre vivi como se o tempo não contasse, numa inconsciência absoluta. 

JEF – Considera que é inconsciente? 

EL – Absolutamente.

JEF – Mas no meio dessa inconsciência tem produzido muita consciência

EL – A inconsciência é a definição última da infância, sempre pressupondo que o tempo não existe. Sei que existe, que é mesmo a única coisa que existe, mas comporto-me como se o tempo realmente não existisse, porque e uma mascara como outra qualquer, a qual realmente não se pode fugir – ninguém foge. Nós estamos inscritos no tempo, nós ardemos no tempo, expressamos no tempo, nos consumimo-nos no tempo; mas nos não podemos objetivar essa coisa, porque isso somos nos mesmos. Nós somos como uma chama que arde e não podemos pôr a mão na própria chama. Portanto, partimos para outros lugares, para outro sítio. 

JEF – Mas deixe-me dizer isto, que é interessantíssimo: o senhor professor tem dito, em várias entrevistas, que tem vivido a sua vida de forma quase inconsciente, mas, entre os homens aqui em Portugal, os sábios, os pensadores, tem produzido fundamentalmente consciência sobre a nossa cultura. Como é que vê esta contradição?

 EL – Essa pode ser a leitura dos outros. Digo que sou inconsciente, mas trata- -se de uma inconsciência de que sou consciente. Mas isso pelo olhar dos outros e outra coisa, não e da minha responsabilidade. Isso é o olhar dos outros. Nos somos também o olhar dos outros, provavelmente, nos somos, nos começamos por ser o olhar dos outros. Nós nascemos no olhar. O primeiro olhar, quando se nasce, e o olhar materno, naturalmente, ou paterno, ou os dois juntos. Nós nascemos no olhar dos outros; quando chegamos ao nosso próprio olhar, já passou muito tempo, já passou o tempo mais importante. Quando nos acordamos para nos próprios, já tínhamos sido vistos, já estamos inscritos no olhar daqueles que nos cercam.

 JEF – Interessantíssimo. O olhar dos outros dei nê o nosso passado, sem dúvida. Ainda um tema que não coloquei à sua consideração: falando do tempo, do futuro de Portugal, agora está muito em voga a questão dos grandes portugueses, e sendo o senhor um grande português..

EL – Mas sou pequenino, sou minúsculo! 

JEF – Entre tantos portugueses, tantos pensadores, se tivesse de escolher figuras marcantes da cultura portuguesa, grandes portugueses que o marcaram, quem é que elegeria? 

EL – Acho que se tivesse de escolher um português, escolheria Alexandre Herculano. 

JEF – Alexandre Herculano? Porquê? 

EL – Porque Alexandre Herculano é o primeiro português de um Portugal novo, do primeiro Portugal que não efectua uma ruptura com o Portugal de sempre, com o Portugal antigo, de que ele vai ser o historiador, que ele e que vai criar; em última análise, criou o Portugal antigo, o discurso do Portugal antigo. E ao mesmo tempo é um homem que tem uma concepção daquilo que é o horizonte de inscrição nossa, quer dizer, o nosso cristianismo, já com uma componente inconciliável entre a exigência moderna de liberdade e a exigência, mais antiga, de uma ortodoxia, com menos lugar para essa exigência. 

JEF – É o homem de charneira, que faz a síntese entre o passado e o presente. 

EL – É um homem de charneira, e o que ele inaugurou não acabou ainda.

 JEF – Como é que dei me, em duas linhas, Portugal? Aliás, a sua obra, quase toda, gira em torno da tentativa de dei mir Portugal. 

EL – Portugal, como a Torre Triangular dos Barbelas, é um objecto sem termo de comparação. É algo de tão insólito que só se pode comparar a Torre da Barbela do meu amigo Ruben A. É isto: é um produto da História, é um produto de certo tipo de sociedade, embora tenha uma identidade tão densa, tão profunda, é uma espécie de uma ilha, como se vivesse como uma ilha. E os portugueses são ao mesmo tempo geograficamente isolados, são margens, sobretudo em relação a Europa. Mas, na verdade, os portugueses estão na margem e consideram ao mesmo tempo que estão no centro do mundo. Somos uma espécie de Robinson Crusoe. 

JEF – Só uma pergunta indiscreta: sente orgulho em ser português? 

EL – Sinto orgulho em ser português quando um olhar, por exemplo, um olhar do estrangeiro, um olhar diferente, põe em causa aquilo que nos somos, a nossa História, os nossos valores, a nossa cultura. Mas não um orgulho especial. Teria provavelmente o mesmo orgulho se fosse chinês. O chinês deve ter um orgulho de tal ordem que, para ele, outro país realmente não existe. Não faco ideia do que seja o orgulho chines, no presente, e no futuro também não se sabe. Tenho uma expressão muito ambígua de orgulho. Mas, se tivesse de escolher outra vez um lugar de nascimento, não escolheria outro.

 JEF – Outra pergunta importante que tenho de lhe fazer, agradecendo a sua paciência: editou um livro, famoso e muito interessante, intitulado As saias de Elvira, onde refle este sobre um tema interessante, que está a tornar-se fraturante na sociedade portuguesa, que é a questão do casamento. É uma das questões mais interessantes, retomando um artigo dos anos 60, de O Tempo e o Modo. Neste sentido, como é que olha o casamento? 

EL – O que penso do casamento está escrito nesse artigo. Na sociedade que é nossa, que nós herdamos, o casamento é a solução ao mesmo tempo humana e social mais coerente que se encontrou para perpetuar uma espécie, em termos que não são da simples natureza. E isso significa que o casamento é um artificio, é um artificio como toda a sociedade realmente é um artificio. E, nesse capítulo, é um desafia a todos os que embarcam realmente nessa aventura, porque a natureza está sempre contrariando. O casamento foi, sobretudo, digamos, uma instituição sobrenaturalizada pela sua inscrição na esfera religiosa, como uma obrigação de fidelidade, que é uma fidelidade de que a natureza não dá exemplos, ou raros. 

JEF – E foi de certo modo a insustentabilidade da possibilidade do casamento como instituição perene que deu origem à necessidade de ser transcendentalizada, para ser depois perpetuada.

 EL – Penso que o tipo de casamento que triunfou na sociedade ocidental, depois do Cristianismo, é um dos responsáveis pelo dinamismo e pelo dramatismo desta civilização ocidental; quer dizer, é uma solução que obriga a uma invenção permanente de si própria, justamente na medida em que ele não está inscrito na natureza: e um desafio o que se faz a si próprio. Por conseguinte, o casamento é sobretudo a realização desse diálogo, é a coisa mais dramática e mais sublime, quando ela de facto se proporciona. 

JEF – Abordemos agora a análise que faz, na sequência da reflexão que outros pensadores a nível mundial têm feito, sobre a identidade da cultura ocidental, a queda ou o crepúsculo dessa cultura hegemónica do Ocidente. O senhor professor tem um livro de título muito sugestivo, A morte de Colombo, e que também é um jogo de espelhos que analisa a relação da Europa com a América, nomeadamente a América Latina, e a evolução que essa mesma Ibero-América está a ter num movimento interior de uma certa negação do pai, de complexo de Édipo, de não reconhecimento ou de rejeição do legado identitário da cultura colonial europeia. Podemos falar um pouco dessa sua reflexão em curso? 

EL – Com prazer. O Ocidente esteve sempre em crise. A história do Ocidente e uma história de crise. A própria palavra Ocidente significa ca qualquer coisa que cai, como Hegel a glosou. A civilização segue o trajeto do Sol, desde o Oriente, palavra tao reveladora que a Maçonaria recuperou, que e donde vem a Verdade; donde vem o Sol, vem a Verdade. A Europa teria sido um ponto de transição onde o Sol se manteve durante muito tempo, e depois esse Sol também conheceu o seu ocaso. E uma metáfora de tipo cosmológico. A ideia de crepúsculo do Ocidente surge no famoso título do Oswald Spengler, um livro de 1923, sobre A queda do Ocidente. A “queda do Ocidente” e um discurso próprio de um europeu. É um alemão que, diante da catástrofe da guerra civil, da catástrofe que foi a Primeira Guerra Mundial, pensava que a Europa caminhava fatalmente para a sua extinção, num processo semelhante ao da queda do Império Romano, mas desta vez com uma queda mais rápida. Este é um diagnóstico de europeu. Esta refle exão, que aparece nas entrelinhas pelo menos, desse livrinho chamado A morte de Colombo, versa sobre uma morte diferente. O morrer do Ocidente é ser subalternizado, é perder o lugar cimeiro que foi o dele. Por exemplo, Fernando Pessoa considerava ainda que a Europa era o mundo inteiro. Todo o mundo é Europa para Fernando Pessoa. A Europa fora para todo o sítio e estava em todo o sítio. As marcas de modernidade em toda a parte tem selo europeu, e isto começou connosco, com a chegada de Francisco Xavier ao Japão. Em escassos 70 anos tudo mudou. Porem, esta morte de Colombo e a rejeição do nosso discurso sobre a História como actores, por excelência, dela, fundamentalmente, como criadores do mundo moderno, como inventores do mundo moderno no sentido próprio da palavra, como descobridores do Novo Mundo. Ora, essa descoberta do novo mundo é-nos negada pelos descobertos. Agora são os descobertos que dizem “vocês nunca nos descobriram”: isso é uma má leitura.

 JEF – Polémica essa suscitada pelas comemorações dos Descobrimentos... 

EL – As comemorações da nossa gesta imperial, ou eurocêntrica, de descobridores do mundo terminaram; para nós e para franceses, ingleses, holandeses, embora sejam menos comemorativos do que nós. No nosso caso, por detrás esta a gesta crista da evangelização. Agora dizem-nos: não só rejeitamos essa vossa pretensão de que precisamos de ser descobertos e evangelizados, mas também nos dizem que devemos enrolar as nossas bandeiras, lembrar a história em casa, mas sem a impor extramuros. Quando se celebrou, em 1892, o centenário da descoberta da América, a Espanha fez uma festa grandiosa, festa espanhola e, indiretamente, festa europeia. A Espanha estava a seis anos do fim desastroso do seu império em Cuba, as mãos da jovem América. Em 1898, a Espanha já tinha feito esse processo, que nós fizemos quase 100 anos depois. Nós tínhamos começado primeiro e acabamos depois. As comemorações colombinas foram memoráveis. Nessa altura ainda havia a força para exportar os ícones europeus para Cuba, para a América Latina. O século passado foi o século da descolonização das áfricas e da Ásia, por um lado, e, por outro, da afirmação do que já estava descolonizado. Assistiu-se a uma recuperação do próprio passado e a reivindicação de um discurso em relação a esse passado, um passado imposto, um passado imaginário, ou virtual, de uma dominação que já ninguém suportava. Não foi possível comemorar Cristóvão Colombo. Os Estados Unidos da América celebraram Colombo, que nem os descobriu, por terem há muito vencido a barreira do ressentimento e estarem sentados no antigo trono da Europa. Quanto as comemorações da descoberta do Brasil – até nós nos vimos na contingência de ter de ir lá impingir a caravela das Descobertas. A caravela naufragou com grande gáudio dos brasileiros, que acharam uma enorme graça aquilo. E tinha. Não fizeram de propósito, mas calhou assim. Não se comemorou coisa nenhuma. De qualquer modo, fomos lá, foi lá o presidente, todos a fazer de Potemkin. O discurso brasileiro autêntico, o discurso dos seus poetas, dos seus historiadores, não é um discurso comemoracionista; é um discurso de uma nova universalidade que evacua essa pretensão descobridora. É o fim da colonização, não só o fim pratico, que esse já foi há muito tempo, mas agora um fim muito mais importante, que é o fim cultural. 

JEF – Acha preocupante esse fim? Acha que é um descalabro? 

EL – Não é preocupante, é normal. A mitologia do pai descobridor e do filho colonizado acabou, mas é bom que se dê por isso. Não podem estar a fechar- -nos os olhos e nos a pensarmos que no-los estão a abrir.

 JEF – Considera essa rejeição a amputação de uma parte importante da cultura e da história da Ibero-América? 

EL – Eles não a podem amputar, porque os verdadeiros atores, a título póstumo, da descoberta europeia, são eles mesmos, “ibero-americanos”, herdeiros dos colonizadores, convertidos hoje em pais de si mesmos. Eles estão a preparar- se para substituir a Europa, por um lado, e substituir-se ao adversário e inimigo mais próximo que eles têm, que é o grande irmão do Norte. O que o Brasil quer é opor-se e pôr-se no lugar da América, e é compreensivo. Servem-se dos índios, dizem que pretendem defender a cultura indígena, mas isso é discurso de colonizador. As elites de origem colonial, os seus filhos, os seus netos e que fazem esse discurso. 

JEF – Que significa cá este processo de revolta, de rejeição, de evasão? Vivemos numa época de barbárie cultural? Procura-se uma nova identidade? 

EL – Chegou a época da inversão dos signos. Todos os discursos são possíveis. O caos cultural do Ocidente, neste momento, é inexpugnável. Até já a teoria divulgada de que a América foi descoberta pelos chineses começa a ganhar adeptos. Isto podia ser uma espécie de folclore, mas é menos inocente do que parece, agora que a China aparece no horizonte como uma nova América... 

JEF – É o poder de atracção e de prestígio deste novo império emergente. Até começam a atribuir-lhe feitos que eram apanágio da Europa. 

EL – Inclusive as nossas Descobertas. Quando estive em Macau, conheci no Museu de Macau a história de um famoso almirante chinês que teria vindo da China até às costas de Africa, o que é perfeitamente plausível. Os chineses teriam sulcado quer o Pacifico, quer o Atlântico, quer o que é hoje a América. Embora não haja prova nenhuma disso, o facto de se aventar esta possibilidade significa que há uma tentativa de recomposição, de rejeição integral de toda a mitologia ocidental. Temos de nos habituar à ideia de que a nova versão da História não é a Palavra de Deus. 

JEF – Está em curso um processo de mudança dos grandes pivôs imperiais no xadrez mundial.

 EL – Completamente. E sempre a partir de um presente que se reescreve a História, e o presente hoje não é a Europa, ela perdeu o seu lugar, logo são outros que a escrevem. 

JEF – Considera, para terminar, que vivemos então numa era nova de relação da Europa com o mundo, dos países da Península Ibérica com a América Latina? Entrámos numa época que denominou de barbárie, que está a sobrepor-se à cultura civilizada? 

EL – Não, o problema é que o que está a acabar é a convicção, em que nós vivemos durante tantos séculos, de que só nós é que éramos civilizados. 

JEF – Mas isso é positivo. 

EL – Claro que é positivo. O que é negativo nisso é pensar que, de facto, o passado, tal como nos o fizemos, não existiu, ou que nós somos os bárbaros deles. O problema é que esta pretensão está, por assim dizer, na ordem das coisas. Muda de actores, mas não desaparece nunca. O bárbaro é, por definição, o Outro. 

JEF – Em suma, o grande perigo é o apagamento do passado.

 EL – Se por acaso a China recuperar todas as suas potencialidades, uma China tem atrás dela 4000 ou 5000 anos de história. Se algum dia for uma espécie de sucessora da América, evidentemente que vai reescrever a história do mundo de outra maneira. 

JEF – Fá-lo-á de acordo com a sua ótica, com o seu horizonte de compreensão próprio… 

EL – Eles nunca a poderão escrever como nós a escrevemos. Nós somos, culturalmente falando, herdeiros de gregos e romanos. Foram eles que inventaram a História. A consciência histórica e o acontecimento essencial da história do mundo. 

JEF – Então, a feitura da História é um instrumento de colonização cultural, usado pelos povos cultural e politicamente dominantes? 

EL – Nunca isso foi tao evidente como hoje. Todos os acontecimentos são escritos em americano, tudo é escrito em americano... Os nossos ídolos, os nossos jornais estão americanizados... Todos os dias há uma página na imprensa em que aparecem os ícones americanos. Mesmo quando se está no Brasil, esquece- se completamente que a Europa existe. Não há lá uma notícia capital sobre a Europa. E na América também não há nenhuma notícia sobre a Europa, excepto sobre alguma coisa que tenha a ver com ela. É como se fossem mundos aparte, hoje, na época da hiperglobalização. No século XIX, havia na América mais notícias sobre a Europa do que agora. A América, no século XIX, estava com os olhos postos em Paris e em Londres. A Europa era ainda o “tesouro do mundo”, tesouro cultural, e onde está o nosso tesouro. 

JEF – Senhor professor, uma palavra final sobre o futuro. 

EL – E quem tem uma palavra sobre o futuro? Como dizia Bergson, ninguém tem palavra sobre o futuro. Se eu tivesse uma palavra sobre o futuro, dizia-a. Qual e a filosofia do futuro? Se eu soubesse, escrevia-a já. O futuro é de uma imprevisibilidade total. Antigamente a profecia era mais verossímil, porque o tempo ainda era muito homogéneo. A maneira como se vivia no século XIV, ou XV, ou XVI, e como se vivia na minha infância, na Beira, não eram muito distantes. A aceleração brutal causada pela invenção científica mudou-nos o mundo. Eu já estou separado deste tempo, já estou hipermorto a vários títulos. Quando vejo o meu neto mergulhado na Playstation, não sei o que ele está a fazer. Ou não quero saber, o que é pior. Já estou navegando por conta de ninguém noutro lado. O do não-futuro.

 

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