Entrevista a Eduardo Lourenço “Um (des)encantador da Cultura portuguesa”
Por José Eduardo Franco
In José Eduardo Franco, Rosa Fina, Susana Alves-Jesus (orgs.), Portugal Vencedor: Vidas Empreendedoras em Entrevista, Eranos, 2015, pp. 47-75.
“Sinto orgulho em ser português [...]. Os portugueses estão na margem e consideram ao mesmo tempo que estão no centro do mundo. Somos uma espécie de Robinson Crusoe.”
— Da Beira Interior para a Academia —
“A infância é uma espécie de mar que está por cima de nós, terrestre.”
José Eduardo Franco − Gostaríamos de saber um pouco sobre a sua vida, sobre o seu trajeto, sobre as suas preocupações. Começando pela sua infância: onde nasceu e como foi a sua infância?
Eduardo Lourenço − Sou um filho do Portugal profundo, daquela Beira que já tinha um certo tipo de comportamento, e foi aí, digamos, o primeiro núcleo da resistência lusitana, em volta da qual se vai construir este país, que se veio a chamar reino de Portugal.
JEF
− Mas o senhor professor nasceu onde, exatamente?
EL − Nasci em São Pedro do Rio Seco, concelho de Almeida.
JEF
− Junto à fronteira...
EL − Junto a fronteira. Sou de uma zona raiana. E toda aquela região, chamada região de Riba Coa, é uma região que, até ao reinado de D. Dinis, pertenceu ao reino de Leão e isso e muito interessante − as pessoas desconhecem o facto porque, aparentemente, a região está tão integrada no território nacional.
JEF
− Mas originalmente foi das mais desintegradas...
EL − Quem lá vive sabe que os estratos linguísticos de muitas daquelas expressões que ali usam pertencem realmente ao lado leonês, do reino de Leão. É uma região extremamente arcaica e uma região muito particular como todas as regiões fronteiriças. É o nosso far west.
JEF
– Recordando alguns pormenores, nasceu em que mês e em que ano?
EL − Nasci em 1923, no mês de Maio. Duas datas me registam: o dia 23 e o dia 29. Sou como Homero: discutem-se as sete cidades em que nasci.
JEF
− Nasceu no dia 23 e foi registado no dia 29, como era habitual na altura.
EL – Exatamente, de maneira que estive seis dias fora do tempo, e
assim fique sempre, fora do tempo.
JEF
− Falemos um pouco sobre a sua família...
EL − A minha família era, em parte, uma família camponesa. O meu avô era lavrador, o outro avô também seria lavrador; era uma família numerosa. Vieram muito cedo para a Amadora, onde o meu avô tinha uma loja de calçado, mas realmente essa família só conheci tardiamente.
JEF
− E o seu pai e a sua mãe?
EL − Os meus pais também nasceram em São Pedro do Rio Seco. Muito jovem, o meu pai veio para Lisboa, com 12 anos. Aos 17 anos alistou-se no exército e fez uma carreira militar até ao posto de capitão, já nos anos 40.
JEF
− Então a sua infância foi desdobrada entre a sua terra natal e Lisboa?
EL – Não. Os primeiros dez anos foram na aldeia, em São Pedro do Rio Seco, salvo um ano, o da 3.a classe, que fiz na Guarda. Porque os filhos de militares deslocam-se... Os marinheiros deslocam-se, mas os militares também, e por vezes as famílias deslocam-se com eles. Nessa altura, fiz a 3.a classe e depois voltei e fiz a 4.a classe em São Pedro.
JEF
− E gostou da sua infância na aldeia? Como é que a caracteriza?
EL − Sim, quer dizer, a não ser que ela tivesse sido realmente digna do Dickens ou do Zola… Nós gostamos sempre das infâncias, sobretudo quando não houve nenhuma tragedia particular, quer dizer, quando ainda não houve mortos. Todas as infâncias têm os seus mortos, mas digamos que são daquelas mortes que nos aparecem como naturais, são pessoas mais velhas, casos do meu avô, da minha avó, que ainda conheci. Mas, se tivesse de resumir, foi uma infância feliz, e provavelmente mesmo um espaço de felicidade.
JEF
– Um espaço ligado à terra, à natureza...
EL – O que e importante, embora seja pequeno. Mas era um espaço de felicidade em volta do qual toda a vida depois se reorganiza, mesmo quando ela não corresponde as expectativas e ilusões que se criaram quando a gente é jovem.
JEF – Dizem que o imaginário da pessoa se constrói até aos oito anos, mais ou menos...
EL – O Péguy diz que é até aos quatro anos. Até aos quatro anos o essencial da pessoa esta decidido. Não tenho luzes especiais sobre isso, mas a infância é uma data de coisas, a infância é uma terra, a infância e uma paisagem. A paisagem contou muito – dir-me-ão que se fosse no Alentejo seria a mesma coisa, se fosse no Minho era outra coisa –, mas aquela paisagem e uma paisagem também muito singular: e um planalto, que já tem qualquer coisa de desértico, um planalto de vastos horizontes; não e aquela coisa de montanhas, nem vales encaixados. Tem ares. A infância é uma espécie de mar que está por cima de nós, terrestre.
JEF
– E então como é que foi a sua escolaridade, os anos de formação?
EL – A minha escolaridade foi a mais normal. Fiz a escola primaria em São Pedro e passei um ano na Guarda. Depois fiz o exame de admissão para o liceu na Guarda, onde frequentei o primeiro ano do liceu. Mais tarde, no segundo ano, já vim para Lisboa, para o Colégio Militar, onde fiz o curso.
JEF
– E depois foi para a universidade?
EL – Depois fiz o exame de admissão a universidade.
JEF
– E foi para Histórico-Filosóficas?
EL – Não, porque estava destinado a ser militar. Fiz o exame de admissão para Ciências, mas praticamente desisti logo no primeiro trimestre.
JEF
– Hoje teria sido general...
EL – Na reserva... Mais que na reserva, como todos os meus camaradas dessa altura. Mas não tinha vocação nenhuma para isto nem para nada. Nunca tive nenhuma vocação especial. Foram as circunstâncias que determinaram o meu percurso.
JEF – Depois optou por ir para
Coimbra, certo? E candidatou-se ao curso de Histórico-Filosóficas.
EL – Fui para Coimbra, porque pensava que era a universidade por excelência, naquela altura.
JEF
– E como foi a sua experiência universitária?
EL – Foi decisiva, naturalmente.
JEF
– Gostou do curso?
EL – É uma iniciação, a primeira grande iniciação cultural. A mais importante. Foi muito interessante, porque desde garoto tinha uma grande paixão pela História em geral.
JEF
– Então essa era a sua vocação?
EL – Tinha uma grande paixão pela História como romance. E pensava que ali me iria interessar fundamentalmente pela História, que iria ser talvez um futuro historiador, um José Mattoso da minha geração, e não foi nada disso que aconteceu. O professor de História era um dos grandes eruditos, mas pedagogicamente não era isso o que eles davam nas aulas, pedagogicamente não interessava muito. Na verdade, interessei-me mais pela Filosofia.
JEF
– E deste percurso todo – escola primária, liceu, Colégio Militar, universidade
–, recorda
algum professor que o tenha marcado sobremaneira?
EL – O meu professor pré-primário, um senhor muito modesto, chamado professor Morgado, um homem muito dedicado, que vinha a pé léguas para ensinar. Foi uma semana, mas marcou.
JEF – E no liceu?
EL – No liceu tive bons professores, professores regulares, mas, o que me marcou mais foi o professor de História que tive no Colégio Militar. Chamava-se Sanches da Gama e é o avo da escritora Luísa Costa Gomes. Era um excelente professor, de uma grande harmonia, que se distinguiu entre os seus. Em geral, não há muito gosto pela História, os alunos não se interessam muito pela História. Aquele meu professor dizia que eu podia, já naquele tempo, ser professor dos meus colegas.
JEF – E gostou da disciplina do Colégio Militar? Acha que é importante?
EL – Não, não, não...
JEF – Deu-se mal?
EL – Foi decisiva para mim no sentido reactivo. Eu não queria estar como um pássaro numa gaiola, e realmente, quando me apanhei fora...
JEF – E apanhou-se fora, já na universidade...
EL – Mas, quer dizer, o pouco de disciplina que terei terá sido aprendido aí. A universidade foi uma coisa muito ambígua...
JEF – Sair da gaiola correspondeu a ir para a universidade?
EL – Sair para a universidade.
JEF – E na universidade houve algum professor que o tenha marcado?
EL – Tive realmente a sorte de ter professores como o professor Joaquim de Carvalho, um historiador e filósofo, o Sílvio Lima, que era um espírito brilhante como ensaísta; e um professor, com uma visão do mundo mais tradicionalista, em termos de enraizamento escolástico, tomista, que era muito bom professor e um excelente pedagogo, o padre Miranda Barbosa. Embora tivéssemos divergências naquela altura – eu já tinha ideias –, a verdade é que tenho de reconhecer que foi um excelente professor. E também tive como mestre assistente, o professor Magalhães Vilhena, que deu algumas aulas interessantes.
JEF – Em relação à Filosofia, já escreveu que cada pensador é uma ilha...
EL – É uma ilha... Um amigo meu, o poeta Joaquim Namorado, dizia que cada português ficava sempre muito danado por não ter inventado os fósforos.
JEF – Mas aplica-os bem...
EL – Ninguém nasce de uma bolota, como dizia Homero. Os mestres funcionam em Portugal como referências escolares, porque eles próprios tem pouca originalidade. Refiro-me ao campo filosófico. Os discípulos são discípulos de um certo saber, de uma certa aprendizagem que fizeram, mas não de um pensamento pessoal, visto que esse pensamento talvez não fosse suficientemente original para os ter marcado. Assim, cada um pensa que está sempre a começam na "hora zero". Ainda se fosse verdade... É próprio do pensar filosófico não poder fazer outra coisa que não seja começar numa "hora zero" qualquer. O caso do Heidegger e um caso típico que mostra efetivamente como se está ai sempre a começar. A filosofia e velha e nova ao mesmo tempo, não tem princípio nem fim. Aqui no nosso país, na nossa história cultural, houve uma pequena escola positivista. Quando o ensino se baseia na crença, quer seja crença no sentido tradicional do termo, quer seja crença no sentido positivista do seculo XIX, então forma-se uma espécie de escola, digamos, uma “seita-escola”.
JEF – Com uma dimensão de militância...
EL – Sim, quase de seita. No tempo do padre Manuel Antunes e no meu tempo, havia como tema globalizante o marxismo. Mas qual é o nosso grande pensador marxista? Temos naturalmente homens de cultura marxista. O António José Saraiva, na sua primeira fase, o Óscar Lopes, embora seja mais na sua versão literária... Havia muita gente que participava do discurso marxista histórico, político ou cultural. Fora disso, temos pensadores independentes. Por exemplo, Delfim Santos não esta propriamente vinculado a qualquer tradição. E alguém que teve a sua aprendizagem em Portugal, depois continuou a sua reaprendizagem na Alemanha. Veio da Alemanha, tendo lá dialogado com grandes mestres. Iniciou em Portugal uma importante reflexão. Todavia, não encontrou aqui outra com que dialogar. Por exemplo, ele foi contemporâneo de Vieira de Almeida, que representa outro tipo de pensamento. São duas ilhas: Vieira de Almeida é uma ilha, Delfim Santos e uma outra ilha. Aqui, provavelmente, a única escola em termos de ordem filosófica será aquela que glosa Leonardo Coimbra. Leonardo Coimbra é que fez escola, por causa do seu tipo de discurso, um discurso filosofia camítico, filosófico-simbólico, literário, coisas sempre muito apreciadas pela nossa cultura poética.
JEF – Fez escola no quadro da dita Filosofia Portuguesa...
EL – A Filosofia Portuguesa é que se reclama dele. A ideia da Filosofia Portuguesa não é dele. Não encontro nada em Leonardo Coimbra que o justifique. Leonardo Coimbra foi alguém muito influenciado por Bergson, portanto estava em diálogo com uma das grandes filosofias da época, dominantes na Europa. Nós somos professores de Filosofia, no melhor dos casos, com vocação de filósofos. E cada um é uma ilha: temos o Leonardo Coimbra, o próprio Delfim Santos – não vejo nada na sua obra que tenha o pathos, o lirismo do primeiro. Pelo contrário, ele escreve uma obra sobre o positivismo.
JEF – António Sérgio foi outra ilha genial…
EL – No caso de António Sérgio, ele pertencia a uma linha que, embora não seja a nossa, era um dos discursos dominantes na sua época, um discurso neokantiano em que ele se insere perfeitamente. António Sérgio está isolado aqui, mas não está isolado no contexto das nossas referências habituais, como a França ou a Inglaterra. Está apenas isolado dentro do seu país, embora com gente que dele se reclama. Só há um António Sérgio. É sempre assim em Portugal, há só um de cada espécie. Nem é como a arca de Noé...
JEF – Voltando ao seu percurso universitário, foi na universidade que desenvolveu o seu pensamento, o seu espírito crítico? Teve intervenção académica, de carácter associativo? Em que anos foi a sua formação?
EL – Entre 40 e 45.
JEF – Foi no período mais ou menos sereno do Estado Novo.
EL – Sim, mas já muito agitado. Foi durante a guerra. Uma sociedade como a nossa estava muito dividida pela guerra, pelo problema da guerra, entre os aliados e não aliados, mas, fundamentalmente, o país era militarmente pro-aliado. Em parte devido a nossa antiga ligação com a Inglaterra, a nossa relação com a França, etc. Em Portugal, os partidários das potências do Eixo eram muito minoritários.
JEF – E na altura já germinava alguma crítica ao Estado Novo, a Salazar, ou ainda não?
EL – Nos primeiros tempos não, mas a minha geração muito cedo começou a ser uma geração de critica cultural. Mais de crítica cultural ao Estado Novo do que propriamente de critica ideológica, até porque ela não era muito fácil de fazer de uma maneira ostensiva. De maneira que toda a minha geração, a geração que se chama neorrealista, não tinha essa pretensão. Embora eu não fosse propriamente característico da corrente neorrealista, a verdade é que fui camarada e companheiro dessa geração e fiz aí amigos muito bons.
JEF – E como é que caracteriza, de forma breve, o neorrealismo?
EL – O neorrealismo – deram-lhe esse nome, que no fundo era uma máscara – era um grupo de jovens, intelectuais, toda uma geração inspirada (menos talvez, teoricamente, pelos textos) por uma visão marxista do mundo, mas principalmente por uma das grandes divisões do mundo de então, de cariz ideológico: o mundo condicionado pela Revolução Soviética e pela experiência do que se passava na Rússia, pelos admiradores da Rússia.
JEF – Tinham desse mundo uma visão encantada?
EL – Uma visão sobretudo muito abstrata, mas que tinha a função de ser uma arma contra o regime, de maneira que, mesmo as pessoas que não eram marxistas, nem de coração, nem de cultura, encontraram nessa referência uma forma de se oporem, uma arma para combater certos aspetos do regime, nomeadamente a censura. Porque a minha geração, academicamente falando, estava dividida em duas, como é costume em Portugal. Uma delas era mais tradicional, mais tradicionalista, o que, curiosamente, não significava que fosse de gente propriamente salazarista. Toda essa gente de Direita do meu tempo, académica, vinha de uma tradição mais monárquica, ou seja, o integralismo português, neonacionalismo. E essa foi uma das bases, naturalmente. Esses grupos disputavam-se academicamente.
JEF – Mas de forma serena. Era mais um debate intelectual.
EL – E havia eleições, quando nos permitiam.
JEF – Chegou a fazer parte de órgãos associativos da sociedade?
EL – Não, não, nunca fiz. Não tinha jeito para isso. Formaram-se ali figuras de referência na literatura portuguesa, na cultura portuguesa. Salgado Zenha era uma espécie de porta-voz desse tipo de oposição. Tínhamos também o Almeida Santos.
JEF – Foi seu colega?
EL – Ele era um pouco mais novo.
JEF – Mas apesar disso conviveu com ele.
EL – Convivi.
JEF – E, acabado o curso, qual foi o seu trajeto?
EL – Acabado o curso, fui convidado para ser assistente, e fui seis anos como assistente do professor Joaquim de Carvalho.
JEF – De que cadeiras?
EL – Das cadeiras que ele dava. Não só dele, mas de outros também. Era uma desertificação: só havia um assistente, e o assistente dava tudo.
JEF – Mas, por exemplo, deu História?
EL – Eu era assistente do Dr. Joaquim de Carvalho, mas não dava História, só dava Filosofia. Era assistente do Joaquim de Carvalho, também era assistente do Dr. Sílvio Lima e do Miranda Barbosa, de algum modo, mas, fundamentalmente, era assistente do Dr. Joaquim de Carvalho.
JEF – E qual foi a cadeira que mais gostou de dar?
EL – Filosofia Moderna.
— Internacionalização e consciencialização cultural —
“Acontece a partir do momento em que se sai do pais e se passa de uma cultura que funciona em certos parâmetros, que nos conhecemos, para o contacto com culturas estrangeiras, que nos permitem relativizar a nossa própria tradição, o nosso próprio passado.”
JEF – E entretanto, feitos esses seis anos, o que é que o levou a sair de Coimbra?
EL – Em vez de fazer a tese de doutoramento – que poderia ter feito e, aos 26 anos, seria um jovem doutor, e a minha vida teria sido completamente diferente, mesmo que não fizesse nada (passar os dias no café, e na conversa) –, quando chegou ao fim o prazo de seis anos – naquela altura as saídas para um curso como Histórico-Filosóficas não eram muitas, entre elas havia a carreira diplomática, por exemplo, e como tinha sido bom aluno podia ter entrado directamente–, ocorreu-me concorrer e doutorar-me no estrangeiro. E fui para fora.
JEF – E foi para onde?
EL – Fui para a Alemanha.
JEF – E para que cidade?
EL – Para Hamburgo, um ano, e depois para Heidelberg.
JEF – E porquê a Alemanha?
EL – E porquê a Alemanha? Porque ainda continuei nos Estudos Filosóficos e a Alemanha era um símbolo, era a pátria da Filosofia… De maneira que comecei assim a minha vida de leitor. Na verdade, em toda a minha vida, o que fiz foi ser leitor. Leitor no sentido prático do termo, na verdade, digamos, de vocação própria. Não fiz outra coisa na minha vida a não ser ser leitor.
JEF – E depois da Alemanha, foi para onde?
EL – Depois fui para Franca e fiz toda a minha carreira em Franca.
JEF – Em que universidade?
EL – Primeiro, como leitor do Governo português, durante três anos, em Montpellier. Depois, estive um ano no Brasil, na Bahia.
JEF – De que não gostou muito...
EL – De que não gostei assim muito. E depois voltei e fiquei como leitor do Governo francês em Grenoble, até ao famoso ano de 1968, em que a reforma permitiu que se passasse de leitor a maître-assistant e maître de conference, na Universidade de Nice.
JEF – E essa diáspora, essa saída de Portugal, permitiu-lhe depois olhar para Portugal de uma forma diferente, qual estrangeirado do século XVIII.
EL – Mas nada disso aconteceu propositadamente, foi ocasional. Acontece a partir do momento em que se sai do país e se passa de uma cultura que funciona em certos parâmetros, que nos conhecemos, para o contacto com culturas estrangeiras, que nos permitem relativizar a nossa própria tradição, o nosso próprio passado.
JEF – Mas esse trajeto também lhe deu uma distância, certamente, uma posição de distanciamento, ou seja, deixou de estar aqui envolvido em questiúnculas internas, o que lhe permitiu situar-se num patamar que lhe conferiu uma autoridade que, depois, fez de si a referência que é hoje, sem dúvida.
EL – Talvez. Mas isso fez-se de uma maneira nada premeditada, salvo que isso é uma coisa que acontece a toda a gente que sai de sua terra e passa a ser ou imigrante, no sentido próprio, ou emigrado, ou expatriado.
JEF – Estrangeiro lá fora e estrangeiro cá dentro.
EL – Passa a fazer outro percurso, a ser outra coisa e a olhar o mundo de outra maneira. E, sobretudo, passa a ter um relacionamento com a pátria deixada diferente daquilo que seria, noutras circunstâncias.
JEF – Para isso, o facto de ter constituído família lá fora foi decisivo?
EL – Claro. Isso foi muito importante.
JEF – Casou-se em França?
EL – Claro, isso foi extremamente importante.
JEF – Teve depois família e filhos.
EL – Tive um filho.
— Ideias sobre o transcendente e a Cultura Ocidental —
“O homem e naturalmente religioso, mesmo o ateu, de maneira que não há resposta nenhuma, positiva, porque uma resposta em que o homem esteja implicado, naquilo que ele e como ser, não pode existir sem o mínimo de sentido na sua própria acção, o que supõe já uma forma de religiosidade, seja ela qual for.”
JEF – Mudando de assunto, se concordar, e falando de Deus, qual é o seu posicionamento? É um homem crente, ateu... Qual é o seu posicionamento perante a questão do transcendente?
EL – Nasci numa das províncias mais conservadoras do país, católica, no sentido sociológico do termo. Sou de uma família catolicíssima e, portanto, cresci impregnado de toda a cultura cristã.
JEF – E qual foi o seu trajecto religioso?
EL – Bom, como aconteceu com muita gente a partir do liberalismo, a certa altura há uma crise em relação a essa herança, em relação à prática religiosa.
JEF – Como é que aconteceu essa crise?
EL – Ela foi-se fazendo lentamente, sem nunca ter aspectos dramáticos, como os que assaltaram as primeiras gerações que se confrontaram com a “morte de Deus”. Passar de um país em que predomina um certo discurso, uma certa prática religiosa, uma certa vivência, diária, da religião católica, tal como durante séculos foi praticada, para uma interrogação, uma problematização, mesmo uma dúvida em relação a esse tipo de tradição: aconteceu-me tudo isso, realmente, ao mesmo tempo. Uma religião é insubstituível. O homem é naturalmente religioso, mesmo o ateu, de maneira que não há resposta nenhuma, positiva, porque uma resposta em que o homem esteja implicado, naquilo que ele é como ser, não pode existir sem o mínimo de sentido na sua própria acção, o que supõe já uma forma de religiosidade, seja ela qual for.
JEF – Depois deste trajecto longo, de mais de 80 anos, como é que agora olha para a questão do transcendente? Considera-se um homem de fé, um homem sem fé? Uma vez disse que era um cristão sem transcendência. Ainda se revê nessa frase?
EL – A transcendência – a palavra já o diz – é mais da ordem do enfático do que da ordem do pensável, pela própria natureza. Quer dizer, nós não podemos escapar à inscrição numa esfera qualquer, que se nos dá como transcendente, não podemos escapar-lhe, quer positiva, quer negativamente. A inscrição não tem saída para nos oferecer, positiva ou hiperpositiva: e uma espécie de aceitação de qualquer coisa que ultrapassa e ao mesmo tempo dê aquilo que nós somos como seres humanos e seres pensantes. Nós não podemos escapar a essa inscrição. O problema e de missão dessa transcendência, do conteúdo dessa transcendência. Essa é a dificuldade, esse é o dilema, esse é um processoem aberto.
JEF – Falando da Igreja, acha que a Igreja católica tem um papel a desempenhar na Europa dos nossos dias? Qual deve ser esse papel? Ela própria também tem quefazer um caminho?
EL – A história da Europa, sobretudo da Europa Moderna, e impensável sem o entrosamento interno das Igrejas (Igreja católica e Igrejas protestantes) e do destino do Cristianismo na Europa. A nossa história e diferente de todas as outras histórias devido a esse entrosamento. Só aqui e que esse entrosamento e, por assim dizer, histórico-ontológico. Todos os continentes são diferentes por causa disso. Aqui na Europa há uma discussão contínua do seu devir. E o único continente onde a figura de Deus, a ideia de Deus, a imagem de Deus, é discutida, como em nenhum outro. Nos outros continentes é aceite, é um dado, na Europa não. Desde o princípio que a teologia é uma discussão permanente da ideia de transcendência, coisa que não é discutida por outras religiões, porque é um dado. O Islão não discute. Deus é uma evidencia como o céu azul ou a natureza. Na cultura europeia não há naturalização de Deus. Não sei se éuma graça ou uma maldição, mas é assim.
JEF – Então, Deus é estrangeiro à cultura da Europa, é transcendente?
EL – Ela não pode ser pensada sem essa discussão da ideia de transcendência.
JEF – E que significa cado pode ter para a cultura europeia o facto de ter tido matricialmente essa discussão no quadro da construção do seu pensamento? Qual é a importância de se continuar essa discussão?
EL – Sem essa discussão, estava condenada, como todas as outras, a um destino mais ou menos “totalitário”. Aquela espécie de crise, que poderia ter sido a última, que foi a crise do seculo XX, a crise da democracia e a perspetiva de a Europa entrar, no seu conjunto, numa forma histórica que conhecemos como totalitarismo, foi uma ameaça não só para a Europa, mas para o mundo inteiro. Os europeus, pela força das coisas, deram-se conta de que ou mudavam de caminho, ou a Europa desaparecia. Foi então que nos propusemos construir uma nova Europa, a que hoje damos o nome de União Europeia. As raízes políticas dessa Europa residem na iniciativa de três nações, e dessas três nações saiu a primeira versão, que se chamava, jornalisticamente, Europa Vaticana, o chamado Tratado de Roma. Não é a Roma de Cesar, e a Roma do Império e a Roma Católica. Nestes 40 anos, essa origem política, primeiro da CEE, depois da União Europeia, foi-se apagando para que triunfasse uma outra ideia da Europa, de modelo laico.
JEF – Podemos dizer que esteve na base desse projeto matricial da União Europeia o modelo da cristandade católica medieval, de direção papal, decalcada agora de forma laica com a nostalgia daquela autoridade gestora supranacional?
EL – Uma das coisas mais lamentáveis, do meu ponto de vista, é a confusão em torno da ideia de “laico”, e a Igreja é muito culpada disso. Não porque ela não saiba o que é o laico, pois foi ela que criou essa designação, mas porque o laico hoje é como se fosse uma invenção da modernidade propriamente dita, da modernidade revolucionária, a partir da Revolução Francesa, mas não é. A raiz do laicismo é o Evangelho.
JEF – A encarnação do próprio Cristo, a ideia de laicização de Deus...
EL – Não e só por isso. E por ser a primeira relativização do poder. E a única religião que separa efetivamente o reino de Deus do reino do Poder. Isso é que éo laicismo, separar uma coisa da outra. Se o laicismo se converte numa doutrina ortodoxa, num outro tipo de ortodoxia de ordem política, que seja discurso do Poder, então ele está duplamente a contradizer-se a si próprio. Portanto, esta oposição entre laicismo e religião não tem razão de ser. Nas outras religiões não há problema nenhum, porque não tem ideia do que é o laicismo. O laicismo é uma ideia cristã.
JEF – Acha que a Igreja também tem um caminho a percorrer no sentido de regressar às origens?
EL – A Igreja esta no mundo, a Igreja esta no tempo. Não só oferece a cruz aos outros; ela tem a sua própria cruz.
JEF – E a sua maior cruz é a sua própria contradição interna...
EL – …que a faz viver. E um sinal de contradição, mas um sinal de contradição não é uma coisa negativa, e uma coisa positiva, no mesmo sentido em que Hegel diz que a negatividade move o mundo. No caso da Igreja, a sua cruz verdadeira não e só a de resgatar o mundo, mas de se questionar a si mesma.
— Estado Novo e Revolução —
“O último esforço do império, deste império, que tinha sido um império a sério há muitos seculos, e que, depois de uma segunda fase no século XIX, era-o essencialmente por uma questão de posse, funcionando comoum subimperialismo dos grandes imperialismos inglês e francês.”
JEF – Entretanto, surge a crise do Estado Novo, que se intensifica cá a partir dos anos 60. Qual e como foi a sua relação com o regime, a sua relação crítica? Esteve sempre ligado aos sectores da oposição. Teve problemas com o regime?
EL – A partir do momento em que o regime começou a ter uma contestação pública, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, fundamentalmente por ocasião das eleições, passou a haver um período de um mês em que o país se punha a discutir política em termos partidários, o que não era praticável antes. E, portanto, acompanhei esses acontecimentos, que eram importantes para o destino político deste país, mas lá de longe. Nunca estive cá nas ocasiões em que se deram esses votos importantes, como na campanha do Norton de Matos, por exemplo. Depois fui muito sensível: percebi que esse momento tinha sido muito importante, porque pela primeira vez o regime oscilava e perdia alguns dos apoios tradicionais que justificavam a sua vigência política e ideológica. Na famosa campanha do general Delgado, percebeu-se que pela primeira vez o regime estremecia de dentro, não tanto pela pressão que se fazia de fora – a força que tinha já a oposição –, mas porque esse senhor vinha de dentro.
JEF – Uma primeira implosão.
EL – Não só vinha de dentro, mas era militar, e um militar altamente graduado. Isso dividia de algum modo e punha problemas ao exército, que era um dos sustentáculo do regime, primeiro, e depois, do Estado. Era a defesa, a guarda pretoriana do regime. E, de facto, por essa ocasião, a própria Igreja, com alguma distância em relação ao regime, nesse momento, estremeceu, ao ponto de Salazar, num célebre discurso, referir (invocar quase) a figura de traição dos seus.
JEF – E, depois, como é que viveria a experiência do 25 de Abril?
EL – Fui muito sensível, nessa altura já acompanhando naturalmente a política mundial, nos jornais. Um dos acontecimentos mais importantes do século XX foi a famosa descolonização, que começa nos finais dos anos 40 e faz com que a Europa seja obrigada, pouco a pouco, a abandonar o poder histórico sobre os grandes territórios colonizados, uns atrás dos outros. Percebi que Portugal (percebi isso logo quando estive no Brasil, em 1958) não ia escapar a essa onda de descolonização e que se iria criar uma cegueira no regime –não digo de toda a gente, mas muitos tinham a ilusão de que iríamos guardar Angola e Moçambique, o que me parecia pouco provável. E realmente em 1961 começa a rebelião africana, que foi, apesar de tudo, extraordinária; as pessoas não pensam que esses 13 anos de guerra em Africa, para um país tão pequeno como Portugal, foram um super-Vietname. O esforço que Portugal empregou naquela guerra é inacreditável. Fomos combater com um esforço maior do que o empregado pela América no Vietname!
JEF – Tínhamos vários campos de batalha, vários cenários de guerra, vários países…
EL – A quantidade de gente que foi mobilizada em termos humanos! Aquilo foi fantástico. Mas tudo fora da visibilidade do olhar europeu. Na imprensa internacional iam saindo notícias, porque era impossível escapar a isso, mas aqui, na imprensa nacional, não havia nada, só havia o jornal clandestino. De maneira que essa guerra foi uma espécie de guerra escondida, escondida dos próprios olhos do regime. Não era uma guerra. Era uma rebelião de uns terroristas que andavam por ali, mas guerra não era. Se fosse guerra, tinha-se tomado um outro dispositivo qualquer, e tinham-se encontrado todos os meios políticos para solucionar o problema. Mas aquilo era um fait divers…
JEF – Era apresentado como tal.
EL – Claro. O resultado foi que depois se bateu no muro, até que, por diversas circunstâncias de ordem internacional, tudo acabou por desabar. Um país tão pequenino quanto Portugal não podia aguentar... Mas o esforço que fez Portugal nessa altura foi muito baroud d’honneur, como dizem os franceses. O último esforço do império, deste império, que tinha sido um império a sério há muitos seculos, e que, depois de uma segunda fase no século XIX, era-o essencialmente por uma questão de posse, funcionando como um subimperialismo dos grandes imperialismos inglês e francês. Portugal empregou sempre forças que não tinha.
JEF – Situemo-nos agora no 25 de Abril, no processo de transição para a democracia, na Revolução Abrilina. Como é que olha, como é que viveu esse acontecimento, e qual foi o papel do professor Eduardo Lourenço na construção da democracia?
EL – Vivi realmente com muita intensidade e com muita paixão. Já tinha vivido o Maio de 68 em Franca, mas o Maio de 68 em Franca foi sobretudo folclore estudantil. Estava-se ali a disputar duas Francas possíveis...
JEF – Qual é a memória que tem do Maio de 68? Acha que foi mitifica cado também?
EL – Sim. O Maio de 68 faz parte de um contexto mais genérico, faz parte da América, das universidades americanas, e chega aqui. Tudo começou vindo da América. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, todo o tipo de movimento, entre outros, a música, a moda, começa a ser recebido dos Estados Unidos ou, ocasionalmente, de Inglaterra. Do ponto de vista dos movimentos com impacto de ordem social ou com pretensões a mudanças profundas na sociedade, tudo começa na América, mas o Maio de 68 foi muito mais radical do ponto de vista teórico, porque estamos numa Europa dividida, efectivamente, entre uma referência ocidentalizante, ocidental, tutelada pela América, e o Bloco de Leste, que estava do outro lado. Portanto, foi a tentativa de fazer uma revolução aqui, na parte do Oeste, no tempo em que as revoluções já não eram possíveis. Mas ao mesmo tempo foi uma coisa real, porque teve muita importância do ponto de vista social, de costumes, de mudanças de paradigmas, de comportamentos, etc. Mas, politicamente, já era algo virtual, uma espécie de mise em scène, que só foi possível pela tolerância imensa, que é natural numa democracia consolidada. Se tivessem de resolver aquilo à força, resolviam-no em 24 horas, como o general De Gaulle fez, quando, a sério, acabou com o Maio de 68.
JEF – Mas teve infle Lência talvez o significa cado do gesto da revolução.
EL – Não, em Maio de 1968, esta França já não era a Franca do século XIX. Ela era América, sobretudo no plano cultural e no espaço ideológico de onde saiam as ideias revolucionárias, que se propagavam como se propaga o fogo. A França já não tinha esse poder. Mas apesar de tudo, houve vários países que ouviram essa lição. Sobretudo essa revolução de Maio de 1968 foi uma revolução de toda uma geração, uma nova geração, de um novo comportamento a todos os níveis, desde o nível político, ideológico… Ideológico, mas muito paradoxal. A Franca era contra o gaullismo, mas era menos contra o gaullismo do que contraa grande hegemonia cultural e ideológica tecida pelo Partido Comunista, e o Partido Comunista percebeu muito bem que, em vários sentidos, era contra ele.
JEF – Era contra o Partido Comunista?
EL – Claro, naturalmente, e eles perceberam-no muito bem. E quando o Partido
Comunista retirou o seu apoio – eles tinham entrado naquela onda que pensavam ser a de uma nova onda popular, da qual julgavam que iria sair uma revolução, uma nova revolução bolchevique ou coisa parecida –, quando percebeu que aqueles sujeitos não eram ortodoxos, não eram estalonai-nos, mas eram maoistas, todo um grupo que apareceu em Portugal depois, em 1975, o partido tirou-lhe o tapete e De Gaulle esmagou rapidamente, em 24 horas, a revolução.
JEF – Então considera que, em 1974, a revolução abrilina portuguesa foi uma espécie de Maio de 68 português?
EL – Não, essas coisas em Portugal são sempre diferentes, como nunca são iguais em parte nenhuma. A Revolução de Abril não tem leitura sem a guerra de África: ela é filha da guerra de África, e também da ordem interna, uma vez que realmente o 25 de Abril existiu. Depois, o que se passou aqui, durante os primeiros seis anos a seguir ao 25 de Abril, não tem compreensão nenhuma sem o papel importantíssimo desempenhado pelo exército. Mas como o exército, foi fielmente, não quis assumir diretamente, numa primeira instância, o poder, a maneira sul-americana ou a maneira nasseriana, a sociedade civil entrou no processo, e dividiu-se, mas só pode fazer o que fez em função das forças que lhe garantiam, no espaço militar, decidir sobre as questões realmente importantes, que foi o que aconteceu.
JEF – Mas qual é o seu papel na construção da democracia? O professor é uma espécie de pedagogo da democracia portuguesa, em grande medida. Mário Soares é uma espécie de pai da democracia, do ponto de vista político; o senhor professor é o mesmo do ponto de vista cultural, pelo menos um psicanalista, um analista.
EL – Qual era o problema, aqui, naquela altura? Provavelmente era uma ficção da nossa parte, uma utopia. O problema, o que era? Para uma certa intelligentsia portuguesa, a seguir a 1974, o problema era saber se o país ia ou não para um regime de tipo democracia, democracia popular, da qual conhecemos exemplos na Europa do Leste, no fundo, uma democracia marchante, ou marxista. O exemplo mais famoso era o exemplo de Cuba: Portugal iria transformar-se numa espécie de Cuba. Penso que nem toda a gente teve essa perceção, mas de facto era isso que estava em causa.
JEF – O surgir de um novo totalitarismo de sinal contrário?
EL – Os que não eram de Esquerda opuseram-se, naturalmente, a essa tentativa virtual de que nos caminhássemos para um regime, digamos, tutelado aqui pelo Partido Comunista Português, que era pequeno mas era muito importante. As pessoas arrumaram-se aqui fundamentalmente entre pró-Cunhal e contra-Cunhal. No fundo, quem impediu a possibilidade de essa tentativa resultar foi ainda o salazarismo, foi o antigo regime, com todas as forças que se alinharam depois, a Igreja, porque o país estava maioritariamente desse lado, e o Partido Socialista colocou-se no meio-termo. Da primeira vez que fui ao Partido Socialista, a primeira coisa que vi foi um cartaz famoso de Marx. Era simultaneamente um Partido Socialista e um Partido Marxista, e, se não tivesse funcionado assim, oPartido Comunista tinha aglomerado toda a força revolucionária à sua volta.
JEF – Foi uma estratégia. Mas aí o Partido Socialista tem o papel de equilíbrio...
EL – Sim, mas o Partido Socialista só pode fazer isso, porque as forças do Portugal profundo já estavam, numa primeira fase, todas a favor dessa resistência e esconderam-se, numa primeira fase, atrás de Mário Soares. E Mário Soares escondeu-se atras das forcas importantes que podiam resistir, numa altura em que se falou, aqui, da eventualidade de que pudesse haver uma espécie de guerra civil – rápida, dado que Portugal não se presta a guerras civis muito prolongadas –, mas de retirada lá para cima, com a protecção do arcebispo de Braga, e de outros bispos, etc. Quer dizer, sairia uma parte do Norte contra o Sul. Essa hipótese chegou realmente a ser formulada. Mas, na verdade, foi este Portugal profundo que nós conhecemos… Entretanto, as coisas ocorreram exatamente como ninguém podia perceber. O país foi-se modificando. Este regime no início teve algumas resistências, mas depois as pessoas aceitaram. Enfim, a novidade em todo o mundo era a perspetiva democrática, e era preciso jogar esse jogo democrático, se não, não se chegaria a lado nenhum.
JEF – E nesse momento crucial, em que o país estava à beira de uma fratura conflituosa, quem é que acha que teve um papel decisivo para que isto não descambasse para um banho de sangue?
EL – Como lhe disse, realmente, as coisas decisivas passaram-se no interior e no espaço militar. Mas, no mundo militar, esses militares também só puderam ter esse papel porque uma parte da sociedade civil se tinha mobilizado em função dessas forças – o Partido Socialista e, sobretudo, Mário Soares, uma figura capital nesse capítulo. Mas, não menos capital foi uma figura como Melo Antunes – absolutamente capital. Ele era de Esquerda, tinha uma sensibilidade de Esquerda, mas quando chegou o momento decisivo, Melo Antunes, que tinha o apoio da política internacional e conhecia realmente o mundo, escolheu, de facto, ficar do lado da democracia, mesmo que de modo formal, e isso foi absolutamente decisivo.
JEF – E como é que avalia o papel da Igreja nesse contexto?
EL – O papel da Igreja foi muito ambíguo, mas ficou à espera, ficou à espera… Ficou expectante, mas o eleitorado de raiz católica não é uniforme, e diversificado, de acordo com as clivagens sociais do país. Progressistas, conservadores, e outros coisa nenhuma, pouco importa, políticos, etc. Mas não era aí que seria natural encontrar grandes aliados numa tentativa de maximização deste país, porque não era essa a doutrina da Igreja. Agora, em relação aos intelectuais, aí e que a divisão foi interessante. Uma maioria, numa primeira fase, de grandes entusiastas – aí o PC cresceu –, vendiam o Marx nas ruas, os comunistas passaram do oito para o oitenta na proibição, porque era uma coisa nova. Mas desde cedo houve uma grande divisão. E uma coisa que me pareceu muito importante, e não tem sido suficientemente sublinhada, foi o papel do Jornal Novo, dirigido pelo Artur Portela, no qual colaborei, com o José Sasportes e outros. Tínhamos duas tribunas: tínhamos uma parte do Expresso, que foi uma tribuna muito resistente a uma tentativa de maximização, e depois o Jornal Novo, que, de facto, foi fundado um pouco para apoiar os militares.
JEF – E como é que hoje, a quase 40 anos de distância, avalia a deriva do regime democrático? Houve uma consolidação?
EL – O regime democrático, no sentido formal, está consolidado. É consensual, inclusive para o Partido Comunista. Nem há sequer essas franjas mínimas que querem ser radicais, como há noutros países. Como se diz, é como se tivéssemos vivido sempre em democracia. Quer dizer: Portugal é assim, muda e acabou-se. O tempo presente passa a ser o tempo imemorial.
(continua)
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