“O homem pensa com o corpo todo” (Krestchemer, psiquiatra e filósofo alemão, 1888-1964).
De quando em
vez, dou comigo em revisitar uma pasta de artigos de opinião meus publicados ("Jornal Novo", "Jornal de Notícias "Correio da Manhã", "Público", "Diário de Coimbra"), a partir de
1955, mais de um milhar, sem ter em conta inúmeros "post's" publicados em blogues com destaque no “De Rerum Natura", de que sou co-autor.
Na medida económica que a minha condição de reformado permite, acabo de comprar o livro de António Damásio: “Sentir & Saber - A Caminho da Consciência" (Círculo dos Leitores, Nov. 2020). Este género de leitura sobre os complexos meandros da complexidade da investigação do cérebro humano, no dizer poético, por mim roubado a Sherrington, “um tear encantado”, desde a cultura helénica aos nossos dias, tem despertado a atenção de filósofos e cientistas, acaba, uma vez mais, por ser enriquecido com o último livro de António Damásio supracitado.
Sobre este livro, que merece ser lido com tempo e devota atenção, não me sinto para já capacitado para emitir uma mera e apressada opinião, ainda mesmo num país em que toda a gente opina sobre tudo e sobre nada do alto da sua tribuna. Assim, cito apenas o que escrevi, decorria o ano de 1995, no “Correio da Manhã” (19/09/1995), justificado pela minha paixão por esta matéria que é o desbravar dos segredos que o funcionamento do cérebro encerra, e sobre o qual a professora de Filosofia do ensino secundário Regina Sardoeira (“O Independente”, 25/08/1995) pontifica atrevidamente : “”O dualismo cartesiano: eis o erro apontado - e parece- descoberto no século XX por António Damásio!”
E porque este novo livro de António Damásio traz para as luzes da ribalta cientifica novas e valiosas achegas, resolvi, em modesta contribuição, transcrever esse meu artigo fotografando o que escrevi, em Setembro do ano de 95 , intitulado “O erro de Descartes”. Ou seja, para não ser havido como um surfista arrivista que cavalga um onda ocasional!
P.S.: Verificando que a foto, pela sua falta de nitidez está pouco perceptível, transcrevo o artigo em causa. Assim:
“O ERRO DE DESCARTES
(Meu artigo publicado
no “Correio da Manhã”, em 19/09/1995)
Em 1987, a oito anos da publicação do ‘best-seller” de António Damásio, ‘O erro de Descartes, nos dias 18 e 19 de Novembro, eram publicados no ‘Diário de Coimbra’ dois artigos meus, respectivamente, intitulados, ‘Biologia e Filosofia antagonizadas’ e ‘No limiar da neurofisiologia’.
Rematava eu o segundo
artigo da forma seguinte: ´Não é o cérebro
corpo? Só o desconhecimento da fisiologia que preside ao funcionamento do
cérebro justifica o crime de tentar separar os órgãos que o vivificam , o animam e lhe dão o suporte sublime do
Pensamento: cérebro, coração, pulmões e músculos’.
Neles chamei a atenção para a subalternidade em que a filosofia cartesiana colocou o
corpo (‘res extensa’) relativamente à mente (´res cogitans’) . Essa realidade,
o da ditadura do espírito sobre o corpo, está presente na crítica perfeita que o
filósofo contemporâneo Jean François Lyotard (1988) lhe faz: “Toda a energia pertence ao
pensamento que diz o que diz, que quer o que quer, matéria é o fracasso do pensamento, a sua massa inerte, a
estupidez.
Destarte, a licenciada em filosofia, Regina
Sardoeira ( “O Independente”, 25 de Agosto de 1995), pontifica atrevidamente: “O dualismo cartesiano:
eis o erro apontado – e parece- descoberto no século XX por António Damásio!”
Para esta professora
de filosofia, o facto de nas suas aulas falar sobre o dualismo cartesiano parece-lhe condição mais que suficiente para que ele não subsista.
Não pensa assim Whewel quando nos diz que “ as teorias duma época
tornam-se os factos da época seguinte".
Estranha ela, para
mais, que as aulas de Filosofia não
sejam havidas como suficientes para terem o título do livro de Damásio como
“pompa ilusória e as quatro páginas com que ele o legitima insignificantes”.
Descartes quase
permanece impune no seu erro que a ciência se nos encarregou de denunciar e
para o qual chamei a atenção em
comunicação apresentada este ano num Congresso realizado em Março deste ano, em
que escrevi: “Fica a esperança, portanto,
que entre as conquistas do 3.º milénio muitos dos fantasmas que ainda assombram
o Corpo serão definitivamente esconjurados, De entre eles, numa neurociência inovadora e
descomprometida com a Filosofia –
existo, logo penso dando lugar a existo logo penso- da autoria de António Damásio, a trabalhar nos Estados
Unidos, e laureado em Portugal conjuntamente com sua mulher Hanna com o "Prémio
Pessoa/93", o da escravidão do corpo ao espírito”.
Para Delfim Santos
(1947), “no pensamento de cada filósofo
há algo de vivo e algo de morto e o morto é, quase sempre, o científico”. Segundo
Jean-Pierre Changeux (1983) Aristóteles, com lugar no pódio dos maiores
filósofos da humanidade, ao debruçar-se sobre
funcionamento do corpo humano ,
bralhou os espíritos durante séculos por considerar o cérebro como um sistema
de arrefecimento como a sede dos
sentimentos”. Ora, o coração é
apenas uma prosaica bomba muscular aspirante-premente que não ama e não odeia, não
rejubila e não sofre, não age e não sonha! Mas,
mesmo ainda hoje, na tradição gestual da representação
teatral é difícil de aceitar esta realidade que obriga até o próprio conhecedor
do sistema nervoso a levar a mão ao peito no
sítio em que o coração galopa em tropel para exprimir à sua amada o fogo
da paixão que lhe corrói as entranhas e as labaredas do amor que lhe enrubesce
as faces. De igual modo, pensa Georg Gusdorf (1977): “A biologia aristotélica só foi verdadeiramente ultrapassada depois
de um intervalo de 2.000 anos”,
Mas voltemos a
Descartes. Heresia das heresias, segundo Jacques-Michel Robert (1982), este filósofo “localiza o elo da ligação da alma com o corpo na glândula pineal”
que fisiologistas coevos de inspiração filogenética, confrontados com o seu
obscuro significado funcional disseram
ser o vestígio de um órgão de visão por nós herdados dos répteis. Saberes
recentes esclarecem , agora, que ela
segrega uma hormona (melatonina) necessária ao desempenho do ritmo biológico
dia-noite.
Assim, é minha
convicção que os neurofisiologistas continuam à espera de alguém que lhes desvende os segredos
ocultos por uma caixa negra (na analogia poética de neurofisiologista
Sherringtonm, "um tear encantado"), sintetizada de forma perfeita, em linguagem
metafórica muito expressiva, por David Kech (1979), académico muito respeitado
nas ciências do cérebro: “A neuro
fisiologia encontra-se num sótão escuro procurando um gato escuros sem ter a
certeza que ele lá está. Seu único indício são leves ruídos que parecem
miados”.
Devido a esta tremenda complexidade, esse alguém terá que ter a coragem de um William Harvey, inicialmente ridicularizado pela própria classe médica, por destruir, três século atrás, falaciosas teorias sobre o sistema circulatório, veiculadas pela Metafísica, tendo sido capacitado para anunciar jubilosamente os processos “circulação do pensamento”. O estudo deste notável fisiologista que lançou para o cesto dos papéis a teoria aristotélica sobre os fenómenos circulatórios, assumiu a importância de um tiro de partida para a corrida célere da Biologia contemporânea de olhos postos numa perspectiva molecular, depois de séculos de imobilismo dogmático.
Num interessante
artigo (Science & Vie, Outubro/94)
, é-nos mostrada a imagem do córtex frontal (obtida por uma câmara de emissão de positões), onde se metaboliza a
serotonina, um dos neurotransmissores das emoções, sob o título “A cólera em imagens”.
Sobre o futuro das
ciências da mente, o neurofisiologista Alcetis Berg não esconde o seu optimismo: “As imagens oferecidas pela Tomografia por Emissão de Positrões permitem detectar e
visualizar os processos bioquímicos cerebrais, através do consumo de glicose
pelas diferentes partes do cérebro. Talvez por seu intermédio possamos um dia
localizar com precisão os processos neurológicos que compõem o Pensamento”.
É, portanto, nesta
perspectiva que o livro ,“O erro de Descartes”, assume o inconcusso valor
de trazer luminosidade ao sótão escuro de que nos fala David Krech. Em
contrapartida, tentar demonstrar que a
dicotomia cartesiana não continua a
influenciar o nosso século é desmentido pelo historiador Robert Aron quando
responsabiliza a demasiada assimilação do cartesianismo pela actual fraqueza do
mundo ocidental, pese embora a informação colhida em Regina Sardoeira de que “Descartes e o Discurso do Método” têm sido
temas dos programas de Filosofia do
ensino secundário”.
2 comentários:
A filosofia chega a ter semelhanças com uma cobra que, faminta, toma a própria cauda por uma presa e se põe a engolir-se a si própria, anestesiando-se com o próprio veneno, senão quando já desenvolveu imunidade o que, nem assim, deixa de suscitar a questão: até que ponto se pode ser autofágico? Ou, a partir de que ponto a cobra se pode considerar engolida por si mesma?
O cérebro é um órgão muito especial que, segundo alguns neurocientistas, não evoluiu para encontrar a sabedoria, mas para sobreviver.
A maioria das pessoas, incluindo a maioria dos poucos filósofos que a história produziu (é possível saber os nomes e o que escreveram, sem ter uma grande memória), não pensam, verdadeiramente, não pensam, no sentido em que aquilo que percepcionam, leem, parece não lhes passar pelo cérebro, pelo menos por aquela parte do cérebro, que é suposto termos, "responsável" pela inteligência, ou pelos processos de inteligibilidade.
As "coisas" entram pelos ouvidos, pelos olhos, enfim, pelos sentidos e, muitas vezes, saem pela boca, ou pelas expressões gráficas, etc., sem terem indícios de haverem passado pelo tal cérebro.
Isto, assim sendo, nem é bom, nem mau, não é bonito nem feio, não está certo nem errado, não é melhor nem pior, mais ou menos verdadeiro do que se fosse diferente. Se for, é o que é e não tem de ser, nem pode ser outra coisa, pelo menos enquanto for assim.
Do seu comentário, extraio este pedaço de prosa:"A maioria das pessoas, incluindo a maioria dos poucos filósofos que a história produziu (é possível saber os nomes e o que escreveram, sem ter uma grande memória), não pensam, verdadeiramente, não pensam, no sentido em que aquilo que percepcionam, leem, parece não lhes passar pelo cérebro, pelo menos por aquela parte do cérebro, que é suposto termos, "responsável" pela inteligência, ou pelos processos de inteligibilidade".Aliás, O. Goldsmith, pontificou: "Não existe nada de absurdo que em alguma época não tenha já sido dito por um filósofo o que me parece bom porque da discussão nasce, uma vezes, a luz, outras um olho negro. No século XIX, as ideias eram discutidas ao faiscar das lâminas dos duelos à espada ao raiar da madrugada!
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