terça-feira, 21 de julho de 2020

NA CONTINUAÇÃO DO TEXTO "ESPERA-SE QUE OS PROFESSORES LEIAM LIVROS?!"

A professora a que me referi em texto anterior (Espera-se que os professores leiam livros?!) disse, na entrevista mencionada, mais do aquilo que foi repetidamente notado e criticado nos últimos dias na internet: que não era muito de ler livros. 

Pergunto-me, portanto, porque é que essa declaração foi tornada "figura", ao mesmo tempo que outras ficaram em "fundo". Na verdade, algumas destas suscitam (ou deveriam suscitar) igual preocupação, não como expressão que uma professora faz do seu do pensamento particular, mas como expressão que uma professora faz do pensamento social, que parece assumir como seu.

Atentemos em algumas destas declarações:
1. Revela a família, fazendo algo que certas correntes pedagógicas muito presentes na formação de professores advogam: estabelece uma ligação entre o "professor como profissional" e o "professor como pessoa";
2. Defende a mudança: "ainda há muito para mudar", afirma, não especificando as razões, sentido e substância do que deve mudar. É a "lógica" da mudança pela mudança, presente na generalidade dos discursos que apresentam a educação do Século XXI;
3. Diz: "é preciso ver e ouvir os miúdos, trabalhar mais a partir dos contributos e expectativas que eles têm. E ir mais ao encontro daquilo que dizem (...), os relatos orais, o que são as suas próprias conceções". Pois, saiba-se que esta é uma das principais orientações/recomendações internacionais e nacionais para a construção do currículo escolar;
4. Redefine a função da aula e o papel do professor: "não gosto da expressão dar aulas e ensinar. Eu não dou aulas, ajudo os miúdos a quererem aprender, a quererem saber mais", o professor é "alguém que fala menos e ouve mais, que dá mais espaço aos alunos para falar". É isto mesmo que se vê escrito e reescrito nos documentos curriculares, em trabalhos académicos e em toda a comunicação social. Mais, usa a mesmíssima expressão dos políticos, empresários, profissionais e especialistas: "é um paradigma de aprendizagem e não de ensino" (não posso, aqui, deixar de sublinhar "paradigma");
5. Complementarmente, tem presente a "retórica do futuro", localizando-a no professor, que "será o que nunca foi, liberto de todas as amarras". Digo eu, incluindo o conhecimento reconhecido, devidamente validado, que permite ensinar: "um professor do futuro é um professor mais livre, sem receitas";
6. Põe a tónica na instrumentalidade da aprendizagem: aprender é para “escrever uma carta”, “tirar a carta [de condução]”. Retomo, no essencial, os comentários feitos ao tópico 4;
7. Emprega expressões informais ("vai dizer coisas supergiras") e na moda ("é inspirador"), no tal discurso da educação do Século XXI assumido pelos agentes acima enunciados. E usa o facebook e o instagram, chegando, portanto, facilmente, aos alunos e às famílias... bem como a todos esses agentes;
Além disso,
elogia muito o Ministério da Educação que diz "teve pouco tempo para construir uma resposta (...) pude sentir a verdadeira intenção. Que era dar resposta a esses miúdos e essas famílias que não tinham escola e cujo contacto era mais difícil. Foi a que se conseguiu dar, e foi válida. A resposta foi de coração". 
E, como nesse discurso, denota, aparentemente sem consciência, contradições evidentes:
Diz "não sou uma leitora", mas também diz que está a tirar uma pós-graduação em "Livro infantil"; 
Diz, “não gosto da expressão dar aulas e ensinar”, mas também diz que é preciso "melhorar as metodologias de trabalho nas aulas".
Reforço a minha ideia: o "caso" da professora que tanto indignou o país em virtude de uma das várias declarações que fez no espaço mediático, está longe de ser um caso isolado, antes traduz o modo de pensar a educação que dá forma à escola pública. Ela "apenas" o assimilou, suponho que acriticamente, fazendo-o seu. É isto que acontece com tantos, tantos, tantos professores. 

9 comentários:

Rui Baptista disse...

Cada argumento /desculpa da visada sobre livros piora a sua situação, já de si insustentável. Há alturas em que o silêncio se impõe!

Pancinha disse...

Vejamos, já viram se a Formação que deram à dita professora e seus colegas foi "A Arte de Ensinar", independente, portanto, da matéria que se ensina, que tanto pode ser "Teoria da Evolução" ou "Criacionismo" ou "Geografia da Terra Plana" ou "Teoria Quântica", etc, etc, em vez de ser "Saber ensinar sobre o que se conhece criticamente"?

É que se calhar, o problema não está nela, que foi honesta, o que é louvável, mas sim, na maneira como estamos a formar e seleccionar os Professores ....

Umbigo disse...

Quem está a formar e a selecionar professores?
Não percebi o problema...

Pancinha disse...

Caro Umbigo, não olhe só para si!

Comece a investigar o Tema "Donde raio vêm os Professores que ensinam as nossas crianças e que quais os seus conhecimentos de base", a começar na Pré-Primária, claro, e indo por aí fora.

Com um pouco de sorte tem uma Tese de Doutoramento ...

Rui Ferreira disse...

Caro Pancinha, permita-me a questão: É de louvar a honestidade de se dizer "sou ignorante"?
Quanto à formação de professores, sim haverá sempre algo a corrigir. Mas saiba também que mesmo os melhores alunos universitários, aqueles que revelam uma formação sólida sobre as metodologias, quando chegam à escola são trucidados com uma narrativa que os deformam. Como não têm (nem tinham de ter) experiência ficam perigosamente permeáveis ao canto das sereias. Primeiro ainda havia por lá uns velhos muito bons que os corrigiam e faziam deles melhores profissionais. Agora, os poucos que ainda andam por lá trazem uma mordaça na boca.

Pancinha disse...

O que fiz notar, é que uma coisa é a "Tecnologia de Ensinar", outra "Saber a Matéria que se ensina", e a 1ª existe independentemente da 2ª, e vice-versa.
Quanto "os melhores alunos universitários".... "quando chegam à escola são trucidados com uma narrativa que os deformam", só pergunto:
- O que é que a Universidade fez por estes alunos?
- que apoio moral lhes deu?
- que "bater o pé" a esta situação a Universidade fez por eles?
- não se limitou a "aceitar" os alunos por eles produzidos, sem mais nada?

Umbigo disse...

Não sou capaz de olhar para mim. Sou demasiado grande.

Tese de pós-doutoramento "Donde raio vêm os Professores que ensinam os nossos Professores e quais os seus conhecimentos de topo", a começar pelos politécnicos, universisdades e indo por aí fora.

Anónimo disse...

Foi , exactamente, este tipo de professores que a "reforma" de MLR pretendeu formar. Os cursos de formação de professores são uma espécie de retorno às regentes escolares só que muitíssimo mais caros. Basta ver que os alunos de História e Geografia da UP têm menos horas das referidas disciplinas do que os alunos do ensino secundário. Eles são os primeiros a revelar que não sabem nada nem de uma nem de outra das disciplinas.

Pancinha disse...

Ok, cada um tem as suas limitações.

Proponho que, no seu caso, deite mão de binóculos, ou quiçá telescópio, para ver os problemas na base, ou mesmo dum simples espelho.

Quanto à Tese que propõe creio que basta observar as Universidades. Nada mui complicado, se bem que, talvez veja a luz condutora da situação.

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