"O combate civilizacional pelos livros e pela leitura"
Tomamos a liberdade de reproduzir abaixo o texto de José Pacheco Pereira intitulado O combate civilizacional
pelos livros publicado hoje no jornal Público) (Maria Helena Damião e Isaltina Martins).
"Estas últimas semanas passei pelos restos de
um mundo que foi o meu, mas que está a
acabar. A Livraria Leitura no Porto acabou.
Era seu frequentador desde os tempos em que
era Divulgação e tinha a loja da esquina da
Rua de Ceuta e a outra que depois foi dos
Livros do Brasil e o seu livreiro era Fernando
Fernandes, juntamente com o editor José
Carvalho Branco. Não era difícil perceber, nos
últimos anos, a sua agonia para quem, como
eu, já viu muitas livrarias moribundas.
O
stock começa a não ser renovado, as estantes
têm quase sempre os mesmos livros, as
novidades começam a ser sempre as mesmas
de todas as livrarias, até que começam
também a desaparecer. Não há dinheiro para
diversificar as encomendas ou as compras e
isso na Leitura era uma ruptura com a prática
de Fernando Fernandes de encomendar
sempre dois exemplares dos livros que os
professores da Universidade do Porto
mandavam vir, um para eles e outro para a
livraria.
Deixou há muitos anos de haver a
Galeria de Arte. Pouco a pouco fechou a
secção de livros artísticos, desapareceram
muitos livros estrangeiros e sobravam os chamados “monos”, mesmo assim aqueles em
que ainda ia descobrindo livros para comprar.
Havia uns restos de filosofia, alguns livros de
história, e para os professores uma boa secção
de pedagogia.
As montras pareciam sempre
iguais e os esforços dos empregados, e dos
clientes fiéis que ficaram até ao fim, não
chegavam para dar vida ao espaço. Quem
queria apresentar novos livros rumava para
outros locais menos fúnebres. E, mesmo no
anúncio da sua morte, alguns dos artigos
jornalísticos publicados eram tão
estereotipados e pobres, que era fácil
perceber que havia uma ruptura da memória
do papel da Leitura no Porto, desde os
tempos da resistência, nessa rua emblemática
onde havia tertúlias no Café Ceuta dos
oposicionistas do Porto, onde vários
destacados membros da oposição à ditadura
viviam ou tinham os seus escritórios
profissionais.
Foi na Leitura (e na
Divulgação) que vi muitas exposições,
recordo-me de uma de Tapiés, escrevi textos
para alguns dos catálogos, conheci Francisco
Sá Carneiro e vi pela única vez Aquilino
Ribeiro.
Primeiro, chegou um cabeleireiro ocupando a
parte “histórica” da livraria e ficou apenas a
nova parte na Rua José Falcão, para onde
antes se passava por uma espécie de túnel
com livros por todo o lado. Nada tenho contra
os cabeleireiros, mas aquele ficou-me
atravessado, sem culpa nenhuma. E depois
veio o estrangeirismo na moda Leitura Books
& Living, depois veio a doença terminal, e
depois veio a Morte.
Nesta mesma semana, fui pela última vez à Pó
dos Livros em Lisboa. Consegui a proeza de
entrar, ver com algum tempo tudo o que lá
havia e não conseguir encontrar nada para
comprar. Este para mim é sempre o sinal.
Mesmo no mercado dos livros na Estação da
Gare do Oriente consigo comprar dezenas de
livros de cada vez, fruto de uma outra
realidade do mundo dos livros: a caótica e
paupérrima distribuição, que deixa dezenas
de títulos de pequenas editoras por distribuir
e lá, junto dos comboios, estão como “monos”
invendáveis.
Comprei, na última vez, livros
sobre o PREC, sobre Maria Archer, sobre a
história fabril de Portugal, sobre história
cultural da música popular portuguesa, etc.,
etc. O mesmo me acontece com os livros
dessa empresa que não é uma editora, mas dá
o nome de Chiado aos livros que lhes pagam
para publicar. O que acontece é que há coisas
muito más, mas há também alguns ensaios e
estudos muito interessantes. Como de
costume não se encontram nas livrarias e só
nestes mercados e na Feira do Livro.
O panorama de muitas livrarias que ainda
sobrevivem é igualmente paupérrimo. O
espaço que têm para expor os livros — uma
aspecto fundamental de uma livraria — está
cheio da mesma tralha de papel pintado que
às centenas de títulos se publicam por mês.
Quase não há livros estrangeiros, a não ser as
mesmas traduções de Pessoa e Saramago para
os turistas, com o pretexto de que agora «toda
a gente manda vir os livros pela Amazon».
Isto é apenas uma parte da verdade, mas, de
novo, ignora-se o papel dos livros expostos
para uma espécie de browsing físico que
nada substitui.
Quem compra livros escolhe
muitas vezes pela possibilidade de encontrar
livros que não conhecia, ou mesmo quando os
conhecia por ter a possibilidade de os folhear.
Por exemplo, a Fnac e outras livrarias
colocaram nas estantes a edição original do
livro controverso sobre a Casa Branca de
Trump de Michael Wolff. Não tinha a
intenção de o comprar, porque pensava que
os extractos publicados me chegavam e acabei
por o fazer perante o livro físico. O desprezo
pelo objecto real em detrimento de um
hipotético objecto virtual é cada vez mais
acentuado e é suicidário nos livros e nas
livrarias.
O mercado pode ser mais pequeno,
mas é certamente constituído por gente com
mais recursos.
E depois há um lado negro pouco conhecido
que passa pela manipulação dos tops, pelas
relações preferenciais entre editores e
jornalistas da área da cultura da televisão,
rádio e jornais, que promovem apenas alguns
livros e alguns autores, há o amiguismo de
grupos intelectuais ou das cortes de A e B e C
que se autopromovem mutuamente,
colocando-se na moda, ou estando presentes
nos sítios certos e nos momentos certos, há
muitas formas de pequena corrupção nos
meios culturais que a ideia da intangibilidade
de tudo o que é da cultura impede de ser
escrutinado como devia.
Que algumas livrarias estão a morrer é
verdade, mas não são todas as livrarias, que o
mercado caminha para haver ou grandes
livrarias como a Fnac ou livrarias de culto
como a Letra Livre é verdade, que o mundo
das grandes cidades como Lisboa e Porto,
dominado pelos efeitos imobiliários do boom
turístico, é hostil ao mercado livreiro, tudo
isto é verdade. Mas também é verdade que a
edição de livros é muito má, que traduções,
edições, revisões, grafismo são pouco
cuidados e que os professores que iam
encomendar livros à Leitura hoje não
compram livros, nem na Amazon — como os
estudantes não os lêem.
O deserto livreiro que
são as universidades estende-se à sua volta
onde só os ingénuos pensam que sobrevivem
livrarias, quando o que está a dar são casas de
fotocópias.
Não há nada pior do que dar uma explicação
errada para o que se está a passar, quando
essa explicação é uma justificação derrotista
de aceitação de fim de um mundo melhor a
favor de um mundo pior. É que, meus amigos,
às vezes as coisas andam para trás.
Repetem-se quanto à morte das livrarias os
mesmos lugares-comuns sobre o arcaísmo
dos livros face às novas plataformas digitais,
às mudanças de hábitos de leitura
geracionais, etc,. etc.
Considero que quase
tudo isto é, para usar um eufemismo
americano, que é substituído nas televisões
por um apito, bullshit. Estas «explicações» destinam-se a encobrir muita incompetência,
muitos erros de gestão, muito facilitismo,
muito ir atrás de modas, muitas afirmações
que podem ser virais, mas que não são verificadas; e, pior que tudo, escondem um
problema maior, que é o da leitura, não no
mundo digital que para estas matérias eu não
sei o que é, mas o da ascensão de novas e
agressivas formas de ignorância, aquilo a que
tenho chamado a «nova ignorância», que
ganharam valor corrente na sociedade dos
dias de hoje e que a ajudam a caracterizar.
E
do mesmo modo que é suposto combater o
autoritarismo, a violência, o sexismo, o
populismo, e mais uma longa série de
“ismos”, é preciso combater essa degradação
daquilo que era um valor civilizacional (sim,
há valores civilizacionais...) que era caminhar
do fim do analfabetismo para uma
qualificação da leitura como modo de
dominar melhor o mundo e a vida de cada
um.
O problema não é substituir os livros por um
ecrã de um telefone inteligente ou de um
tablet — o problema é o mito perigoso de que
a «leitura», mesmo numa forma diferente,
está a emigrar de um meio para outro, porque
não está.
O que se está é a ler diferente, pior e
menos, como se está a «saber» demasiado lixo
— meia dúzia de performances rudimentares
com as novas tecnologias — e pouco saber. A
morte das livrarias é um aspecto desse
soçobrar no lixo, mas infelizmente estão
demasiado acompanhadas pela morte de
muitas outras coisas, do valor do
conhecimento, do silêncio, do tempo lento, da
leitura, da verdade factual, e da usura da
democracia."
"publicado hoje na revista Ípsilon (do Jornal Público)"
ResponderEliminarSeja-me permitido corrigir: não foi publicado no Ípsilon, mas no corpo principal do Público.
Raramente comento, mas para este artigo tenho de o fazer: José Pacheco Pereira tem inteira razão. No centro histórico de Coimbra acaba de anuncia o fecho a livraria alfarrabista de Miguel Carvalho. Neste caso não é só morte do livro é também a morte, lenta, de uma cidade. O livreiro resumiu: "Casei com esta cidade, mas é como se ela tivesse morrido de cancro. Vou para outra [Figueira da Foz)." A Câmara assiste impávida à morte gradual da Baixa de Coimbar e nem sequer repara que há um moribundo (para Miguel Carvalho, já defunto, talvez tenha razão). No POrto morreu a "Leitura, Books & Living" mas há vida na zona, em Coimbra morrem as leituras todas e há morte em toda a Baixa.
ResponderEliminarCarlos Fiolhais
Tem toda a razão. estudei em Coimbra e visitei a cidade no último fim-de-semana. A Rua Ferreira Borges é para turista ver e a Coimbra Editora,onde adquiri vários livros académicos ou não, é agora uma ourivesaria.
ResponderEliminarFui habituado a estudar pelos livros, em profundidade, horas a fio, refletindo e organizando, por mim mesmo, segundo os meus critérios, o conhecimento já de si sistematizado, ao critério do autor. Às vezes era um desafio, outras vezes, um trabalho aborrecido, e outras, uma descoberta para a vida, cujo prazer era indescritível pela revolução que operava nos meus referenciais e nos meus códigos de leitura e de compreensão das coisas.
ResponderEliminarEssa "corrida" de fundo só é possível através dos livros, e quando um bom livro nos cai nas mãos nada se compara ao privilégio de descobrir que temos inteligência suficiente para o apreciar.
E há livros de imenso interesse e valor, que até tivemos na estante, ignorados muitos anos, que lamentamos não ter lido antes...