segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Urbano Duarte

Uma das minhas felicidades, enquanto estudante, foi ser aluno de Urbano Duarte. Passaram muitos anos, mas continuo a pensar assim. Quando revejo todos os meus professores, Urbano Duarte está entre os primeiros.

Era um homem arguto, muito fino, com vasta cultura, atento aos tempos e à evolução das coisas; nunca ficou agarrado a fórmulas, nem a dogmas nem a ideias feitas. E, além disso, irradiava simpatia e tinha graça a falar e a responder, o que não é coisa pouca.

Possuía, acima de tudo, a enorme e rara qualidade de abordar os assuntos por todos os pontos de vista, de aceitar as opiniões alheias e de assim nos ensinar a pensar e a respeitar os adversários.

Sendo um homem de grande honestidade intelectual – coisa raríssima nos tempos que correm – foi, em plena ditadura, o meu grande mestre de democracia. Meu e de sucessivas levas de alunos do Liceu D. João III, em Coimbra.

E para os que pensam que a pedagogia é coisas de somenos, as aulas dele eram escolas vivas de uma pedagogia ativa, estimulante e muito formativa. Em todas as aulas éramos convidados a colocar questões para serem debatidas na aula – problemas nossos, que nos preocupavam, ou de que ao tempo se falava.

As coisas funcionavam do seguinte modo. Escrevíamos a questão num papelinho e púnhamo-lo em cima da secretária, antes da aula. É de calcular que aparecessem assuntos difíceis, às vezes provocadores, ou até “proibidos”. Mas para Urbano Duarte e, portanto, para nós, ali, não havia assuntos proibidos. Nunca houve.

Chegado à aula, baralhava os papelinhos que estavam em cima da mesa, pedia a um de nós para tirar três, ao acaso. Lia o primeiro, em seguida solicitava a opinião dos que quisessem contribuir para debater aquele assunto, e no fim dava a sua opinião. Encerrado a primeira questão, passava à segunda e procedia do mesmo modo. Quando se chegava ao terceiro tema já estávamos perto da hora, como se calcula, mas a aula tinha sido tão vivida e apaixonante que nos parecia sempre demasiado curta.

Mas se um dado tema não tinha tido a sorte de ser escolhido, o proponente podia sempre repeti-lo na aula seguinte, e na outra, até vê-lo tratado por todos. Em geral aceitava três opiniões para cada problema, para não se ficar todo o tempo num só assunto, mas éramos livres de debater com ele, no fim da aula, no corredor, ou até pela rua fora. Durante anos e anos assinou no Correio de Coimbra – de que era diretor - uma coluna, ao tempo famosa – Sintomas – que era uma janela semanal de ideias frescas, corajosas, informadas e honestas.

Atento aos sinais, preocupado em estimular os jovens, convidou-me um dia a colaborar no jornal, o que fiz, com muito gosto, durante anos. A outros fez o mesmo, como ainda há dias Carlos Fiolhais revelou no De Rerum Natura. É, pois, com um profundo sentimento de gratidão para com este homem exemplar, que me associo à homenagem que lhe prestaram no centenário do seu nascimento. Vem tarde – não pude participar por estar no estrangeiro - mas, como diz o povo, mais vale tarde que nunca.
João Boavida

3 comentários:

Anónimo disse...

Tenho quase a certeza de que no tempo do professor Urbano Duarte não havia a eleição do melhor professor do ano porque a dignidade e o prestígio social dos professores do liceu eram absolutamente incompatíveis com espetáculos degradantes de burros que correm atrás das cenouras que os donos lhes agitam à frente dos olhos.
Nesses tempos, não era obrigatório andar no liceu. A transmissão de conhecimentos literários e científicos aos alunos era a função principal dos professores do liceu. Eu apanhei alguns desses bons professores e tive o prazer de estudar pelos compêndios de Física do Rómulo de Carvalho, no tempo em que se aprendia a regra dos três dedos da mão direita que indicavam as direções e sentidos da velocidade da carga elétrica, do campo magnético e da força.
Os tempos agora são muito diferentes. Agora quem manda na escola são os alunos e os seus encarregados de educação. Convém não esquecer que, após a Revolução dos Capitães, em 25 de abril de 1974, os professores do liceu começaram a ser vistos como lacaios ao serviço da burguesia, que oprimiam os filhos da classe trabalhadora e, ainda por cima, tinham salários superiores aos dos professores primários que tinham optado por não entrar nesses antros vis dominados pelo grande capital que eram as universidades. Com estes pressupostos, a solução encontrada foi rápida e eficiente: os primários (acompanhados pelos educadores de infância!) subiram na carreira e os professores do liceu desceram!
Rómulo de Carvalho tomou a resolução imediata de pedir a reforma quando se deparou com a situação de um piquete revolucionário de alunos que, de vara na mão, controlavam a entrada dos professores no liceu, apesar de ter sido um dos que tiveram autorização de passar!
Eis-nos chegados à nossa época em que se entende que, dado que todo o conhecimento é gratuito e acessível através da internet, a função do professor já não é transmitir conhecimento, mas ensinar umas técnicas, mais ou menos misteriosas, que desenvolvem a empatia, o empreendedorismo e o espírito crítico dos alunos.
Assim, a possibilidade de virmos a ter novos bons professores implica que "professor" venha a ter um significado diferente no futuro!

João Boavida disse...

Caro Anónimo
É claro que nem todos os professores do liceu eram bons, no mesmo lote de professores desse tempo,no Liceu D. João III, havia um ou outro mais fraco, todavia o conjunto era excelente. Concordo que houve um processo de desvalorização comandado por estratégias político/sindicais que transformaram a classe numa frente política. Nunca interessou, no ponto de vista sindical, a qualidade científica e pedagógica como forma de valorização da classe, mas sim enquanto número para manifestações de rua e reivindicações com intuitos políticos. Como força ao serviço da Intersindical e do Partido Comunista a FENPROF tem sido da maior utilidade, já quanto à valorização dos professores a sua ação tem sido globalmente muito negativa. Penso até ter criado na população em geral uma certa aversão, que não existia, e que é injusta para a maior parte dos professores.

Anónimo disse...

Caro João,

Concordo que a apropriação do aparelho de estado, e dos sindicatos, levada a cabo pelos comunistas nos anos, já distantes, de 1974 e 1975 teve efeitos perniciosos na área da educação em Portugal, contribuindo para a desqualificação científica e pedagógica dos professores do liceu que viram o seu espaço profissional invadido por professores de trabalhos manuais, professores primários, oficiais desmobilizados do exército, retornados que deixaram os diplomas nas ex-colónias, jovens médicos, educadores de infância e muita outra gente revolucionária que era preciso recompensar com um lugar confortável no Estado. Passado algum tempo, organizaram-se, por todas as aldeias, vilas e cidades do país, grandes festas de homenagem aos Heróis do Povo que tinham sido os professores primários que, a bem da nação, agrediam com uma fúria selvagem os seus alunos menores.
Mas a degradação do ensino tem muitas outras causas. Por exemplo, toda a gente sabe que quando um aluno da escola pública não consegue uma média superior a 18 valores, que lhe permita entrar em Medicina ou Engenharia Aeroespacial, basta-lhe inscrever-se num colégio privado e, depois de pagar as suas propinas, se for preciso, a sua média até pode ultrapassar os vinte valores! Com valores tão elevados, mesmo que o sistema de ensino português seja avaliado pelas instâncias internacionais mais competentes na área da educação, os professore bons e as professoras boas só podem ser os dos colégios privados!
Todo este quadro degradante é público e notório, mas ninguém faz nada!
O Salazar obrigava os meninos queques dos colégios a irem prestar provas em instalações escolares do Estado.
Eu limito-me a comentar até que a cabeça me doa, mas estou a ficar cansado, preciso que me apoiem!

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