Minha recensão no último As Artes entre as Letras:
É um grande livro em dois
sentidos: pelo tamanho e pela qualidade. Saído entre nós em Setembro de 2017, mas,
como há muita gente da cultura distraída, praticamente não apareceu, como
merecia, nos habituais destaques do fim do ano. O título é “A Invenção da
Ciência” e o subtítulo, esclarecedor, é “Nova história da Revolução
Científica”. A Revolução Científica, na tese bem justificada do autor, situa-se
entre 1572, quando o astrónomo dinamarquês Tycho Brahe observou uma nova
estrela no céu (era o que chamamos hoje uma supernova, uma estrela não nova,
mas velha que explode de surpresa no céu) e 1704, quando o físico, e também
astrónomo, inglês Isaac Newton publicou o seu famoso tratado sobre óptica, no
qual expõe as conclusões de experiências que tinha efectuado décadas antes, sobre
as propriedades da luz, concluindo que as cores, por ele decompostas com a
ajuda de um prisma, eram inerentes à luz e não aos objectos. A observação e a
experiência, as duas servidas pelo raciocínio lógico (muito em particular pela
matemática), são os dois pilares da, como então se dizia, “nova ciência”, ou
como hoje se diz, da “ciência”, uma vez que a ciência tal como a conhecemos
teve a sua origem nesse período, o período de gigantes da ciência pois além de
Brahe e Newton brilharam, e entre outros, Galileu, Kepler, Descartes, Gilbert,
Harvey, Boyle, etc. David Wootton, professor de História da Ciência da
Universidade de York, no Reino Unido, enfatiza neste seu livro que, se a nossa
vida hoje é como é, tal se deve em grande medida à ciência que surgiu neste
período que convencionámos designar por Revolução Científica. Foi uma mudança
extraordinária, uma transformação da nossa maneira de ver o mundo que teve o
impacto que está à vista de todos.
O conteúdo do livro está meticulosamente
argumentado. Houve um período antes da Revolução Científica, que foi o tempo
das descobertas marítimas, que em boa parte foram obra dos portugueses, houve o
período da Revolução Científica, e houve finalmente o tempo posterior, onde se
assistiu às consequências da grande mudança. Como seria de esperar num livro de
história de 823 páginas, o conteúdo é erudito (e que grande erudição mostra o
autor parece que leu tudo!), mas, no entanto, a escrita é clara e fluente,
seduzindo o leitor que, sem temer o tamanho da obra, se abalance à leitura. É uma
obra da historiografia anglo-saxónica que prima pela clareza: o autor considera
o leitor inteligente e, para o convencer, usa um manancial de factos inteligentemente
encadeados por uma interpretação persuasiva. Wootton demarca-se claramente de
algumas teses pós-modernas, alicerçadas em concepções relativistas. É bastante salutar,
neste tempo impregnado não apenas pelo pós-modernismo, mas também (e o que é
pior) pela pós-verdade, ler uma obra honesta, baseada na investigação de fonte primárias
e secundárias, que só considera factos reais e não alternativos e não se deixa
levar por algumas das vozes que têm feito moda na pós-modernidade. Por exemplo,
a ideia do filósofo americano Thomas Kuhn, autor de “A Estrutura das Revoluções
Científicas”, que advoga a existência de períodos de estagnação científica, entrecortados
por revoluções como por exemplo a revolução quântica. Mas, de facto, Revolução
Científica houve só uma. A ciência tem sido desde ela um trabalho permanente,
um trabalho baseado num método então proposto. Wootton apresenta-nos com um pormenor
muito rico o tempo incrível e irrepetível no qual esse método ficou estabelecido,
quando se percebeu como é que se podia descobrir. Desde essa altura a
humanidade deixou de ser a mesma, pois ficou aberta a via da descoberta. A explosão
da ciência de que o nosso tempo é testemunho (nunca houve tantos cientistas
como hoje) começou entre o final do século XVI e o início do século XVIII
graças à nova forma de pensar dos referidos gigantes. A revolução quântica na
física, que Kuhn discute, é um resultado da Revolução Científica, tal como tinha
sido, por exemplo, a revolução darwinista. Wootton distingue a Revolução Científica,
de mudanças, ainda que significativas, de teorias na ciência. A Revolução
Científica foi profunda e mudou-nos a todos como, noutro plano, a Revolução Francesa,
uma transformação política e social rápida e violenta que veio apregoar a
liberdade e a igualdade, ou, mais próximo do plano da ciência, a Revolução Industrial,
que provocou uma explosão económica, isto é, a passagem, da pobreza para a
riqueza, ainda que mal distribuída. Tratou-se de inventar a ciência, como
noutras revoluções se tratou de inventar a igualdade ou a riqueza.
Ao serviço do seu argumentário, as
citações de Wootton são bem escolhidas, as ilustrações (algumas a cores, em extratexto,
bem escolhidas) elucidativas, as notas e referências, no fim dos capítulos e do
livro, numerosas e informativas. A tradução de Pedro Garcia Rosado é assaz
cuidadosa. Nada melhor do que deixar um parágrafo – escolho o parágrafo final por
ser uma súmula - para dar a saborear só não só estilo mas a mensagem do livro:
“A ciência – o programa de
pesquisa, o método experimental, a interligação da ciência pura e da nova
tecnologia e a linguagem do conhecimento revogável – foi inventada entre 1572 e
1704. Ainda vivemos com as suas consequências e parece provável que os seres
humanos sempre venham a viver assim. Mas nós não vivemos apenas com os
benefícios tecnológicos da ciência: o moderno modo científico de pensar
tornou-se de tal modo parte da nossa cultura que já é difícil pensarmos num mundo
que ficou para trás, e onde as pessoas não falavam de factos, de hipóteses e de
teorias, onde o conhecimento não assentava na evidência e onde a natureza não
tinha leis. A Revolução Científica tornou-se quase invisível por ter sido tão
surpreendentemente triunfante.”
A obra, com primeira edição em
2015, do prelo da editora londrina Allen Lane, veio prestar, através desta
edição em português, um benefício inestimável à cultura nacional, onde a A Temas e Debates prestou um serviço inestimável à cultura
portuguesa, ao publicar este livro, com um preço bastante acessível para o seu elevado
valor. A cultura, em particular, a cultura científica é um bem precioso, e é a
luz que nos pode guiar nesta época trumpiana cuja escuridão nos faz recear. Essa
luz foi acesa há cerca de três séculos. Façam o favor de ler “A Invenção da
Ciência” e digam depois se não se sentem mais iluminados.
1 comentário:
Não se pode confundir Revolução Científica com as diferentes revoluções políticas - dando sempre o merecido destaque à gloriosa manhã do dia 25 de abril de 1974, em Portugal - que têm ocorrido por esse mundo fora, desde o século XVI. Efetivamente, a Nova Ciência é um manancial de onde não param de jorrar novos conhecimentos e ideias sobre o mundo material, com inúmeras aplicações práticas que contribuem para o desenvolvimento das sociedades humanas, com destaque para a área do armamento nuclear, mas quem verdadeiramente faz girar tudo ainda é o dinheiro. Quando trouxemos pimenta e ouro para a Europa éramos contra a ciência, agora que já não temos dinheiro somos a favor, mas é tarde demais!
Enviar um comentário