sexta-feira, 14 de abril de 2017

A culpa é das estrelas?

Num encontro com alunos do ensino básico (organizado pela Rede de Bibliotecas Escolares), perguntei aos jovens que livros tinham lido. Vários referiram-me “A culpa é das Estrelas” de John Green, um “best-seller” que não conhecia. Pois fui ler e gostei. Bem escrito, com humor – na verdade o que os jovens devem ter gostado mais – e eles não lêem estes livros com os mesmos olhos dos adultos – e, não, não achei nem triste nem lamechas.

Para quem não saiba, o livro tem como heroína Hazel, uma jovem de dezasseis anos que tem um cancro da tiróide com metástases no pulmão e um namorado de dezassete, também com cancro, que conheceu num grupo de apoio, o qual acaba por morrer. As personagens têm aquele tipo de humor optimista e irónico que gostamos em Oscar Wilde e Mark Twain que nos pode reconciliar com a condição humana e o mundo, mas nem sempre... Foi uma pena que não o tivesse lido antes, pois poderia ter dito mais algumas coisas sobre como este livro nos pode fazer reflectir sobre o cancro, o que sabemos sobre esta doença e os medos que nos inspira.

Antes de mais é preciso notar, como diz o autor, que se trata de uma obra de ficção, na qual este nem sempre quis seguir os conselhos científicos que lhe foram dando. O cancro de que a heroína sofre, carcinoma diferenciado da tiróide, tem, em geral, diz a literatura, boas possibilidades de tratamento e, os cancros de tiróide, em jovens têm elevado grau de possibilidade de cura (99.7% sobrevivem mais de 5 anos, segundo os mais recentes números - ver abaixo). E têm aparecido novos medicamentos para os casos mais difíceis (por exemplo, a EMA aprovou o lenvatinib em 2013 - a FDA em 2015 – para os casos raros de carcinomas da tiróide resistentes a outras terapias). E há, claro, vários outros medicamentos e tratamentos, mas, em termos individuais e também estatísticos, como veremos adiante, há uma componente de azar e sorte.

É também de notar a envolvência de cuidados de saúde e o apoio aos doentes que se observa no livro. É certo que as coisas nem sempre correm bem e nem sempre as pessoas que trabalham em saúde lidam com perfeição com as situações humanas, mas a procura do controlo do sofrimento e a qualidade de vida que é oferecida aos doentes, são hoje muito mais elevados do que no passado. A Hazel tem à sua disposição analgésicos, oxigénio transportável e muitas outras coisas que aparecem de forma directa ou indirecta no livro. O medicamento que o autor declarou inventar para sua e nossa fantasia, o Falanxifor, não é um nome de um antitumoral genérico (este poderia terminar em mab, se fosse um anticorpo, tinib, se fosse um inibidor da tirosinaquinase, ou ainda em antrone, nercept, fulven, citabin, etc., sufixos de antitumorais) Este nome poderia, claro, ser o da marca do medicamento, mas o mais provável será o autor ter escolhido um nome não causasse confusão com nomes reais.

Dois artigos que sairam recentemente (Siegel et al. 2017 e Tomasetti et al. 2017) levantam algumas questões importantes sobre o cancro, mas é preciso ter cuidado com os mal-entendidos. O cancro é uma questão de sorte ou azar? Há riscos acrescidos? Estão a aparecer mais ou menos casos de cancro? Morre mais gente de cancro? Os novos tratamentos são uma ilusão ao serviço do lucro da indústria farmacêutica? Há distorções no mercado dos medicamentos?

A forma como fazemos as perguntas, condiciona quase sempre as respostas. Comecemos pelas duas últimas (de que os artigos acima não tratam). Não, os novos tratamento e medicamentos não são uma ilusão, mas os milagres são uma questão de fé. Para doenças como as escleroses, as fibroses, alguns tipos de cancro, a hepatite C, a hemofilia, certas doenças genéticas raras, etc., tudo o que se vai conseguindo é bom, mas é preciso mais. E é cada vez mais difícil e caro obter novos medicamentos. Eles vão surgindo a um ritmo médio de apenas trinta por ano, e isso é pouco. Milhares de investigadores nas universidades e em pequenas e grandes companhias vão fazendo descobertas fundamentais e importantes, mas os testes clínicos são tão caros, demorados e complexos, que quando os medicamento inovadores chegam perto do mercado, a maioria das pequenas companhias e as suas patentes são compradas pelas grandes companhis por milhões - não raras vezes vezes biliões - de euros! Tudo isso, claro, se reflecte no preço dos medicamentos inovadores e pode causar (causa certamente) distorções no mercado e na investigação que conduz ao desenvolvimento de novos medicamentos. Para as grandes companhias é actulmente mais lucrativo investir em medicamentos para doenças raras ou de paises "ricos",  do que em infecções de paises "pobres" que precisem de novos antibióticos, ou comprar medicamentos em teste com boas probabilidades de serem aprovados, do que iniciar novos projectos que têm grande probabilidade de falhar ou de não dar lucro. Mas, para os investigadores nas universidades, centros de investigação e pequenas companhias tudo isso é uma oportunidade! A investigação sobre doenças potencialmente menos interessantes para as grandes companhias, como a malária ou outras infecções, vai sendo mantida viva, pela investigação nas universidades e centros de investigação.

Mas voltemos às outras questões. Sim, actualmente morrem mais pessoas de cancro, mas apenas porque somos muitos mais no planeta! E, não, não morrem mais pessoas de cancro em percentagem da população. Todos os estudos (ver as referências) indicam que a incidência de cancro é, em geral, actualmente menor e a percentagem de sobrevivência é cada vez maior. E as crianças e jovens? Mais uma vez, os números dizem que a generalidade do número de cancros não está a aumentar e que a probabilidade de tratamento e cura aumentou claramente nos últimos anos.

É claro que à medida que se envelhece, a probabilidade de ter cancro aumenta, mas pode não se morrer do primeiro cancro, nem do segundo, talvez do terceiro, quarto ou quinto e, eventualmente, todos acabaremos por morrer, seja lá do que for. Claro que há um elemento de sorte ou azar, mas achar que não se pode fazer nada em relação a isso é muito enganador.

Sim, de acordo com o estudo de Tomasetti et al. (2017), cerca de dois terços das mutações que podem conduzir a cancros surgem por acaso e apenas um terço é devido ao aumento do risco. Mas, sim, os riscos acrescidos devido ao fumo do tabaco, a alimentação pobre em legumes e rica em carne e gorduras e outros riscos são também relevantes como referem os autores do estudo, assim como a prevenção e a intervenção atempada. Mais do que isso, mutações não é o mesmo que cancro.

Voltando ao livro. A culpa pode ser das estelas (chamando dessa forma o azar) em dois terços dos casos, mas para a maioria dos casos já existem os medicamentos e por isso a mortalidade média tem diminuido, assim como a qualidade de vida dos doentes tem aumentado.

A longo prazo estaremos todos mortos, escreveu Keynes. Todos, diz a Hazel no grupo de apoio: Chegará uma época em que todos nós estaremos mortos. Todos. (…) mesmo que sobrevivamos ao colapso do Sol, não iremos sobreviver para sempre. (...)

Numa anedota (irónica) que por acaso contei nesse dia aos alunos, uma idosa que assistia a uma palestra sobre astronomia, ouviu que o Sol iria acabar, mas não percebeu bem se seria  nos próximos 10 milhões ou nos pŕoximos 10 biliões de anos... Ah! 10 biliões!? Fico mais descansada... 

Referências
Siegel et al. Cancer statistics, 2017. CA Cancer J Clin. 2017; 67:7–30
Tomasetti et al., Stem cell divisions, somatic mutations, cancer etiology, and cancer prevention, Science 2017, 355:1330-1334
Walsh, M. Reports that cancer is ‘mainly bad luck’ make a complicated story a bit too simple (acedido 13 de Abril de 2017)

Referências adicionais
American Cancer Society, Global Cancer Facts & Figures, 3rd edition, 2015 
Siegel et al. Cancer statistics, 2016. CA Cancer J Clin. 2016; 66:7-30
Ward et al. Childhood and adolescent cancer statistics, 2014. CA Cancer J Clin. 2014;64:83-103

2 comentários:

Anónimo disse...

A culpa é d'algumas estrelas que andam por aí a dizer babuzeiras e a espalhar "sound bites" 'científicos'.

Medicamentos com 90 e tal de percentil de eficácia põem-me sempre de pé-atrás. Milhares de investigadores buscam apenas gambozinos, daí o preço elevado dos testes e toda a demora do benefício a bom preço, isso faz parte do pacto e do frenesim. A investigação ligada ao lucro e interesses obscuros mata a verdade e a simplicidade das soluções, há toda uma inversão do processo de investigação, onde ele passa a ser um fim em si próprio, sem nexo com a realidade.

O que é o cancro para si? O cancro É UMA FALÊNCIA na polarização celular (mitocondrial), tudo o resto são balelas. Claro que o cancro está a aumentar e a matar cada vez mais, tudo o resto são balelas estatísticas, "sorte ou azar" que maneira patética de justificar a ignorância! O que aconteceu à ciência?

Mutações, quais mutações? Quando falha o suprimento de polarização, as anomalias e asfixia celular é inevitável, só aí posso concordar com a frase - "mutações não é o mesmo que cancro" - pois não, mutação é um conceito falacioso que complica algo que é originalmente simples, demasiado simples para alimentar a indústria da investigação. Assim, continuamos com novos paliativos, evitando sempre chegar à solução.

Blá, blá, mas a verdade é dura como o caraças!!!

Sérgio Rodrigues disse...

Talvez o Anónimo queira explicar o que é a "polarização celular (mitocondrial)" e "o suprimento de polarização" e qual a "solução" que milhares de investigadores actuais e muitos milhares de outros, desde há mais de um século não encontram. De resto não digo mais nada sobre o conteúdo deste comentário que fala por si.
Para os outros leitores que aceitam a ignorância, tal como eu, mas querem saber mais - é disso que trata a ciência: reconhecer a nossa ignorância e procurar saber mais - reafirmo que sabemos hoje muito mais sobre o "cancro" e sobre os seus possíveis tratamentos do que há décadas.

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