quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Por um pacto de estabilidade no Ensino

De Maria do Carmo Vieira, uma Colega que muito estimo e prezo pelo valor e desassombro das suas opiniões, transcrevo o artigo de opinião saído hoje no Público

"O que eles amavam tão apaixonadamente nela 
[a Escola] era o que não encontravam em casa, 
onde a pobreza e a ignorância tornavam a vida mais 
dura, mais sombria, como fechada sobre si mesma."
Albert Camus 

De 1987 a 1989, na situação de licença sem vencimento, dirigi um pequeno Centro de Acolhimento para crianças maltratadas, dos zero aos 10 anos, situado perto das Olaias, e que criei com o apoio imprescindível não só da instituição suíça Sentinelles (Lausanne), fundada por Edmond Kaiser, já falecido, e cujo trabalho conheci num texto de Língua Francesa do 12.º ano, mas também do Centro de Estudos Judiciários, sendo seus directores primeiramente Armando Leandro e depois Laborinho Lúcio que acompanharam, em estreito envolvimento, todo o trabalho aí desenvolvido.

Não sendo objectivo do presente artigo dar conta desse trabalho, serve esta informação apenas para explicar a minha experiência também com crianças em idade escolar (ensino primário, agora 1.º ciclo) e cujos estudos eu própria acompanhei enquanto sua encarregada de educação, dada obviamente a ausência dos pais naturais.

De referir ainda que as crianças que iam passando pelo Centro até à sua adopção, o que aconteceu na maioria dos casos, e que haviam sido retiradas do seu ambiente familiar, devido a profundo abandono e indescritíveis maus-tratos, viveram também, com alguma regularidade, em minha casa, passando fins-de-semana e férias, pequenas e grandes.

Foi nesse contacto intimamente familiar que ganhei algumas certezas, dando-me conta de que as crianças, independentemente de pertencerem a um ou outro estrato social, têm todas as suas capacidades em estado de alerta e basta um estímulo para que a resposta seja quase sempre imediata.

Poderão exigir mais trabalho, mais treino, mais atenção, mais compreensão, sobretudo quando em casa lhes falha, infelizmente, esse diálogo e essa preocupação, mas o que as crianças certamente não precisam é de que lhes facilitem tudo, de que lhes ofereçam a dita “felicidade”, determinando que o seu esforço não seja posto à prova, que a sua curiosidade recue em lugar de progredir e que não criem hábitos de trabalho.

Árduo foi também, nessa altura, e muitas vezes em vão, o tentar explicar a alguns professores que aquelas crianças não precisavam que se apiedassem delas face ao que já tinham vivido, inculcando-lhes inadvertidamente esse nocivo sentimento de auto-piedade que anula o esforço e alimenta a resignação e, quantas vezes, uma revolta estéril; o que se exigia era um acompanhamento sério e responsável dentro e, naturalmente, fora da escola e nesta última situação me empenhei, bem como as duas colegas que viviam com os meninos, no Centro de Acolhimento, aliás, com capacidade apenas para receber 6 crianças, e que por vontade nossa nunca foi sinalizado com qualquer nome que o identificasse como Centro.

Era ali a sua casa. E isso era o mais importante. Ali estudavam, normalmente acompanhados por um adulto, ali brincavam, ajudavam na lida da casa, faziam recados, tinham os seus amigos, até que um dia partiam e deixavam saudades.

Não é por se defender exaustivamente a inclusão que ela se torna uma realidade, nem é por se defender o óbvio, ou seja, a necessidade de precocemente atalhar as dificuldades dos alunos que a situação se resolve.

As ideias são justas, mas só poderão efectivamente concretizar-se se houver vontade e seriedade políticas para as pôr em prática com eficácia, o que não tem acontecido com os diferentes governos, de esquerda ou de direita, sempre apoiados por especialistas que endeusam as teorias que defendem, sem a preocupação de ouvir quem trabalha na Escola.

Não é deixando passar um aluno que não sabe minimamente ler, por exemplo, que um professor o ajuda, antes o trai porque se desresponsabiliza profissionalmente e o entrega à desmotivação que acabará por acontecer, mais tarde ou mais cedo, por acumulação de dificuldades, todas elas resultantes de não ter aprendido a ler de forma satisfatória.

Parece óbvio, mas o certo é que se mantém a ausência de um debate sério sobre o Ensino, nele incluindo necessariamente a formação de professores, debate esse que deveria implicar forçosamente um entendimento de médio/longo prazo entre todos os partidos, depois de ouvida a comunidade escolar, ao invés de esta se sujeitar ao capricho dos vários governos e às mudanças daí decorrentes que a desestabilizam, conforme temos verificado, precisamente porque não trazem em si soluções claras e duradouras.

Em suma, aquilo a que temos vindo a assistir no Ensino resulta por um lado, do trabalho da Direita apostada ostensivamente na defesa da Escola Privada e no abandono e desmantelamento da Escola Pública, e por outro, da Esquerda, em que ideologicamente me revejo, mas cuja postura lamento pelo fanatismo de um triste discurso miserabilista, que inclui a facilidade e que, paradoxalmente, contribui para a ausência de futuro daqueles que pretende defender, vislumbrando a igualdade na ignorância que fomenta.

4 comentários:

Fernando Caldeira disse...

“Não é deixando passar um aluno que não sabe minimamente ler, por exemplo, que um professor o ajuda, antes o trai […]”

Só para dar um exemplo. Quem, como eu, foi confrontado com o facto de ter alunos com 16 anos, a quem foi reconhecido poderem frequentar o 8º ano, mas que não sabiam ler (em sentido literal: eram capazes de ler palavras com duas ou três sílabas, como “para”, “batata”, ou similares, mas totalmente incapazes de ler palavras como”, por exemplo, “características), compreende que Maria do Carmo Vieira designe por TRAIÇÃO aquilo de que os alunos foram vítimas. Com efeito, para quem tenha alguma experiência da vida real e académica e tenha também alguma sensibilidade, não será difícil imaginar o constrangimento e o verdadeiro sofrimento que era (e será para muitos que poderão agora estar nessa situação), assistir, durante 90 penosos minutos, diariamente, a algo que lhes era completamente estranho e que não entendiam, simplesmente porque não podiam entender…

Anónimo disse...

Resolução da Assembleia da República n.º 17/2016
Abertura de um processo de debate com vista à definição
de objectivos para uma real e profunda reforma curricular
https://dre.pt/application/conteudo/73357879

Fernando Caldeira disse...

Adivinha-se que irão começar por alterar profundamente os programas de Português, Matemática e Física. No Português, satisfazendo a vontade da APP, reduzir a importância dos clássicos e, possivelmente, voltar ao estudo de regulamentos de concursos televisivos; na Matemática, acabar com a influência da SPM, nada de muitos cálculos, nada de “complicações”; e a Física terá de acompanhar estas alterações se não quiser continuar a ser uma das disciplinas com pior média.

Francisco Domingues disse...

Fui professor durante 40 anos e, mesmo leccionando, sempre tive em conta as virtualidades do sistema de ensino, quando estudei, nos anos 50/60, com exames da quarta classe, no 2º ano do ciclo, no 5º ano, no 7º ano. Eram momentos que nos obrigavam a estudar mais, a rever matérias anuais ou de ciclo, a fazer resumos, aprendendo a distinguir o essencial do acessório. Sempre me bati por que, em qualquer reforma, se mantivessem as boas práticas de exigência no saber ler, escrever e contar, para poder, depois, avançar para matérias mais exigentes e complicadas. Mas os nossos "sábios" dirigentes não souberam aproveitar o que de bom ou muito bom havia, nas reformas que implementaram. Foi sempre a ganância de mudar, fosse embora para pior! Foi/é pena! É que se perdem muitos valores, a nível da aprendizagem e do necessário amor à Pátria e à sua língua, bem documentada nos clássicos. Os franceses ainda não abdicaram de Corneille, Racine, Molière ou... Camus. Infelizmente, avizinham-se, pela amostra insensata de acabar com os exames, mais mudanças sem nexo, sem fundamento, sem conteúdo. Quem sofre e quem fica prejudicado? - Alunos e professores. O mais grave é que "eles" ordenam e a "malta" tem de obedecer. Uma pseudo-democracia, está visto!

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