Minha intervenção no Congresso sobre o Padre António Vieira no sábado passado na Universidade de Coimbra:
O Padre António Vieira (1608-1697) não
foi decerto um cientista. Mas conhecia suficientemente bem a ciência da sua
época, a brilhante época da Revolução Científica onde pontificaram nomes como
os de Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1643-1727), pela preparação
que adquiriu no Colégio da Bahia dos jesuítas como pelas numerosas leituras que
efectuou ao longo da sua extensa vida (citou, nos seus escritos, entre outros
Nicolau Copérnico, Tycho Brahe, Johannes Kepler e René Descartes). Acima de tudo procurava extrair exemplos da ciência
para o seu discurso catequético e profético. Mas forneceu também algumas contribuições
para a ciência ao deixar registos de observações de cometas e de outros eventos
astronómicos.
No discurso de Padre António Vieira coexistem referências a autores antigos,
a Aristóteles que ele aprendeu como era regra nas escolas jesuítas, e a autores modernos. A sua presença na história
da ciência em Portugal começa por se justificar por ter sido um dos primeiros a
referir-se, ainda que indirectamente, à obra Discours de las Méthode (1637) de René Descartes (1596 - 1650). No
século XVII, o arco-íris era considerado “um
dos principais ornamentos do trono de Deus” e, conforme está no Génesis, o sinal da Velha Aliança que
Deus tinha celebrado com os homens após o Dilúvio. Mas Descartes, embora não
tendo sido o primeiro a fazê-lo, apresentou num apêndice intitulado Les Métheores no Discours de la Méthode
uma descrição científica do arco-íris, como a refracção e reflexão da luz solar
em gostas de água. Portanto, o fenómeno não passava de uma imagem da luz solar
vista pelos olhos humanos, de certo modo uma ilusão. Num dos Sermões do Santíssimo Sacramento (in
Obra Completa do Padre António
Vieira, Parenética, tomo II, vol. VI, dir. José Eduardo Franco e Pedro
Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2014), lido em Lisboa, em 1645, apenas oito anos após
a publicação do revolucionário livro de Descartes, o Padre António Vieira diz:
“Na íris ou arco celeste, todos os
nossos olhos jurarão que estão vendo variedades de cores: e contudo ensina a
verdadeira Filosofia que naquele arco não há cores, senão luz e água”.
Mais tarde, no Sermão da Segunda
Dominga da Quaresma (in Obra Completa do Padre António Vieira, Parenética,
tomo II, vol. III, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo
de Leitores, 2013), pregado
na Capela Real de Lisboa em 1651, Vieira afirma:
“Isto que chamamos céu é uma mentira
azul e o que chamamos arco-íris ou arco-celeste, é outra mentira de três cores”.
Por outro lado, no Sermão da Quinta
Quarta-feira da Quaresma (in Obra
Completa do Padre António Vieira, Parenética, tomo II, vol. IV dir. José
Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2013) de 1669, considera o arco-íris
como um fenómeno originado pela refração da luz, como explicou Descartes:
“O rústico, porque é ignorante, vê
muita variedade de cores no que ele chama Arco da Velha [Velha significa Velha
Aliança]; mas o filósofo, porque é sábio
e conhece que até a luz engana (quando se dobra) vê que ali não há cores, senão
enganos corados e ilusões da vista”.
Por outro lado, o Padre António Vieira, embora conhecendo a tese heliocêntrica do astrónomo polaco
Nicolau Copérnico (1473-1543), publicada em 1543 (De revolutionibus orbium coelestium, “Da Revolução dos
orbes celestes”), e defendida muito mais tarde por Galileu, não a sustentou, como aliás seria
de esperar. Sobre o sistema copernicano, Vieira escreveu no Sermão do Primeira Dominga do Advento (in Obra Completa do Padre António Vieira, Parenética,
tomo II, vol. I, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de
Leitores, 2013):
“Copérnico, insigne matemático do próximo século, inventou um sistema do mundo, em que demonstrou, ou quis demonstrar (posto que erradamente), que não era o sol o que se via e rodeava o mundo, senão que esta mesma terra em que vivemos, sem nós o sentirmos, é a que se move, e anda sempre à roda. De sorte que, quando a terra dá meia volta, então descobre o Sol, e dizemos que nasce, e quando acaba de dar a outra meia volta então lhe desaparece o Sol, e dizemos que se põe. E a maravilha do novo invento é a suposição que dele corre todo o governo do universo, e as proporções dos astros e medidas dos tempos, com a mesma pontualidade e certeza com que até agora se tinham observado e estabelecido na suposição contrária”.
Repare-se, apesar do erro que encontra em Copérnico, na sua expressão admirativa do conceito
copernicano: “a maravilha do novo
invento”. No Sermão da Dominga Décima Sexta
(post Pentecosten)
(in
Obra Completa do Padre António Vieira,
Parenética, tomo II, vol. IV, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa:
Círculo de Leitores, 2014),
Vieira esclareceu que Copérnico estava errado por contrariar as Sagradas
Escrituras:
“Opinião foi
antiga de muitos filósofos, que não era o Sol o que se movia e dava volta ao
mundo, senão que permanecendo sempre fixo e imóvel, esta Terra em que estamos é
que sem nós o sentirmos se move e nos leva consigo (...). Mas esta opinião ou
imaginação matemática, assim como ressuscitou em nossos tempos, assim foi
condenada como errónea, por ser expressamente encontrada com as Escrituras
divinas”.
Em Portugal, as ideias heliocêntricas, embora tivessem sido logo no século XVI do conhecimento de Pedro Nunes, demoraram muito tempo até encontrarem acolhimento generalizado. Ainda em finais do século XVIII eram vistas com reticências em Portugal..
Contudo,
Vieira foi moderno em muitos aspectos. Viajante por várias vezes ao Brasil
e excelente observador da realidade dos
trópicos, apercebeu-se da extraordinária mais valia que constituíam as
observações dos Portugueses de novas terras, novas espécies, novas gentes e
novas culturas para o alargamento do conhecimento humano. O conhecimento
empírico passou a contrapor-se, nos séculos XV e XVII, ao saber das antigas
autoridades. No Sermão da Terceira
Dominga do Advento (in Obra Completa do Padre António Vieira, Parenética, tomo II, vol. I, dir. José
Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2013):
“Nenhuma coisa houve
mais assentada na Antiguidade, que ser inabitável a zona tórrida; e as razões
com que os filósofos o provaram, eram ao parecer tão evidentes, que ninguém
havia que o negasse. Descobriram, finalmente, os pilotos e marinheiros
portugueses as costas da África, e souberam mais e filosofaram melhor sobre um
só dia de vista, que todos os sábios e filósofos do mundo em cinco mil anos de
especulação. O discurso de quem não viu são discursos, os discursos de quem viu
são profecias”.
Um bom
exemplo da contraposição entre o saber antigo e moderno é o caso da existência
de seres humanos nos antípodas. Lê-se nas Esperanças de Portugal,
quinto Império do mundo (in Autos do
Processo da Inquisição, Obra Completa do Padre António Vieira, Profética, tomo III, vol. IV, dir. José Eduardo Franco e Pedro
Calafate, Lisboa: Círculo de Leitores, 2014)
que os Portugueses sabiam mais sobre o assunto do que os antigos:
“Já disse que
acerca da zona tórrida e dos antípodas ensinaram os pilotos portugueses ao
mundo, sem saberem ler nem escrever, o que não alcançou Aristóteles, nem Santo
Agostinho pela diferença dos tempos; e sendo os tempos, como confessam os
mesmos padres, o melhor intérprete das profecias, bem pode acontecer sem
maravilha e cuidar-se sem presunção, que um homem muito menos sábio possa
atender, depois do discurso de
largos anos e sucessos, algumas profecias que os antigos, sapientíssimos e
santíssimos, por falta de notícia não declararam nem alcançaram.”
Na História
do Futuro (in Obra Completa do
Padre António Vieira, Profética,
tomo III, vol. I, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa: Círculo de
Leitores, 2014), reiterou a
mesma ideia, glorificando os feitos dos Portugueses:
“É porventura o
saber e dizer património só da Antiguidade [...]? São os Antigos como os
cântaros de Saresstana que depois de cheios, parou a fonte milagrosa e não
correu mais óleo? Houve neste grande oceano de ciências alguma nau Vitória que
desse volta a todo o mar? Ou algum Gama que, passado o Cabo da Boa Esperança, a
tirasse de todos os outros de
novos descobrimentos? E se depois deste famoso círculo do Universo, ainda ficaram
mares e terras incógnitas que prometem novas empresas e novos argonautas, que
será na esfera da sabedoria e da verdade, cuja infinita circunferência só a
pode alcançar [...]. porque não quererão os adoradores ou aduladores da
Antiguidade que, ainda depois de tanto dito, haja mais que dizer, e depois de
tanto escrito, haja mais que escrever, e depois de tanto estudado e sabido,
haja mais que estudar e saber?"
Referências:
- Rómulo de Carvalho, Astronomia em Portugal no século XVIII, Lisboa:
Instituto de História e Cultura Portuguesa, 1985.
- René Descartes,
Discours de la Méthode
- Ivan Lins, O Padre Antônio Vieira e
a "História das Idéias no
Brasil" do Professor Cruz Costa, Revista
de História, USP, v. 13, n. 27 (1956), 149-175,
- Sezinando Luiz Menezes e Célio
Juvenal Costa. Sobre
cometas e arco-íris: Antônio Vieira, os jesuítas, o conhecimento revelado e a ciência moderna, História Unisinos 16(3): 369-378, Setembro/Dezembro 2012.
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