That best part of a good man’s life,
His little, nameless, unremembered acts
Of kindness and of love.
Wordsworth
Acabo de ler, com um arrepio de emoção, o livro In Spite of All, dedicado pelo poeta Luís Amorim de Sousa à memória do seu amigo e grande poeta Alberto de Lacerda. O livro recorda as últimas horas de vida do autor de Exílio, em Londres, e a saga que se seguiu, para a recuperação do seu espólio apocalíptico, por entre os labirintos kafkianos da burocracia das heranças e dos obstáculos piramidais que a banca põe à vida dos homens.
A dedicação, diria mesmo: a devoção, a coragem crua, perante uma inconcebível montanha de dificuldades e de custos, postas em movimento por uma amizade que não é deste mundo, visando, contra todas as probabilidades, salvar um espólio precioso, mas caoticamente amontoado e entregue à voracidade dos bichos – constitui uma narrativa a um tempo exemplar e épica.
Pouco antes de morrer, Montherlant, esse homem áspero e, sob muitos aspectos, de trato difícil e mesmo intimidante, contava que, encontrando-se hospitalizado e em estado grave, se viu assiduamente visitado por uma jovem que não conhecia e que não era literata, a qual percorria o hospital com o fim único de amenizar um pouco, com “o leite da bondade humana” (Shakespeare, Macbeth), o sofrimento e a solidão dos sofredores e dos sós.
Tocado e surpreendido por tanta devoção e desinteresse, o austero criador de Le Maître de Santiago anotou no seu carnet: “Afinal, a bondade existe.”
Após a leitura deste livro de Luís Amorim de Sousa, apetece-me dizer ao mundo, para que conste: “Afinal, a amizade existe!” Só o não digo porque estaria a ser injusto ao insinuar que só agora o descobri: neste crepúsculo da minha vida, já há algum tempo confirmei o que antes descobrira, com emoção e gratidão: que a amizade existe, de facto, e que é um bem muito mais precioso do que a inteligência ou o talento. Quando, com estes, se combina, tanto melhor, mas ela, por si só, vale e cintila.
A bondade une, a maldade separa – notava Huxley. A bondade, a amizade operam milagres de que a inteligência, por si só, não é capaz. Este livro de Luis Amorim de Sousa é, sem pretender sê-lo, um verdadeiro breviário da amizade. Amizade em acto, em exercício profundo, dilacerante, e visando um alto e teimoso propósito: salvar da destruição e do oblívio manuscritos, cartas, agendas, papéis preciosos, obras de arte coleccionadas ao longo de uma vida, com gosto, com carinho, com sacrifício, em mais de um continente, por um grande escritor português. Tudo atulhado à balda, infernalmente amontoado e comprimido num apartamento minúsculo, em Battersea (Londres), na saleta de estar, no quarto devorado por livros e jornais, no corredor intransitável, sem ar respirável e sem luz que alumiasse caminhos, tudo atraindo, goticamente, a bicheza que devora e destrói.
O resto – centenas de caixas, dispersas por armazéns e sempre à beira do desaparecimento, por falta de pagamento (a poesia rende pouco e havia sempre uma preciosidade cuja aquisição diferia perigosamente a liquidação da factura do espaço de armazenagem…).
Em cima de tudo isto, compondo uma tempestade perfeita, um testamento encafuado numa caixa de um banco de endereço desconhecido e cuja chave se extraviara por completo. A situação irremediavelmente perversa, o desafio total à determinação total. Quem quer desistiria, a bem da sanidade mental.
Mas o Luis pertence à classe dos loucos sublimes: com uma idade em que a pedalada já claudica e o fôlego vai faltando, amarrado a um prazo apertadíssimo (a parte do espólio precioso trazida de Boston para Londres começara já a ser removida do armazém por “poética” falta de pagamento…), vivendo em Cascais e tentando, em Londres, uma repesca informal e urgente, para não dizer impossível, sem saber bem onde colocar, em Portugal, as centenas e centenas de caixas de um acervo fenomenal (em cartas preciosas, em para cima de um milhar de poemas inéditos, em obras de arte de Paula Rego, Vieira da Silva e tantos outros pintores de excelsa qualidade espalhados pelo mundo que o Alberto percorrera, habitara e amara), Luis Amorim de Sousa, pelo império de uma teimosia desvairada que se não rendeu nunca ao pragmatismo do bom senso, “preferiu”, com singularíssima falta de senso, apostar na improvável vitória – e ganhou.
O espólio valioso veio mesmo para Portugal, salvo e entregue à grande generosidade e abertura da Fundação Mário Soares, que o acolheu, limpou, triou, classificou e catalogou, salvando-o e permitindo ao amigo do poeta falecido um empenhado e persistente estudo e divulgação dele, em Portugal, Inglaterra e Estados Unidos.
Vale a pena, garanto-vos, ler esta narrativa empolgante de uma odisseia altamente improvável, mas que aconteceu. O livro – In Spite of ALL – foi escrito em inglês, para gente de língua inglesa. Mas merece – e exige – uma tradução em português. Tanta coisa, entre nós, se perde, extravia, desaparece, por desleixo, por birra, por pura estupidez de quem herda! Porque dá trabalho, porque os herdeiros se não entendem e a ganância se sobrepõe ao desejo de preservar a obra e a memória. Que de espólios valiosos se arrastam por aí, se dispersam, se vão vendendo ao desbarato, em leilões que os tresmalham, ou se entregam (parte deles) à voracidade dos bichos e do tempo!
No final do seu comovido relato, Luis Amorim de Sousa conclui como quem respira, de alívio e contentamento: “A maior parte do espólio do Alberto já foi doada à Biblioteca Nacional de Portugal. A sua prodigiosa colecção de discos LP foi doada à Fundação Mário Soares, onde a sua pormenorizada catalogação estava em curso. (…)
A memória de Alberto está a ser honrada. Têm sido desencadeadas acções em Boston, Lisboa e Nova Iorque. Têm-se promovido exposições e leituras de poesia. Publicado livros e catálogos. A sua obra tem tido novas traduções. Têm sido emprestadas obras de arte. A celebração continua.” Bem está o que bem acaba”.
Depois de mil angustiantes peripécias, Ulisses chegou, finalmente, a Ítaca.
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