domingo, 10 de janeiro de 2016

FALANDO COM D. MANUEL II


Texto recebido do Prof. Galopim de Carvalho:
SOBRE AS VARIAÇÕES DO NÍVEL DO MAR 
(Do meu livro “CONVERSAS COM OS REIS DE PORTUGAL”,  Âncora Editora, 2013).
O cenário desta conversa ficcionada foi o Museu Geológico instalado no segundo piso do velho convento de Nossa Senhora de Jesus da Ordem Terceira de S. Francisco, em pleno coração do centro histórico de Lisboa. Esta resistente estrutura museológica do Laboratório Nacional de Energia e Geologia nasceu em 1857, com a criação da Comissão Geológica, a partir dos exemplares recolhidos pelos pioneiros da Geologia portuguesas, Carlos Ribeiro, Nery Delgado e Paul Choffat, entre outros. Repositório nacional de colecções de referência, continua aberto ao serviço da comunidade científica, nacional e estrangeira, e ao público em geral.
Em 1918, esta Comissão deu lugar aos "Serviços Geológicos de Portugal", prestigiado organismo que, em 1993, se transformou no Instituto Geológico e Mineiro. Em 2003 teve lugar nova reestruturação, e este Instituto foi extinto, passando a integrar o Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação. Esta incompreensível e lamentável decisão do governo de então tem explicação na falta de cultura geológica dos seus elementos, característica, aliás, da maioria dos portugueses, incluindo os que nos governam e desgovernam. Depois de muita contestação por parte da comunidade dos geólogos portugueses, os saudosos e prestigiados Serviços Geológicos de Portugal estão actualmente integrados no Laboratório Nacional de Energia e Geologia.
No final daquela tarde iria ter ali lugar uma conferência e eu tinha chegado umas duas horas antes para ver com atenção o material exposto na grande sala de Arqueologia pré-histórica, com um acervo de mais de 100 000 peças cobrindo, praticamente, todas as etapas cronológicas e culturais entre o Paleolítico inferior e o período Lusitano-Romano. A certa altura dei-me conta de alguém que se aproximava de mim. Era um cavalheiro, na casa dos 40 anos, muito bem vestido, ao estilo da moda masculina dos anos 30 do século passado.
- A concepção destas salas, deste mobiliário e o modelo expositivo ao estilo do século XIX, conferem a este museu particular importância patrimonial. – começou por dizer o recém-chegado.
- É essa também a minha opinião e de muitos especialistas em museologia, nacionais e estrangeiros. - Respondi, enquanto procurava identificá-lo e acrescentei: - Aliás, esta é a sala de Paleontologia e de Estratigrafia. São duas relíquias da museografia desse tempo.
- Sou - disse ao apresentar-se - ou melhor, fui o filho mais novo do rei D. Carlos de Bragança e da rainha D. Amélia de Orleães. Sobrevivi ao atentado que vitimou o meu pai e o meu irmão e herdeiro do trono, D. Luís Filipe.
- Confesso que não vos reconheci. Estou habituado às aparições de muitos dos vossos antecessores, mas nunca assim, trajados à civil. Todos eles me apareceram nas suas vestes imortalizadas nos respectivos retratos.
- Se os responsáveis deste museu se descuidarem, esta gente do Governo acaba com ele enquanto o diabo esfrega um olho. Julgo saber que o seu colega Magalhães Ramalho tem sabido resistir a essas e outras tentativas.
- Isso é verdade! E nessa resistência sempre contou com o meu apoio. Que eu saiba, já houve várias tentativas nesse sentido.
- A implantação da República fez-me sair de Portugal com pouco mais de vinte anos e o resto da minha curta existência vivi-o em Inglaterra como um cidadão praticamente anónimo.
- O vosso reinado foi de pouco mais de dois anos.
- Sim, precisamente, entre 1 de Fevereiro de 1908 e o 5 de Outubro de 1910. Não deu para fazer grande coisa. A marcha dos acontecimentos a caminho da República era imparável. Os homens que estavam à frente desse movimento eram cidadãos de enorme e reconhecida craveira intelectual e moral. Com honrosas excepções, nada que se compare ao cinzentismo e oportunismo de muitos dos políticos de hoje.
- E a que devo esta vossa aparição, agora e aqui, neste local?
- Influenciado por meu pai, sempre gostei de oceanografia, e um dos problemas que mais me intriga é o das subidas e descidas do nível do mar. Acompanhei a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, em 1992, no Rio de Janeiro, e assisti às sessões de trabalho sobre as alterações climáticas, em Copenhaga, no ano de 2009.
- Lembro-me perfeitamente. Os responsáveis políticos de países de todo o mundo estiveram ali reunidos, visando um acordo que desse seguimento ao Protocolo de Quioto, de 1997.
- Tenho a consciência – disse D. Manuel - de que o aumento da temperatura, à escala global, implica uma subida do nível geral dos oceanos, com consequências trágicas para milhões e milhões de pessoas que vivem nas grandes planícies aluviais à beira-mar.
- Como sabe, - acrescentei – o acordo de Paris 2015, finalmente concluído em Dezembro passado, visa reduzir o aquecimento global e isso tem consequências positivas nessa, não só vossa, mas de todos, uma real preocupação.
- Eu assisti à assinatura desse acordo. Assentou-se na redução das emissões de gases com efeito de estufa a partir de 2020, limitando o aumento da temperatura a 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais.
- Estamos a viver uma época em que se fala muito de mudanças climáticas e da inegável responsabilidade da sociedade de consumo numa parte deste processo.
- E é bom que se fale, e muito! – Disse o monarca. - É urgente que os cidadãos tomem consciência desta agressão descontrolada que se está a fazer ao ambiente natural, pois só eles poderão, organizadamente, opor-se aos interesses dos grandes poluidores que são os poderosos grupos económicos que, como se sabe, influenciam ou, pior, determinam as opções dos governos.
- Como contributo para esta discussão, - tornei a lembrar - vale a pena ouvir os geólogos e reflectir sobre o que tem sido o “sobe e desce” da temperatura do planeta, à escala global, e o consequente “sobe e desce” do nível geral da superfície do mar nos derradeiros tempos da história da Terra.
- De há quanto tempo para cá?
- Basta que consideremos os últimos dois milhões de anos. Para trás deste limite, estas variações sempre existiram, mas são difíceis, se não, mesmo, impossíveis de estabelecer. Nestes últimos dois milhões de anos foram registadas seis grandes glaciações, designação unanimemente aceite para designar estes períodos de grande arrefecimento global, intercalados por períodos de aquecimento. Nos períodos frios, ditos glaciários, espessas coberturas de gelo alastraram nas regiões polares e nas montanhas, provocando acentuadas descidas do nível do mar.
- E graves danos na fauna marinha. – Concluiu o monarca.
- Exacto. Sobretudo na dos litorais de todo o mundo. – Anui. - Entre os períodos glaciários situam-se os interglaciários, no pico dos quais os níveis do mar subiram muito acima do nível actual. A mais recente destas seis glaciações, ocorrida entre há 80 000 e 10 000 anos, é conhecida por Würm, na Europa, e por Wisconsin, na América do Norte.
- Mas não será, certamente, a última.
- É por isso que se diz que estamos a viver o período interglaciário entre esta e a próxima, daqui a uns bons milhares de anos.
- Assim sendo, com ou sem os gases com efeito de estufa libertados para a atmosfera, pela sociedade industrial, a temperatura global vai elevar-se e, em consequência do inevitável degelo, o nível do mar vai subir e muito.
- Há cerca de 18 000 mil anos, no Paleolítico, - retomei a palavra - já as mais antigas gravuras rupestres se disseminavam pelas paredes rochosas do Vale do Côa, atingia-se o máximo de rigor e de extensão desta última glaciação. A calote glaciária em torno do Pólo Norte, espessa de dois a três milhares de metros, alastrava até latitudes que, na Europa, atingiam a França, as Ilhas Britânicas e a Alemanha, deixando toda a Escandinávia submersa numa imensa capa de gelo, capa que cobria, igualmente, todo o Canadá, o norte dos Estados Unidos, a Gronelândia e grande parte da Rússia e da Sibéria. No Pólo Sul a correspondente calote gelada extravasava os limites do continente antárctico, atingindo a América do Sul.
- E esse frio fazia-se sentir aqui, na nossa latitude?
- No Atlântico, a frente polar, ou seja, o encontro entre as águas polares, com icebergs à deriva, e as águas temperadas situava-se à latitude da nossa costa norte, entre Aveiro e o Porto. A temperatura média das nossas águas teria rondado, então, os 4 ºC.
- E o nível do mar?
- O nível do mar estaria, ao tempo, uns 140 metros abaixo do actual, pondo a descoberto uma vasta superfície, hoje submersa, levemente inclinada para o largo e que corresponde à actual plataforma continental. Da linha de costa desse tempo descia-se rapidamente para os grandes fundos oceânicos, com 4 a 5 mil metros de profundidade.
- Sei que na Serra da Estrela há vestígios dessa glaciação.
- A Serra da Estrela e, também, a do Gerês, à semelhança de outras montanhas no país vizinho, tiveram os cimos cobertos de gelo, desenvolvendo processos de erosão próprios dessa situação climática. Nos relevos menos proeminentes, mais a sul e menos afastados do litoral (como, por exemplo, as serras calcárias do Sicó, Aires, Candeeiros e Montejunto), encontram-se ainda, da mesma época, vestígios bem conservados e evidentes de acções periglaciárias.
- Periglaciárias? – Exclamou o rei, num tom de quem quem desconhecia o significado da palavra acabara de ouvir.
- Designam-se assim as acções próprias das áreas situadas na periferia das regiões atingidas pelas glaciações. Dessas acções sobressaem certas coberturas de cascalheiras soltas, sem matriz argilosa, essencialmente formadas por fragmentos de rocha muito achatados e angulosos, em virtude da sua fracturação pelo frio, que deslizaram ao longo das vertentes geladas, destituídas de vegetação e de solo, e se acumularam na base desses declives. A conhecida pincha de Minde teve a sua origem em calcário, nesta altura, e através deste processo.
- Após o máximo dessa glaciação, começou o degelo? – Interessou-se o meu interlocutor.
- A partir de então verificou-se uma importante melhoria climática e consequente degelo. A temperatura sofreu uma elevação gradual e as grandes calotes geladas começaram a fundir e a retrair-se, debitando nos oceanos toda a imensa água até então aprisionada. Em consequência, o nível geral das águas iniciou a subida e a inevitável invasão das terras pelo mar, conhecida por transgressão flandriana.
- Já agora, explicai-me o significado desta expressão.
- Dá-se o nome de transgressão à invasão das terras pelo mar, o que pode acontecer quer pela subida do nível das águas, quer pelo afundamento das terras emersas. Diz-se flandriana porque foi descrita no litoral da Flandres, ou seja, no norte da Bélgica.
- Essas oscilações do nível do mar ficaram registadas nos rios?
- Sobretudo nos troços mais próximos da foz ou, por outras palavras, nos troços vestibulares. Praticamente, todos os rios portugueses, do Minho ao Guadiana, terminam em estuários, que não são mais do que vales fluviais escavados durante esta última glaciação e, posteriormente, invadidos pelo mar, no decurso da dita transgressão flandriana.
- E que efeitos teve no nosso litoral?
- Pelos estudos realizados na nossa plataforma continental sabemos que, há cerca de 12 000 anos atrás e na continuação do citado degelo, o nível do mar coincidia com uma linha aí bem marcada, à profundidade de 40 metros. Cerca de mil anos mais tarde, a tendência geral de aquecimento generalizado foi perturbada por uma nova crise de arrefecimento à escala mundial.
- E o que é que causou essa crise?
- Uma explicação para esta brusca interrupção no processo de aquecimento global que se vinha a verificar, pode encontrar-se na presunção de que, durante o correspondente degelo, se formaram lagos enormíssimos no continente norte-americano, fechados por grandes barreiras de gelo. Lagos que teriam recebido águas de cerca de oito mil anos de degelo. Admite-se que, tendo descongelado essas hipotéticas barreiras que sustinham esses lagos, toda a água doce aprisionada desaguou bruscamente no Atlântico Norte, desencadeando a congelação da superfície do mar e a consequente mudança climática com reflexos à escala global. Trata-se de uma simples tentativa de explicação que, embora lógica, carece de confirmação.
- E em consequência desse arrefecimento, houve novo recuo do mar?
- Claro! Os glaciares não só interromperam o degelo, como tornaram a invadir as áreas entretanto postas a descoberto. Em resultado desta nova retenção das águas, o nível do mar desceu de um valor estimado em 20 metros e assim permaneceu durante cerca de mil anos. A frente polar que, com o aquecimento, havia recuado até latitudes mais setentrionais, avançou de novo, atingindo o paralelo da Galiza, pelo que as temperaturas das nossas águas, que entretanto tinham subido, voltaram a descer, rondando os 10 ºC.
- E isso aconteceu há quanto tempo?
- Estima-se que o final deste episódio de inversão climática, conhecido por Dryas Recente, aconteceu há cerca de 10 000 anos. A seguir, o clima tornou-se, de novo, mais quente, passou a ser mais chuvoso, ao mesmo tempo que a transgressão retomava o seu curso, com uma subida do nível do mar à razão de 2 cm por ano, em valor médio, embora a ritmo não constante e com algumas oscilações. Entrou-se, assim, definitivamente, no período que designamos por Pós-glaciário. Há 6 a 7 mil anos, a temperatura média, na nossa latitude, atingia cerca de 5 ºC acima dos valores normais no presente.
- E é claro que o nível do mar passou a ser superior ao actual. – Concluiu, e bem, o monarca.
- Este episódio, conhecido por Óptimo Climático, coincidiu, em parte, com o Mesolítico português, estando bem exemplificado nos magníficos concheiros de Muge, no Ribatejo.
- Depois voltou a descer?
- Exacto. O nível marinho actual começou a ser atingido há cerca de 5000 anos, em pleno Megalítico ibérico, iniciando-se, então, o que é corrente referir como Período Climático Subatlântico, caracterizado por relativa humidade. A partir de então verificaram-se pequenas oscilações na temperatura, marcadas por moderadas e curtas crises de frio, com correspondentes recuos do mar, designados por Baixo Nível Romano, há 2000 anos, Baixo Nível Medievo, em plena Idade Média, e Pequena Idade do Gelo, nos séculos XVI a XVIII.
- Estudei História de Portugal e Universal e nunca li qualquer referência a essa vertente geográfica.
- Esta última oscilação está bem assinalada na Europa do Norte, em pinturas da época que puseram em evidência o congelamento de rios e lagos.
- Eu vi e apreciei duas ou três das pinturas que refere, mas, confesso que não as relacionei com essa evidente diferença no clima que demonstram.
- Posteriormente a esta crise de frio, - acrescentei, como remate desta agradável conversa - a temperatura do planeta subiu e vai, muito provavelmente, continuar a subir, mesmo sem a ajuda das emissões antropogénicas do agora tão falado dióxido de carbono e dos outros gases com efeito de estufa. Mudando de assunto, é evidente que o afastamento forçado de Portugal vos magoou muito.
- Muito mesmo. Nunca me desliguei do meu país nem da política portuguesa. Nunca interferi mas, sempre que foi preciso, dei-lhe o meu apoio. Aquando da Grande Guerra, solicitei a minha incorporação no exército republicano português, mas só me deixaram ser oficial da Cruz Vermelha. Leguei todos os meus bens ao Estado Português e agradou-me que o governo republicano tenha autorizado a trasladação do meu corpo para Portugal, depondo-o no Panteão dos Braganças.
- Temos que dar por finda a nossa agradável conversa. – Desculpei-me, delicadamente. - Vai começar a conferência do Prof. António Ribeiro ali, naquela sala ao fundo, e tenho mesmo de ir. Voltaremos, certamente, a falar. Tenho imensa curiosidade sobre o que foi o fim da monarquia.
- Com todo o prazer. Mas sobre o conferencista sei que é um geólogo notável. Conheço bem a obra do pai, o Prof. Orlando Ribeiro, um geógrafo e um intelectual de enorme craveira. O seu domínio científico nos campos da geografia física e humana, responde a muitos aspectos desta minha curiosidade que não morreu com o meu corpo.
- Pai e filho estão um para o outro. Do mesmo modo que o Prof. Orlando, como era tratado pelos alunos e pelos que com ele trabalharam, foi e continua a ser o expoente máximo da geografia em Portugal, o filho é unanimemente considerado, pelos seus pares, o mais competente e respeitado geólogo português vivo e um dos mais ilustres de sempre.
- E qual é o tema da conferência?
- É sobre tectónica e sismicidade em Portugal.
- Isso interessa-me. Vou assistir.
Quando entrei na sala, D. Manuel já lá estava, bem à frente. Só eu o via. Durante a sessão foram muitas a vezes que, olhando para mim, me fazia sinais de aprovação e satisfação relativamente ao que estávamos a ouvir. Finda ela, e enquanto muitos dos presentes se dirigiam para o conferencista, no propósito de o felicitarem, a distinta figura elegante de D. Manuel II tinha desaparecido.

Nota: os dados de natureza científica deste texto, foram retirados da Tese de Doutoramento em Geologia Marinha, de João Alveirinho Dias, actual Professor catedrático da Universidade do Algarve e meu antigo aluno, focada no estudo da dinâmica sedimentar da plataforma continental portuguesa, em cuja defesa, na Universidade de Lisboa, participei com membro do Júri.


Sem comentários:

NOVA ATLÂNTIDA

 A “Atlantís” disponibilizou o seu número mais recente (em acesso aberto). Convidamos a navegar pelo sumário da revista para aceder à info...