a fait un beau voyage.
Du Bellay
Quase ninguém é indiferente ao apelo à viagem. E quase toda a gente inveja Ulisses, que, se não fez, exactamente, uma boa viagem, como canta Du Bellay, perpetrou, pelo menos, uma longuíssima e acidentada odisseia de retorno.
Há gostos para tudo. Du Bellay
invejava Ulisses. Gide torcia o nariz à odisseia do grego, porque, no fim da
viagem, esperava-o Penépole, que, para sempre, o iria amarrar ao lar. Exaltava,
em contrapartida, Sindbad, o das Mil e
Uma Noites, por ser livre como um passarinho: no fim da viagem, esperava-o,
não uma amarra, mas uma nova viagem. Para Gide, também, uma viagem era apenas o
prefácio à viagem seguinte, em contraste com a de Ulisses, que não passou de
uma obrigatória navegação de regresso.
Gide tinha igualmente um lar à espera, em Cuverville, mas fazia de conta que
não dava por isso, e traiu, tanto quanto pôde – e sem complacências – a sua
fiel Penélope que, para o caso, se chamava Madeleine. O que ele queria, está-se
a ver, era copiar, com “gusto” e mesmo frenesi, o fluir libérrimo do marinheiro
Sindbad.
Viajar tem boa e tem má imprensa. Há
quem elogie, há quem diga mal e há quem, simplesmente, se aborreça. O actor e
escritor Al Boliska propôs uma definição célebre que hoje anda citada por todo
o lado: “Viajar de avião”, disse ele, “são horas de tédio interrompidas por
puro terror.” Ainda assim, Boliska só critica o viajar de avião, não todo o viajar. Mas há quem demita qualquer espécie de
viagem. O conhecido romancista Paul Theroux, com obra assinalável transposta
para o cinema, observava que “viajar só é glamoroso em retrospecto”, isto é, só
funciona depois de terminada a viagem, ao contá-la, ao serão, aos amigos.
William Trevor dizia o mesmo, de outra maneira: “Ele só viajava para poder
voltar para casa”, isto é, o melhor da viagem era o regresso. Nem Ulisses foi
tão longe: suspeito que gostou mais da ida do que da volta…
De entre os demolidores do mito da
viagem, citarei o talvez mais antigo (será?): Sócrates, que disse, imaginem,
esta barbaridade: “Vê um promontório, uma montanha, um mar, um rio e viste
tudo.” Como se não houvesse rios e rios, promontórios e promontórios, cidades e
cidades! Quem pode ser de opinião que o Amazonas é o mesmo que qualquer pífio
afluente de um rio de trazer por casa… Quem pode afirmar que ver Leiria é o
mesmo que ver Paris ou Veneza! Ou como se Florença fosse o mesmo que Alguidares
de Baixo! Ou como se o Iguaçu não diferisse grande coisa das pindéricas
“cascatas” da Namaacha, da minha saudosa infância africana!
Claro que é preciso saber viajar,
saber ver e, sobretudo, gostar de ver.
Viajar por viajar é inútil e fica caro. Como dizia o outro, não vale a pena dar
a volta ao mundo só para contar o número de gatos que há em Zanzibar.Viajar pode ser também uma fonte
involuntária de conflito conjugal: viajar para onde? Os gostos diferem e está
aí uma causa de briga. Isto mesmo observava Paul Sweeney, quando,
saborosamente, notou: “Um dos maiores destruidores de felicidade conjugal é a
escolha de um lugar para passar férias. Do que este país precisa é de um oceano
na montanha.”
Mas não viemos aqui falar, hoje, dos
que não sabem nem gostam de viajar. Viemos antes falar de alguém – Guilherme
d’Oliveira Martins – que, à frente do Centro Nacional de Cultura, e a partir
deste, rodeado de outros empenhados viajantes, amigos de conhecer, se meteu às
sete partidas do mundo: “Na Senda de Fernão Mendes”, tal é o título do livro
que recentemente deu à luz.
Porquê viajar? Qual, mais
precisamente, o “porquê” de Oliveira Martins? Ele responde com meridiana
clareza, logo no prefácio, a que deu o aliciante e revelador título de
“Portugal me traz peregrinando”. Nestes termos: “…ao lermos Fernão Mendes Pinto
ou Diogo do Couto facilmente entendemos como a viagem é matéria-prima de vida e
de literatura, de existência e pensamento. A viagem torna-se, assim,
consequência e continuidade da confluência de diversos povos e influências, num
extraordinário cadinho de diferenças. A hospitalidade tem consequência no
desejo de encontro do diferente, de outros lugares e de outras gentes. O
fascínio da viagem ganha, assim, força e sentido.”
Não se trata, pois, de um exercício
de mero mimetismo – viajar porque toda a gente viaja – mas de um profundo
empenho vital (“matéria-prima de vida”), de obediência a um irresistível
“fascínio”. É isso que dá vitalidade a este relato de um bom punhado de viagens
ao encontro do mundo que o português criou ou, mais simplesmente, às vezes, o
mundo por onde o português andou. E dá-lhe um suplemento não desprezível de
vitalidade a imensa cultura do relator, que dela se serve com agilidade e
“timing” surpreendentes. Há sempre um livro, um texto, uma passagem colhidos em
autores que Oliveira Martins frequentou com mão diurna e nocturna e que
iluminam um momento da viagem, um momento histórico, uma avenida esplendorosa…
O livro dá-nos uma larga fatia de
mundo (mas não dá, hélas!, Moçambique): a Índia, o espectacular Iguaçu,
Cracóvia, S. Petresburgo, Omã, Japão, Malaca,
Brasil, China, Cabo Verde, S.Tomé, Galiza, México, Mediterrâneo Oriental,
Istambul, Trieste, a Eslovénia… Um mundo realmente vivido, mais do que apenas visitado, comentado com cultura
sanguínea e não com seca erudição. Os portugueses – os grandes e os menos
grandes – andaram por aqui e deles todos nos dá o relator vívida e afável
conta.
Viajar – o convite à viagem! Há quem
proteste em termos paradoxais: “É pena”, dizia Chesterton, “as pessoas viajarem
por países estrangeiros; estreita-lhes de tal maneira o espírito.” Sterne, no
seu imenso Tristram Shandy, não vai
tão longe, mas faz uma recomendação: “Um homem deve também conhecer alguma
coisa do seu próprio país, antes de ir para o estrangeiro.” Oliveira Martins
documenta, substancialmente, esse conhecimento e essa preocupação: na Parte II
(“De Portugal Abrange-se o Mundo”) dá-nos uma boa amostra de Portugal, à boleia
de Garrett, de Antero, de França,de Ruben A., de Pomar, de Teixeira-Gomes…
Por
outras palavras, Portugal não fica esquecido no tinteiro, antes, é
saborosamente revisitado, com cicerones de excepção. “De norte para sul,” diz
Oliveira Martins, abonando-se nesse almocreve cintilante, que é Miguel Torga,
“começa por se fixar no Reino Maravilhoso - «do meu Marão nativo abrange-se
Portugal; e de Portugal abrange-se o mundo.» E sentimos que sempre houve e
haverá reinos maravilhosos e sofremos o calafrio do assombro. Portugal é para
Miguel torga um totem, uma referência altiva e permanente. Foi daqui que partiu
o escritor para ver o mundo.” Bom discípulo, Oliveira Martins fez o mesmo, com
bons companheiros, de olhos bem abertos e sempre havendo Portugal e os
portugueses como referência. “Viajar é quase como falar com homens de outros
séculos”, dizia Descartes. Nesta sua incansável peregrinação, Oliveira Martins
não tem feito outra coisa.
(Texto publicado anteriormente no "Jornal de Letras").
1 comentário:
Senhor Eugénio Lisboa;
Li o prefácio do livro de Guilherme d'Oliveira Martins.
Uma leitura que fiz, recentemente, de Fernando Lopes-Graça, acerca do pensamento do autor sobre a arte portuguesa. Afigura-se-me útil e pertinente na leitura deste livro.
Do prefácio do livro relevo:
“... uma vez que é pela arte que o entendimento se reforça.” e, mais adiante, “E se Sophia diz que vivemos «de pouco pão e de luar» é porque a viagem nos anima, para que possamos combater a mediocridade e a indiferença!”
A arte é tida como “actividade de conhecimento” disso ninguém duvidará.
Já quanto à interpretação que Guilherme d'Oliveira Martins retira de Sophia, não sei se a melhor interpretação não é precisamente a oposta, - a de um desânimo de Sophia -, em concordância com o pensamento de Lopes-Graça quanto à universalidade da arte portuguesa e ao problema artístico. Diga-me por favor qual a sua interpretação senhor Eugénio Lisboa sobre tal.
“Arte portuguesa... Ora aqui está uma coisa sobre que é bem difícil falar. A arte portuguesa, menos ainda do que a literatura, nunca foi autónoma, individual: imitou quase sempre, por vezes superiormente, é certo, mas imitou, quand même. (Claro que a expressão expressão imitar não tem aqui o sentido pejorativo que correntemente se lhe dá). A arte portuguesa tem produzido no decorrer dos séculos obras notáveis, sem dúvida; mas o que ela não possui é aquilo que dá foros de universalidade a qualquer arte: o génio criador.
Hoje, como ontem, continuamos discípulos obedientes das escolas e processos mais ou menos marcantes lá de fora. E muita sorte quando essas escolas e esses processos não são já velhos cinquenta anos! - o que sucede na maioria dos casos. Os poucos artistas que entre nós têm a coragem de ser de hoje, de afirmar uma mesmo titubeante personalidade, aqueles que possuem, na realidade, alguma originalidade ( e há alguns) não contam: o meio asfixia-os; e eles acabam por transgredir, ou por renunciar, ou por se matar.
Depois, a verdade é esta: Em Portugal não existe o problema artístico. Pode existir o problema da existência ou da subsistência material do artista. Mas aquilo a que propriamente se pode chamar o problema artístico, isto é: a investigação das condições, determinantes e possibilidades da criação e da contemplação artística, o debate das ideias estéticas, o choque dos ideais, das tendências e das correntes artísticas, donde resulta a vida real da arte – não, esse problema não existe cá. É doloroso, mas é assim mesmo.”[FLG- Obras Literárias]
Cordialmente,
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