sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O SILÊNCIO DO MINISTRO PERANTE A “AVALIAÇÃO” DA CIÊNCIA

A “avaliação” das unidades de investigação científica nacionais encomendado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) à European Science Foundation (ESF) está a revelar-se uma fraude. Perdeu-se a confiança num processo que devia ser um pilar do sistema científico e tecnológico, confiança essa que vai demorar a restaurar. Custa a acreditar como é que uma agência que devia velar pela quantidade e qualidade do tecido científico nacional esteja a mostrar um tão grande desinteresse pelos destinos da ciência, ao colocar em prática um processo que prejudica inequivocamente tanto a quantidade como a qualidade da investigação nacional. Os Reitores de todas as Universidades nacionais já apontaram, por unanimidade, a falta de crédito da “avaliação” ainda em curso. Escreveram uma carta pública ao ministro Nuno Crato, que não lhes respondeu publicamente. Crato não podia aliás dizer grande coisa, pois contra factos não há argumentos. Ao permanecer silencioso, ao não ordenar um inquérito à actuação da FCT, o ministro está a fugir às suas responsabilidades. Está a mostrar que não é ministro da Ciência. Agora, quando saírem os resultados da segunda fase (para a qual foram recentemente anunciadas quotas), veremos qual vai ser a reacção dos Reitores. Alguns desses resultados são desde já bastante previsíveis: o financiamento avultado de sectores da biomedicina da área de Lisboa.  Vamos ver também o que vai dizer o ministro da Educação. O silêncio actual do ministro só pode ter um significado: ele está de acordo com a bambochata da  FCT /ESF.
   
O processo da "avaliação" foi desde o início mal conduzido, em resultado de pre-concepções erradas que os actuais dirigentes da FCT têm a respeito do sistema científico português. Eles acham que esse sistema cresceu demais nas últimas duas décadas e que agora é preciso reduzi-lo (“podando-o” como disse, em linguagem pitoresca, o principal  guru do processo de cortes arbitrários em curso na ciência). De facto, o sistema cresceu – e isso era preciso pois estávamos na cauda da Europa – mas não cresceu ainda o suficiente, pois ainda estamos algo distantes dos padrões médios da União Europeia a que pertencemos. Estávamos, na área da ciência, num processo de convergência e, agora, concretizando uma decisão política errada, a FCT está a tentar interromper esse caminho de aproximação aos países mais desenvolvidos da Europa. Era preciso ainda fazer mais, com mais gente - em particular mais estudantes e mais bolseiros -  em vez de fazer menos - está hoje perfeitamente claro  que há menos estudantes nas ciências e menos bolseiros. Precisávamos de mais ciência e temos menos.

Sem qualquer lógica e sem qualquer explicação (pelo contrário, numa atitude que nada tem de científica, pois foi mantida secreta demasiado tempo) a FCT mandou a ESF cortar metade das unidades de investigação portuguesas, independentemente da área, e com base apenas em documentação.  Impôs a priori uma quota de 50% das unidades a passar à segunda fase, a única que podia conceder acesso a um financiamento mínimo. Mas, não sabendo os avaliadores como atingir esse estranho objectivo, a FCT, a meio do processo, decidiu, sem mais nem porquê, diminuir o número de avaliadores, fazendo com que a selecção dos centros (selecção, esclareça-se, entre a vida ou a morte!) se tornasse em muitas áreas e subáreas perfeitamente aleatória. Hoje, quando bastantes dados já são públicos, sabe-se que alguns membros de painéis de avaliação, sem serem especialistas nos domínios em causa, decidiram sobre a vida ou a morte de centros, por vezes contra o parecer expresso de especialistas nas ciências em causa. Como se a destemperada primeira fase não chegasse, na segunda fase tudo piorou: falsos especialistas (veja-se, entre outros exemplos, o caso da Arquitectura do Porto) e violação das normas quanto ao número de avaliadores. Aqui temos a negação da ciência: apontados erros grosseiros, esses erros continuam e ainda mais grosseiros.

Um dos critérios da “avaliação” – devia ser o principal, mas não foi - residiu na informação sobre a produtividade científica, realizada pela editora Elsevier. Pois bem: os resultados da primeira fase da “avaliação” contrariaram a imagem bastante clara de produtividade nalgumas áreas, tanto em quantidade como em qualidade, fornecida pelas tabelas da Elsevier. Quer dizer, a produtividade não foi levada em conta de uma maneira adequada. Já depois de fechada essa  fase – isto é, já depois de haver relatórios e de haver decisões com base neles - a FCT decidiu, sem qualquer explicação, mudar uma entrada importante nesses dados, uma entrada com impacto directo na produtividade científica, designadamente o número de investigadores a tempo inteiro. A FCT nem sequer pediu desculpa pelo erro que  não viu logo, ao contrário de muitos investigadores, que o viram imediatamente. E os números que em muitos casos já eram muito bons, dados os escassos financiamentos disponíveis, passaram a ser excelentes. Mas as notas não mudaram para ninguém. É como se os resultados de uma experiência tivessem sido corrigidos de um factor de dois e as conclusões continuassem  exactamente as mesmas. 

O ministro da Educação, Nuno Crato, tem-se revelado cego, surdo e mudo perante os sucessivos apelos à racionalidade e ao bom senso. Ele sabe perfeitamente, porque além de ter sido publicado lhe foi dito, que a FCT, coligada com a ESF, está a tentar concretizar um processo de destruição da ciência nacional. Para eles, bons discípulos da troika, é um "ajustamento". Mas acha que não deve intervir a tempo de modo adequado, interrompendo  o despautério e pugnando pela verdade e pela justiça. Não parece nada interessado no destino da ciência nacional, sendo-lhe indiferente que metade dela morra agora de uma morte que muitos não hesitam em classificar como “macaca”.  Alija as suas responsabilidades como se ele não fosse o responsável maior pela destruição do sistema científico nacional. Muitas decisões estão retidas em sede de recurso, vendo-se agora a ESF (que, pasme-se, ameaçou com um processo legal uma investigadora espanhola que apontou defeitos na “avaliação” portuguesa!) impedida de participar na reavaliação. Desconhece-se qual é a nova entidade que a FCT contratou para a reavaliação nem qual é o teor do contrato. Se a via do recurso à FCT não funcionar para as bem fundamentadas reclamações, os tribunais serão chamados a repor a justiça, o que não será nada difícil dado o número e o teor das irregularidades administrativas já detectadas. Vivemos num estado de Direito e uma denúncia ao Ministério Público foi apresentada por uma associação de docentes e investigadores, estando a seguir o seu curso. Vivemos também num estado democrático: os cidadãos podem intervir e os governantes podem ser mudados. Os actuais serão, com grande probabilidade, mudados em breve. Se o ministro está calado, os cidadãos não têm de o estar. Num país democrático,  investigadores, professores, estudantes  e os cidadãos em geral podem e devem fazer ouvir a sua voz não apenas em defesa da ciência, que tão necessária é à nossa vida colectiva, mas, mais em geral, em defesa da racionalidade e do bom senso, que deveriam ser valores fundamentais de qualquer governo que mereça esse nome.


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