Um Outro Mar, novela do escritor triestino Claudio
Magris, envolve a vida de três amigos de Gorizia (Enrico Mreule, filósofo;
Carlo Michelstaedter, filósofo
e poeta; e o livreiro Nino). Alguns anos antes de começar a primeira guerra
mundial, Enrico parte para a Patagónia e entrega a sua arma a Carlo. É com esta
arma que a «consciência mais sensível do século», de acordo com a palavra de
Magris, se vai suicidar.
À semelhança de Trieste — mar de Umberto Saba, mirante de
Italo Svevo e artéria de Scipio Slataper—, Gorizia está impregnada de três
culturas (a latina, a do império austro-húngaro e a eslava) e pelo mar
adriático que bruxuleia na poesia de Carlo.
Claudio Magris, para além de ser um grande escritor e
divulgador de literatura, está também atento às ciências físicas. Exemplo, do
que acabo de escrever, são os três excertos, em baixo, da novela :
«Agora é noite e não se vê nada, mas mesmo antes, com os
olhos entreabertos no sol implacável e manchas purpúreas debaixo das pálpebras,
aquele azul profundo do céu e do mar parecia negro; aliás o universo é escuro e
só o olho, também ele velho filólogo, tem a mania de traduzir invisíveis
frequências de onda em luzes e cores. Mesmo no revérbero ofuscante do meio-dia,
quando o mar é todo ele um reflexo, não se vê nada e é um deslumbramento, a
epifania dos deuses.»
«Em Trieste, à partida, apenas Nino o acompanhara. Na cabine
do comando deve estar o sextante, que define a posição do mar medindo a
altitude dos astros no horizonte, impercetivelmente mais baixos à medida que se
avança para o Sul. Enrico tenta imaginar o sextante e os outros instrumentos
que servem para manter a direção e para não se perder, para saber onde se está
e consequentemente quem se é naquela extensão igual à das águas; a sua vida
aquém ou além do oceano, será toda ela uma trigonometria de águas-furtadas onde
se encontravam todos os três— Carlo, ele e Nino.»
«Enrico, dispara, o pato bravo cai no chão, num instante o
voo heráldico é um lixo deitado pela janela. A lei da gravidade é decididamente
um fator de deselegância na natureza; apenas as palavras estão preservadas,
mesmo aquelas impressas nos clássicos gregos e latinos das editoras Teubner e
Leipzig.»
Termino, com as primeiras estrofes do poema Senia de Carlo:
Senia
As coisas que eu vi no fundo do
mar,
os abismos negros, as luzes longínquas
as algas entrelaçadas e as
bizarras criaturas,
Senia, quero somente a ti contar.
Há muito tempo que este instante
no passado,
no fundo do mar, eu tenho
mergulhado.
A fim de dar morada à sereia
exilada,
a mim mesmo e ao homem derrotado,
e contar a vida do seu reino
perdido,
quero mergulhar com mais vigor,
para que o homem narre os
tenebrosos arcanos
e conheça de perto as coisas
longínquas.
Mas o que já vimos no fundo do
mar,
os negros abismos, as luzes
longínquas
as algas entrelaçadas e as
bizarras criaturas,
Senia, quero somente a ti contar.
1 comentário:
Elegante e transmitida a lucidez. Excelente professor Angelo Aves.
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