terça-feira, 23 de setembro de 2014

A SALSICHA CIENTÍFICA


O actual primeiro-ministro de Portugal tem alguma dificuldade em exprimir-se. Ocupar páginas de jornais e bytes de Internet com a "salsicha educativa" era perfeitamente evitável. Podia, entre os seus numerosos assessores, ter encontrado algum que lhe escrevesse um papel sobre educação que ele lesse, sem apartes.

Mas a questão não é apenas de forma: é de substância. Não é só a salsicha, mas o que está lá dentro. E lá dentro estão algumas ideias erradas, se é que na confusão conseguimos descortinar ideias. Embora o próprio não tenha ainda explicado (nem Nuno Crato tenha vindo em seu auxílio) aparentemente "não aumentar a salsicha educativa" significa que o primeiro-ministro, na educação, quer "mais com menos" Quer  menos professores, menos alunos, menos escola,  menos matéria, mas, como ersatz da diminuição da quantidade, julga que consegue qualidade: professores melhores, alunos melhores, escolas melhores, matérias melhores, etc.  Daí a sua ideia mirífica e salvadora da "avaliação", avaliação para tudo e mais alguma coisa: para professores, para alunos, para escolas, para matérias, etc.

Não é só na Educação, é também na Ciência: Passos Coelho quer menos cientistas, menos bolseiros, menos laboratórios (aqui ele quantifica: só quer exactamente metade dos que existem!), menos assuntos investigados. Ouçamo-lo a falar da "salsicha científica" (http://www.publico.pt/ciencia/noticia/passos-coelho-critica-anterior-politica-para-a-ciencia-1622381):
"Numa alusão ao anterior período de governação do PS, o primeiro-ministro afirmou que, em matéria de ciência e tecnologia, o actual Governo está gradualmente a “romper com as políticas passadas” baseadas na ideia de que “mais dinheiro público” produz “qualidade” em termos de resultados. 
“De facto, não é assim”, disse Passos Coelho, referindo-se às bolsas atribuídas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. “Durante vários anos, conseguimos transferir mais recursos para o sistema e atribuir mais bolsas. No entanto, quando medimos depois o número de patentes que são registadas, o número de artigos científicos que são publicados, quando medimos o resultado e a qualidade desse resultado, nós passávamos de indicadores que pareciam comparar muito bem com os países com que gostamos de nos comparar para comparar muito mal sempre que olhávamos à substância dos indicadores”, sustentou.
Segundo o primeiro-ministro, é preciso “mudar a filosofia das políticas públicas que estavam a ser executadas”, assegurando que o financiamento dirigido à ciência, à tecnologia e ao sistema educativo “produz resultados” e “cria valor” na economia."
O discurso, mal articulado, é o mesmo na Educação e Ciência. Passos Coelho quer diminuir o que ele chama (mais ninguém chama ) "salsicha" e, em vez de abrangência, quer essa coisa algo vaga que ele designa por "resultados". O método de avaliação que está a ser levado a cabo pela FCT contra tudo e contra todos, insere-se neste projecto de diminuição da "salsicha científica". E, tal como na Educação, o governo afirma querer na Ciência exigência e rigor.

Mas há apenas um "pequeno" problema. O discurso da "salsicha" além de confuso é perfeitamente oco. Só pode falar de qualidade quem tiver qualidade. Ora não se vislumbra nem na política nem na execução da política de Passos Coelho o mínimo de qualidade. Ele não é exigente nem consigo próprio nem com os seus ajudantes. Faz de gato-sapato do rigor. A avaliação interna não existe no governo. Na Educação o governo  permitiu que, durante algum tempo e mesmo após repetidos avisos, uma fórmula matemática errada tenha excluído os melhores professores. E, na Ciência, que devia ser uma fortaleza da exigência e do rigor, uma trapalhada brutal, com atropelo manifesto de regras e manipulação de dados, está a servir para excluir algumas das melhores unidades de investigação e alguns dos  melhores investigadores.

O que há a fazer? Pois é muito simples e, uma vez que o autor do discurso da "salsicha" se  revela incapaz de perceber as suas contradições, há que explicar: Só pode ser exigente quem é exigente. Só pode clamar por rigor quem for rigoroso.

Precisamos de um outro chefe de governo: um responsável político que inspire confiança, que seja, de facto, mais exigente e rigoroso.

1 comentário:

Luis Rocha disse...

"A forma mais fácil de ter uma ciência forte ao serviço da sociedade é a quantidade. Primeiro, o que é demonstravelmente produtivo é simplesmente investir. Quanto mais dinheiro é gasto em ciência, mais produtiva esta é. Aliás, esta correlação é a única estatisticamente significativa que se obtém de estudos sobre o impacto de investimentos em ciência—independentemente da “qualidade” vislumbrada por pares que não prevê impacto de forma significativa[1][2]. Em segundo lugar, ao contrário do afunilamento de fundos para “elites de qualidade” que parece ser a nova política da FCT, é da diversidade de projectos académicos que nasce a criatividade, interdisciplinaridade e em última análise o impacto económico[9][10]. De facto, ninguém pode dizer que foi da elite académica que saíram Bill Gates, Steve Jobs e mesmo Larry Page, Sergey Brin e Mark Zuckerberg. Do que eles beneficiaram foi da educação académica americana—a chamada educação liberal—que é baseada na extrema diversidade de estudos académicos, desde as Humanidades até às Ciências. Portanto, a quantidade e variedade de investigação disponível, e as suas combinações, são um factor de impacto e sucesso."
De http://www.informatics.indiana.edu/rocha/ciencia2.html

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A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...