terça-feira, 2 de setembro de 2014

PEDRAS DISTO, DAQUILO E DE MAIS ALGUMA COISA (1)

Pedra de Armas dos Pereiras, na casa de Bertiandos, Ponte de Lima
O conceito de pedra e o conhecimento relacionado com esta realidade física percorreram uma caminhada tão longa quanto a do Homo sapiens, de que temos testemunhos na Pré-história e variadíssimos relatos escritos ao longo da História.

No Livro das Pedras, de Aristóteles (384-322 a. C.), que se julga não ser da autoria deste filósofo, mas sim uma compilação das suas ideias feita por um anónimo, provavelmente um árabe posterior ao século IX, distinguem-se gemas, metais, sais e pedras comuns, e disserta-se sobre a influência dos astros, em geral, e do Sol, em particular, no nascimento destes objectos naturais. A sua visão sobre as ”influências celestiais” defendia que, sob o efeito dos raios solares, certas exalações se escapavam para a atmosfera.

Destas, as chamadas “exalações secas”, associadas às trovoadas, condensavam e caíam sobre a Terra, sob as formas de chuva de pedra (granizo) e de meteoritos. Segundo a mesma visão, havia outras exalações susceptíveis de gerar pedras, incluindo nesta designação os materiais a que hoje damos os nomes de rochas, minerais e fósseis (estes, até muito tarde, referidos por “petrificados”) surgidos e desenvolvidos à superfície e no subsolo, por efeito de “virtudes petrificantes” originárias do céu e dos diversos corpos celestes, nomeadamente os planetas e as estrelas, entre as quais o Sol tinha papel de destaque.

Um seu discípulo, Teofrasto (372-287 a. C.) descreveu como pedras, entre outras, o basalto, o ofito, o pórfiro, o xisto e o mármore, indicando ainda as suas utilizações práticas na indústria e na arte. Na Idade Média, numa época em que ainda se não fazia a distinção entre rochas, minerais e fósseis, uma das primeiras abordagens ao estudo das pedras é atribuída a Ibn Sina (980-1037), mais conhecido por Avicena que, na classificação que concebeu para estes materiais, os incluiu na classe a que deu o nome de “pedras e terras”, na qual, as pedras eram os materiais coesos, sendo as terras os incoesos e desagregáveis, como o cascalho, a areia, o saibro, barro e outros.

As pedras sempre fizeram e fazem parte da vida das gentes, como elementos substantivos de entidades ou situações comuns, quer reais, quer virtuais. A sua importância vem de muito longe e, entre outras evidências, destaca-se o nome que Jesus deu ao apóstolo Simão, dizendo: tu é Pedro (pedra) e sobre ti edificarei a minha Igreja.

A sua importância evidencia-se, ainda, nas expressões pedra basilar, pedra angular ou pedra fundamental, três formas de referir a base, o suporte ou o fundamento de uma ideia, de uma doutrina. É também o marco inicial ou a primeira pedra de uma construção, que é habitual lançar em cerimónia adequada.

As pedras estão em todo o lado, a começar pela capa rochosa que envolve os planetas telúricos (do latim Tellus, a deusa romana mãe da Terra) a que os geólogos chamam litosfera (do grego lythós, pedra). Estão nos asteroides, nos núcleos dos cometas e podemos vê-las nos meteoritos e, através de fotografias, nas superfície da Lua e de Marte.

Bem perto de nós, temo-las em grande quantidade e podemos tocar-lhes, nas montanhas, nas arribas do litoral e nos seixos das praias e dos rios. Pisamo-las nas calçadas e pavimentos, nos degraus que subimos e descemos, no cascalho, na gravilha e no pó de pedra que suportam o asfalto das rodovias, e nos balastros sobre que assentam chulipas e carris dos caminhos de ferro. Em tosco, ergueram muros e paredes, quer de pedra solta (no brasil diz-se pedra seca ou pedra insossa) quer de alvenaria, unidas com argamassas, quer, ainda, como pedra britada ou brita, no betão dos dias de hoje.

Vemo-las nas antigas cantarias, como pedra aparelhada ou pedra lavrada a picão, maço, ponteiro e bujarda, ou nas modernas construções, serrada, polida ou despolida, com recurso a máquinas e ferramentas diamantadas. Resistem às vagas, como molhes e paredões, protegendo portos, praias e alguns troços do litoral, e resistiram ao tempo, como menhires e outros megálitos (antas, cromeleques), velhos de mais de 5000 anos. Fortificaram os castros da Idade do Ferro, ergueram castelos e catedrais ao longo da História e foram e são as principais matérias-primas das múltiplas e variadas indústrias inerentes à sociedade humana.

Na tradição europeia medieval, a pedra de armas é um brasão respeitando as leis da heráldica, identificador de personalidades singulares, famílias, corporações, cidades, regiões e nações, embutido na parede exterior da propriedade, sobre a porta principal ou num qualquer local considerado mais visível. Nesta época e antes do aparecimento das bombardas que, sob a força da pólvora, lançavam pelouros de pedra (bolas de granito ou de calcário com 10 a 20 cm de diâmetro), foram usadas as chamadas pedras de arremesso, projectadas por catapultas contra muralhas e outras fortificações. Por muitos anos, neste período da história da Europa, os alquimistas procuraram a pedra filosofal, ou seja, a pedra da sabedoria que, em árabe, se diz al quimia. A expressão simboliza um saber notável, na época, onde, entre outros conhecimentos, radicam a química e a mineralogia.

Para muitos desse tempo, esta pedra era a esperança de transmutar os metais ditos inferiores em ouro e de obter o elixir da longa vida. Para muitos portugueses do presente, pedra filosofal é o poema que toda a gente ouviu e, felizmente, ainda ouve na voz melodiosa de Manuel Freire, mas que muitos desconhecem ser obra de um excelente Professor de Física e sábio divulgador de ciência, Rómulo de Carvalho, de seu nome de baptismo, e, ao mesmo tempo, grande poeta com o pseudónimo de António Gedeão.

Na mesma época, falava-se de pedra de bezoar, nome de uma concreção gerada nos sistemas digestivos e urinários de certos animais como as cabras, formadas por acumulação de pelos, fibras e outros materiais ingeridos. Atribuía-se-lhes poderes extraordinários, em especial, como antídoto contra os venenos. O nome deriva do árabe bãnzar (antídoto). A pedra de Goa era um bezoar artificial preparado nos séculos XVII e XVIII pelos boticários jesuítas do Convento de São Paulo, naquela antiga colónia portuguesa. Preparada segundo uma receita secreta, dizia-se que continha na sua composição, argila, lodo, conchas, âmbar, almíscar, resina, pó de dente de narval, pedras preciosas e ópio. Um exemplar intacto, com o respectivo cálice de prata, pode ser visitado no Museu da Farmácia, em Lisboa.

(Este texto continua aqui)
Galopim de Carvalho

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